Artigo publicado originalmente na edição de Setembro/Outubro de 2022 da Edifícios e Energia

Desde há bastantes anos que as políticas públicas apontam para a mitigação das emissões de CO2 como forma de atenuar as alterações climáticas, limitando o aumento da temperatura média do planeta a não mais de 1,5 ºC – meta que já dificilmente será atingida; vamos aquecer mais. Apesar das promessas e dos compromissos públicos para “reduzir” as emissões de gases com efeito de estufa feitos todos os anos, as ditas emissões têm aumentado. Cada ano com mais emissões do que no anterior e nem a crise da pandemia alterou esse padrão! E já vamos na COP26, a caminho da COP 27. Acordo do Rio, Compromisso de Paris… A Glasgow, em 2021, já nem foram os presidentes dos Estados Unidos da América (EUA), da Rússia ou da China. Palavras não faltam, atos concretos são escassos e os acordos têm sempre isenções, para que os que não querem, ou não podem, cumprir as metas tenham uma escapatória honrosa.

Com a atual crise do gás russo, ou da falta deste, há a preocupação de os europeus passarem algum frio no próximo inverno, ou de a produção industrial ser afetada, ou de a conta da energia para as famílias aumentar de forma incomportável para muitos. Claro, tudo preocupações mais do que bem justificadas e que, essas sim, fazem movimentar as políticas públicas europeias com medidas concretas, difíceis de imaginar no statu quo anterior à guerra da Ucrânia, no sentido da poupança (real) de energia. A União Europeia fez aprovar um regulamento – para já, ainda apenas de cumprimento voluntário, mas que pode vir a ser obrigatório se a torneira do gás russo fechar mesmo no próximo inverno – para que cada Estado-Membro reduza o seu consumo de gás em 15 % já a partir de 1 de agosto de 2022. Claro que, como qualquer acordo europeu, este também está pleno de exceções para todos os gostos e necessidades, que, na prática, nem permitirão, muito provavelmente, atingir os 15 %.

Será que é a guerra na Ucrânia que vai conseguir salvar o planeta e permitir alcançar, finalmente, uma verdadeira redução das emissões? Não creio. A procura de gás continuará por muitos anos, pois as renováveis ainda não estão num estado de implementação que permita aliviar significativamente as necessidades de gás natural. A meta era atingir esse objetivo em 2050, e até essa será algo otimista, mas há que ter um objetivo que seja ambicioso. Dificilmente haverá mudanças significativas nesta meta. Até já se fala de outro gasoduto a ligar Sines ao centro da Europa (que, se alguma vez vier a ser construído, demorará tantos anos a erguer que, quando estiver pronto, talvez até já nem seja necessário ou não tenha mercado). O gás natural existente no mundo será simplesmente redirecionado de onde há oferta para onde há procura, mudando a geopolítica, mas continuando a ser queimado em quantidades crescentes, essencialmente para aquecimento e para produção de eletricidade (e, desta, para bombas de calor para AVAC, ou seja, para o aquecimento e para o cada vez mais generalizado uso e abuso, porventura, mesmo onde não seja estritamente necessário, do ar condicionado).

Se, para proteger o planeta e mitigar as alterações climáticas, poucos sacrifícios se fizeram, daqueles que realmente se notam na vida do povo, agora, para poupar os 15 % de gás natural na Europa, já se pede para baixar as temperaturas no inverno (18 ºC) e subir um pouco as temperaturas no interior no verão (27 ºC), e ainda, no caso de lojas comerciais, se obriga a portas para isolar os espaços climatizados da rua – estas são duas das medidas do plano espanhol já aprovado em julho deste ano. Através das televisões, vê-se como as reações do “povo” às medidas são negativas: os donos de cafés argumentam que, com o “calor” de 27 ºC, vão perder clientes! Note-se que 27 ºC estão ainda dentro do limite superior da norma ISO de conforto térmico em espaços para ocupação humana sem requisitos especiais. Face a isto, a Região de Madrid, de linha política diferente da do governo central espanhol, apressou-se logo a dizer que não ia implementar as medidas.

Nada disto é original. Estamos meramente a reinventar a roda… Não pude deixar de me recordar do que se passou em 1977, estava eu nos EUA aquando da crise do petróleo de 1977-79, onde também foram implementadas restrições de temperatura no interior dos edifícios públicos (nos privados, foi apenas uma recomendação). Foi imposto o limite superior de 65 ºF (18,3  ºC)1. Durou menos de um ano, sob forte contestação do povo, que sentia frio, pois não queria vestir roupa mais quente do que a que estava habituado a usar no inverno… Quanto tempo durará esta “poupança forçada” na Europa? Se acontecer o mesmo que nos EUA, no ano de 1977, ou se tiver a mesma fraca adesão do povo europeu de 2022 que teve a do americano de 1977, estas medidas não serão mais do que medidas “para Bruxelas ver”. Depois, basta apontar a exceção ibérica do regulamento europeu e fica tudo bem…

Quando este texto for publicado na Edifícios e Energia (está a ser escrito em meados de agosto), já será conhecido o plano português para poupar os 15 % (perdão, os 7,5 % da exceção nacional, provavelmente) que o regulamento europeu pede. Pode ser algo realista ou outro mero pacote de promessas para Bruxelas ver. A seu tempo se verá. Um indicador elucidativo é que nem sequer foi aprovado o Plano Nacional de Poupança de Energia antes de 1/8/2022, data em que começou a sua aplicação. As prioridades legislativas nacionais falam por si. Espanha, pelo menos, aprovou as medidas em julho… A Alemanha, um dos principais interessados na medida, só avançou em agosto, mas, como a grande preocupação lá é o inverno, não o ar condicionado, até se compreende. Nós, em Portugal, já perdemos o verão de 2022.

Mas o que mais importa é que o contexto atual demonstra claramente que a vontade de reduzir as emissões de gases de efeito de estufa não passa de mera retórica. Sim, vamos promover as energias renováveis, cujo desenvolvimento foi pago com investimentos enormes de fundos públicos para produzirem eletricidade a baixo custo sem os quais não seriam rentáveis, mas, agora, com a crise do gás, com a eletricidade renovável paga, atualmente, ao preço comercial (imposto pelo preço do gás natural) e não ao custo justo de produção com lucro razoável. E, como acontece com muitas outras coisas, pagamos duas vezes pelo mesmo. Há poucos anos, protestava-se pelo impacto que o alto preço das renováveis tinha na fatura da eletricidade. Agora, paga-se mais do que esses elevados valores pela eletricidade renovável, que, em teoria, devia ser mais barata e nem se pensa que esses custos poderão ser excessivos. Mas, sim, também vamos continuar a queimar na mesma todo o gás e petróleo que conseguirmos descobrir e pagar a preço de ouro. Se fosse mesmo para poupar, não adotaríamos medidas excecionais para evitar o desperdício apenas em épocas de crise como a que atualmente vivemos. Seria algo que se faria permanentemente, e que já se podia ter feito há muito tempo, se houvesse vontade política (e aceitação do povo) para tal. E far-se-ia muito mais do que subir ou baixar a temperatura um ou dois graus e educar o povo para um comportamento ambientalmente sustentável. Far-se-ia um esforço realmente sério para reabilitar o parque de edifícios existente e colocar requisitos mesmo sustentáveis aos edifícios novos a construir, incluindo fortes restrições ao desperdício.

Se podemos (ou queremos) fazer sacrifícios quando falta o gás russo na Europa, não podemos fazer os mesmos “sacrifícios” de forma permanente para salvar o planeta e a vida humana na Terra, limitando, de forma mais ativa, as alterações climáticas? Não será este um objetivo, porventura, muito mais importante do que tomar medidas temporárias a reverter logo que a crise do gás russo acabe e a Europa possa continuar a queimar confortavelmente gás (norueguês, americano, africano, árabe ou até obtido por fracking algures na Europa, depois de colocarem o povo entre a espada e a parede, isto é, obrigados a escolher entre fazer fracking ou passar frio) como se nada se passasse neste planeta? Como diz, e bem, António Guterres, a humanidade está a cometer um suicídio coletivo, lento, mas inexorável. Nós já estamos em plena crise há muito tempo! A falta de gás russo é um mero detalhe pontual na história da humanidade, mas está a ter um impacto muito mais imediato. Haja a coragem para passar das palavras aos atos, indo para além de meros paliativos como os que agora estão a ser adotados na Europa, porventura, de curto prazo, implementando um plano amplo e ambicioso que consiga realmente reduzir consumos de energia significativos de forma consistente nas próximas décadas.

Termino com a velha história da cigarra e da formiga. É nos tempos de fartura que se devem fazer poupanças, não quando as crises aparecem. Agora, é apenas tempo para adotar remendos, mas, depois, muito provavelmente, outras prioridades mais altas farão depressa esquecer a necessidade de poupar energia de forma mais agressiva e regressar-se-á às práticas e às prioridades do passado. As cigarras ganham quase sempre os debates sobre políticas de ciclo curto.

As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.