Artigo publicado originalmente na edição de Janeiro/Fevereiro de 2022 da Edifícios e Energia

Com um foco no respeito pelos direitos humanos, os princípios Cradle to Cradle representam uma abordagem holística à economia circular. A certificação com o mesmo nome garante a adequação de produtos e materiais a estes ideais, e é entre as soluções destinadas à construção e aos edifícios que o selo mais tem crescido.

Abandonar a linearidade nos processos de produção e consumo para abraçar a circularidade. A ambiciosa proposta da economia circular, que pressupõe a eliminação do desperdício e a procura de novos usos para produtos que chegam ao fim do seu tempo de vida, conhece várias estradas e abordagens. Uma delas é o Cradle to Cradle. Para além de procurar fechar o ciclo dos produtos, coloca particular ênfase nas pessoas e no seu bem-estar. O conceito coloca no topo das prioridades o respeito pelas pessoas e a utilização de produtos totalmente recicláveis, garantindo que quaisquer resíduos possam transformar-se, depois, em matéria-prima ou ser devolvidos ao meio ambiente. Associada a estes princípios está a certificação Cradle to Cradle (C2C), garantindo que produtos e materiais com o selo seguem rigorosos preceitos em áreas tão diversas quanto a saúde dos materiais, o seu carácter regenerativo ou o respeito pelo meio ambiente e por padrões de justiça social e laboral.

Hoje, C2C é sinónimo de certificação de produto nas mais variadas áreas. De vestuário a produtos de cosmética, embalagens, produtos de limpeza e materiais de construção, a certificação, que, desde 2012, é realizada pelo Instituto de Inovação de Produtos Cradle to Cradle, tem vindo a crescer de importância nos sectores dos edifícios e da construção. A obtenção do selo garante que cada produto cumpre apertados requisitos de desempenho em cinco categorias distintas: segurança para a saúde humana e o ambiente, circularidade, promoção da redução de emissões de gases com efeito de estufa, a não poluição de água e do solo, e o respeito pelos direitos humanos e justiça social.

Num edifício, abraçar os princípios Cradle to Cradle significa a utilização de materiais que não perdem possibilidades de uso mesmo depois de processos de reabilitação ou reconversão. Metais podem ganhar nova vida, resíduos provenientes da demolição podem ser convertidos em cimento e a preferência por matérias biodegradáveis vai possibilitar a sua devolução ao meio ambiente. Popularizada num livro de 2002, assinado pelo arquitecto William McDonough e pelo engenheiro químico Michael Braungart, a abordagem Cradle to Cradle à circularidade centra-se não só na eliminação do desperdício, mas também nos benefícios para as pessoas, em resultado da utilização de determinados produtos e materiais.

Os materiais e produtos destinados aos sectores dos edifícios e da construção representam, já, “cerca de metade” do total de certificados C2C emitidos. Até Novembro, estes sectores significavam mais de 550 certificações, número que equivale, na realidade, a milhares de produtos. “Dentro de uma certificação podemos ter vários produtos”, explica Ana Quintas, responsável pelo ambiente construído no Instituto de Inovação de Produtos Cradle to Cradle para as regiões da Europa, do Médio Oriente e de África. Em entrevista à Edifícios e Energia, aponta várias razões para o crescimento destas certificações nos edifícios e na construção, entre elas o facto de a aposta na sustentabilidade trazer “reconhecimento por parte do sector imobiliário” e, consequentemente, “valor para o edifício”.

Edifícios Cradle to Cradle?

Uma marca de roupa pode ser sustentável na produção dos materiais têxteis, na manufactura, no tratamento que dá aos seus trabalhadores e na logística de distribuição, mas a abordagem C2C pode ser adoptada por muitos outros sectores. Os sectores da construção e dos edifícios são exemplo disso mesmo. Não apenas durante a fase de construção, com uma cuidada escolha dos materiais a utilizar, mas também durante a sua operação, fase em que os materiais escolhidos têm reflexo no conforto dos ocupantes dos edifícios e, feitas as contas, no desempenho energético dos mesmos.

No início do milénio, a Comissão Europeia afirmava que os europeus passavam 90 % do seu tempo dentro de edifícios. Com a crise pandémica, esse valor terá aumentado mais ainda, facto que, associado à urgência de acção climática, poderá estar a contribuir para o crescimento do interesse na certificação. Ao contrário do que acontece com as certificações LEED e BREEAM, este selo não se aplica a edifícios, sendo exclusivamente atribuído a materiais e produtos. No entanto, a utilização de materiais e produtos C2C determina a atribuição de créditos que contribuem, depois, para a emissão de certificados LEED ou BREEAM em edifícios.

Ao Instituto de Inovação de Produtos Cradle to Cradle começam a chegar vários exemplos de projectos que procuram ser “totalmente baseados nos princípios Cradle to Cradle”, diz Ana Quintas. Para lá chegar, explica, a fórmula tem passado por incluir a obrigatoriedade de inclusão de produtos com certificação C2C em concursos públicos ou requisitos de contratos.

Estes projectos situam-se “especialmente no centro da Europa” e um dos melhores exemplos, actualmente, “usado como caso de estudo”, é o projecto ZIN, que está a transformar duas antigas torres no Norte de Bruxelas num único edifício interligado com 14 pisos e com três usos: escritórios, habitação e um hotel. No processo de reconversão, 95 % dos materiais das antigas torres vão ser preservados, reutilizados ou reciclados, e, no caso de parte dos escritórios do futuro edifício, que serão ocupados pelo governo da Flandres, 95 % dos materiais e produtos terão certificado C2C. Ao todo, cerca de 30 mil toneladas de resíduos provenientes do processo de demolição serão utilizadas na produção de 3,5 toneladas de agregado, que resultará, depois, em 30 mil toneladas de cimento com certificado C2C a utilizar na construção do novo edifício.

A abordagem de Venlo, nos Países Baixos

São cada vez mais os projectos e iniciativas C2C no sector dos edifícios e da construção, mas o projecto que o município e a região de Venlo, nos Países Baixos, iniciou, em 2006, terá sido o primeiro no mundo a promover, de forma alargada, a adopção dos princípios defendidos por Michael Braungart e William McDonough. A região apoiou a criação de um centro para a sua promoção e tem procurado alimentar a inovação empresarial ligada aos produtos C2C, contando hoje com várias empresas com soluções certificadas. Em simultâneo, o município de 100 mil habitantes promove a integração dos princípios também nas políticas locais e na reabilitação e construção de edifícios – casos de uma escola primária, um pavilhão desportivo e do edifício sede da câmara municipal, aquele que será, talvez, o maior exemplo dado pela cidade dos Países Baixos.

“Foi um dos primeiros edifícios a integrar os princípios”, confirma Ana Quintas. Inaugurado em 2016, todo o edifício foi projectado e construído sem desperdício e com os ideais da abordagem circular em pano de fundo. Para além da eliminação do desperdício, o foco do edifício da câmara municipal de Venlo foi para a eficiência energética e o conforto das pessoas no interior.

O cimento utilizado na construção do edifício tem selo C2C e a fachada técnica, a Sul, é coberta por placas de alumínio, que, no futuro, poderão ser integralmente reutilizadas sem perda de qualidade. A fachada Norte, por sua vez, conta com uma cobertura vegetal que contribui para o isolamento térmico do interior, assente em vasos com certificação C2C. Esta fachada contribui para a purificação do ar que chega da estrada e é alimentada por um reservatório subterrâneo de água.

O mobiliário foi cuidadosamente escolhido, com cadeiras e mesas de escritório certificadas, e cada elemento arquitectónico presente desempenha um papel central no desempenho energético e no conforto do edifício. Painéis horizontais nas janelas impedem a entrada de luz solar no interior durante os meses de Verão, mas permitindo-a no Inverno. O ar presente nos andares subterrâneos da garagem do edifício concretiza a climatização passiva dos espaços interiores dos pisos superiores, com o aquecimento e arrefecimento a serem realizados a partir da recirculação do ar com recurso a uma chaminé solar.

Para além da óbvia aposta na sustentabilidade, a promoção do uso de materiais C2C permite, afirma Ana Quintas, “retornos muito interessantes ao nível de consumos de água, energia, conforto para o utilizador”. Os custos com consumo energético são controlados não só através da arquitectura e da implementação de medidas de climatização passiva, mas também através da geração de energia eléctrica a partir de painéis solares fotovoltaicos instalados na cobertura e na fachada. No exterior, um sistema de filtragem helófito permite, através de bactérias presentes nas raízes de plantas (juncos), o tratamento das águas pluviais e das águas residuais que provêm dos lavatórios instalados no edifício. Depois de filtrada, a água é colocada em utilização nas descargas das sanitas do edifício.

Obter o selo C2C

“Quando há interesse”, explica Ana Quintas, há dois caminhos para a certificação: “as empresas contactam directamente o instituto” ou, alternativamente, “contactam a nossa rede de avaliadores”. Acreditadas pelo Instituto de Inovação de Produtos Cradle to Cradle, as várias organizações avaliadoras são responsáveis por acompanhar o processo de optimização da cadeia de produção, apoiando as empresas que pretendem certificar produtos e procurando assegurar que são cumpridos os requisitos de certificação em cada uma das cinco áreas avaliadas.

A duração e a complexidade dos processos de certificação variam de empresa para empresa e de produto para produto. “Há empresas que já estão muito preparadas e é um processo que demora três, quatro, cinco meses, e temos empresas que necessitam de cerca de um ano, às vezes mais, para preparar o seu processo de fabrico para que seja submetido a avaliação”, conta Ana Quintas.

O processo de avaliação por parte do instituto pode, depois, resultar na emissão de vários níveis de certificados, consoante os resultados alcançados em cada uma das cinco categorias em avaliação. “Pode ser ambição da empresa ser certificada com prata, ouro, platina, ou ir para o básico, que é o bronze”. A certificação C2C tem a duração de dois anos. Findo esse período, “a intenção” do instituto é que, no processo de recertificação, seja demonstrada “uma melhoria, para atingir um nível superior de certificação” ou que, em alguma categoria, seja demonstrada a existência de um “esforço para evoluir para o nível seguinte”.

A certificação pode ser um processo mais ou menos oneroso, com os valores finais a variar consoante as receitas de cada empresa e de acordo com a composição dos produtos e materiais. Comparativamente a outras certificações, os custos associados estão “no mesmo nível”, diz a responsável. Cada processo tem um custo de 3150 euros e a recertificação, dois anos volvidos, custa às empresas 1750 euros. A este valor acresce, ainda, um pagamento anual efectuado por cada empresa certificada, cujo valor varia de acordo com o valor das receitas reportado no ano fiscal anterior. A parte mais onerosa do processo, explica Ana Quintas, é a avaliação da saúde dos materiais, que permite determinar se os materiais são seguros para os humanos e para o meio ambiente. Esta fase do processo implica que cada componente seja submetido a análise. “Se estivermos a falar de um material muito básico, de um agregado, é capaz de ser um processo muito menos oneroso do que se estivermos a falar de uma parede com vários componentes”.

Em Portugal, a procura por materiais certificados está a aumentar

Até ao momento, apenas uma empresa nacional, fabricante de quadros para escritório, tem selo C2C em alguns dos seus produtos. No sector da construção não há, por agora, nenhum representante português entre os produtos certificados.
A indústria nacional pode não estar muito desenvolvida ao nível da criação de produtos certificados no sector dos edifícios e construção, mas há sectores estratégicos, como os do têxtil, do calçado ou dos componentes electrónicos, que podem, em breve, entrar no processo de certificação. “Portugal não tem um histórico muito grande de fabrico de materiais de construção”, diz Ana Quintas, mas há empresas portuguesas a comercializar produtos certificados para edifícios. É o caso da Banema, com sede em Paredes e fundada em 1986.

A empresa da área dos derivados de madeira comercializa madeira modificada Accoya, um produto de construção com selo C2C Gold – a segunda melhor avaliação emitida pelo Instituto de Inovação de Produtos Cradle to Cradle.
Horácio Pinto, gestor de produto da Banema, conta à Edifícios e Energia que a empresa havia tomado, “há bastantes anos, a decisão de não trabalhar com madeiras exóticas”. Sempre apostaram em madeiras modificadas e, na procura de madeiras sustentáveis, “acabou por surgir a Accoya”, que, além da sustentabilidade, tem na “estabilidade e durabilidade” dois dos seus grandes argumentos. Proveniente de florestas certificadas e de rápido crescimento, esta madeira tem o selo FSC, atestando a proveniência sustentável do material e conta com garantia de 50 anos para aplicações acima do solo e de 25 anos para aplicações sob o solo ou imersas em água doce. Em Portugal, este material já foi utilizado em vários projectos recentes, casos do Parque Urbano Ribeira dos Amores, na Maia, ou da recém inaugurada loja da Via Verde, em Lisboa.

Sobre o crescimento da procura de produtos certificados em Portugal, Horácio Pinto conta, na sua experiência, que esta é uma tendência mais notada “nos últimos quatro, cinco anos. Até à data, era muito raro pedirem um certificado FSC”, diz. O certificado C2C só lhe foi pedido uma vez, mas, afirma, “já nos colocam questões sobre o LEED, sobre o BREEAM” e já são comuns os pedidos de certificados de origem das madeiras, como o FSC ou o PEFC.

Apesar de Portugal não demonstrar, ainda, a dinâmica identificada no centro do continente europeu, Horácio Pinto nota que “começa a existir a preocupação em ter produtos [certificados], não só pela questão da sustentabilidade, mas também para contribuir com pontuação para os próprios edifícios, que é também o que estas certificações permitem – ter classificações de sustentabilidade”.

 

Fotografia: © C2C Venlo