Tudo começou com uma proposta numa reunião de condomínio; o sucesso da primeira instalação de autoconsumo colectivo levou a uma segunda e a uma terceira e, eventualmente, à constituição de uma Comunidade de Energia Renovável. Neste ano, o condomínio tem a ambição de quase triplicar o potencial instalado e de fazer descer ainda mais a factura energética dos moradores.
É um grande condomínio da Alta de Lisboa e é também um exemplo num dos países do continente europeu com mais horas anuais de exposição solar e que só agora dá os primeiros passos na promoção de Comunidades de Energia Renovável (CER).
Na Alta de Lisboa, há um condomínio como muitos outros. São oito blocos, oito entradas e, não surpreendentemente, vastas áreas comuns, entre garagem e outros espaços de circulação. Ao todo, são cerca de 185 fogos e um número ainda maior de moradores. Em relação a tantos outros condomínios, destaca-se uma particularidade – quem ali mora usufrui, há seis anos, de uma Unidade de Produção para Autoconsumo (UPAC) que tem vindo a aumentar a sua capacidade, passo a passo, e que está a ser prova viva do poder da organização comunitária e da importância da produção de energia descentralizada.
As vantagens alcançam-se em pouco tempo: independência energética e descida dos gastos com energia ao fim do mês. Só nas partes comuns, a poupança anual estará já nos oito mil euros.
Vasco Pimenta é o grande responsável pela promoção das várias instalações solares fotovoltaicas presentes na cobertura do condomínio. Vive neste condomínio da Alta de Lisboa desde 2010. É engenheiro espacial, mas está longe de ser especialista na questão da transição energética, diz-nos. Antes, acompanha-a com curiosidade. O interesse viria, depois, por conduzi-lo à acção. Tudo aconteceu quando se lembrou de sugerir o investimento numa modesta solução de painéis solares fotovoltaicos para a cobertura de dois dos oito blocos. Perante a necessidade de poupanças nos custos do condomínio, a proposta reuniu, para sua surpresa, um consenso inesperado. Assim, em 2017, foi instalado um potencial produtivo de apenas 3 kWp.
Desde então, as actualizações não pararam e somaram-se ao ritmo da vontade dos condóminos. Em 2021, a capacidade de produção de energia eléctrica chegava já aos 27,3 kWp e, neste ano, há uma ambição ainda maior. Com o apoio que se espera concretizar, depois de uma candidatura ao Fundo Ambiental, as largas dezenas de condóminos contam passar a beneficiar de um potencial instalado que quase triplicará os valores actuais, totalizando cerca de 77 kWp.
Encontrámos Vasco à porta de um dos blocos do condomínio. Apanhámos o elevador para o oitavo andar e, dali, uma pequena escada metálica deu-nos acesso ao alçapão que conduz à cobertura do edifício. Lá em cima, com vista privilegiada para a pista do aeroporto de Lisboa e com o ribombar constante dos motores que se preparam para descolar, estamos rodeados de painéis solares e expostos ao sol intenso de um dia quente de Junho.
As questões que se levantam nas reuniões deste condomínio não diferem em nada das que se levantam nos condomínios do resto do país. Alguns pagamentos em falta e a necessidade de reduzir custos podem ter ajudado a digerir a ideia de investir na produção de energia renovável para autoconsumo colectivo. Cortar na manutenção dos elevadores ou no salário das pessoas que trabalham no condomínio não era, naturalmente, uma opção, pelo que, conta Vasco, a ideia de poupar na factura energética através de um investimento pode ter ajudado ao resultado desta reunião de condomínio – um consenso quanto à proposta para a instalação dos primeiros painéis.
“É das poucas coisas que têm sido aprovadas por unanimidade no condomínio, o que é uma coisa estranha”, relata. A decisão de instalar os primeiros painéis solares fotovoltaicos foi tomada sem qualquer oposição. Com dívidas que foram sendo sanadas ao longo dos primeiros anos em que Vasco foi morador, a gestão financeira do condomínio estava a correr bem, facto que pode ter sido decisivo na hora da votação unânime. Com dinheiro que o condomínio tinha aforrado, foi possível dar o passo sem pedir mais dinheiro aos moradores.
Por ser interessado na questão e promotor inicial da iniciativa colectiva do condomínio, ficou desde então com esta pasta a seu cuidado. “Sou um bocadinho o campeão desta causa”, admite.
Tudo começou com a promessa de se ir “investindo devagarinho para começar a reduzir o custo da factura energética”. Na primeira intervenção, em 2017, foram instalados dois conjuntos de painéis de 1,5 kWp nos blocos F e G. Nesta primeira fase, não foram instalados quaisquer dispositivos de monitorização da produção; esses só chegariam mais tarde, quando o potencial de produção de energia a partir do sol ganhou maior escala. Apesar disso, foi rapidamente considerada um sucesso. “Não sabíamos se estávamos a produzir muito ou não, mas as pessoas gostaram da ideia.”
A acompanhar as várias fases de investimento e o sucesso reiterado das várias instalações, tem estado uma comissão de acompanhamento, constituída por “meia dúzia de condóminos”, e, entre os vizinhos, já se assume a normalidade do desenvolvimento da instalação solar por etapas. “Já assumiram um pouco que esse trabalho vai continuar a fazer-se”, diz.
Um condomínio que se tornou numa CER
As CER só agora começam a dar os primeiros passos em Portugal. A consagração das comunidades de energia renovável, na legislação de 2022, veio possibilitar e promover a produção, o consumo, a partilha, o armazenamento e a venda da energia produzida a partir de fontes de energia renovável, sendo que estas CER se assumem como actores com papel activo na transição energética.
Fala-se de comunidades de energia renovável desde 2019, mas, até aí, os registos de constituição de CER eram escassos. Agora, com a transposição da directiva europeia relativa à promoção de energia de fontes renováveis, materializada no Decreto-Lei n.º 15 de 2022, sem esquecer o contributo da crise energética, está em curso uma rápida mudança e uma reconfiguração da paisagem energética.
Até ao fim de Janeiro, tinham sido submetidos à DGEG 372 processos de licenciamento. Entre esses, 95 tinham já aprovação. Para além das centenas de processos em andamento, muitas outras CER e muitos outros projectos de autoconsumo colectivo estarão neste momento a dar passos seguros em frente. A CER da Alta de Lisboa é já um caso confirmado.
Em 2022, houve um esforço do Estado para a promoção de iniciativas cidadãs de autoconsumo colectivo e para a criação de comunidades de energia renovável, e a CER da Alta de Lisboa esforçou-se por tirar partido disso mesmo, candidatando-se à chamada do Fundo Ambiental, com fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e com um orçamento de 30 milhões de euros para distribuir por comunidades de energia renovável, autoconsumidores e Entidades Gestoras de Autoconsumo (EGAC). No âmbito desta chamada, serão comparticipados investimentos em iniciativas desta natureza em edifícios residenciais, da administração pública central e de comércio e serviços. No caso dos edifícios residenciais, a comparticipação chega aos 70 %. A data-limite para as candidaturas chegou no final do mês de Fevereiro, decorrendo agora a respectiva análise.
O sector produtivo que comporta as CER e o Autoconsumo Colectivo – pilares essenciais para a descentralização da produção energética – só agora começa a dar de si no panorama energético nacional, mas o seu crescimento recente é já comprovado pelos números da DGEG.
Se em 2016 a produção descentralizada de energia registava uma capacidade de produção de apenas cerca de 290,7 MWh, em 2019, esse valor já se situava nos 541,9 MWh e, em Abril de 2023, segundo o relatório da DGEG, foram alcançados 1436 MWh, um crescimento de 394 % face a 2016 e de 165 % relativamente a 2019.
A primeira instalação de uma UPAC do condomínio da Alta de Lisboa foi concretizada há já seis anos, mas só recentemente foi constituída a CER.
Questionado sobre a dificuldade de convencer as pessoas quanto à ideia de instalar capacidade de produção de energia nas coberturas do condomínio, Vasco explica, na sua experiência, que numa primeira fase “as pessoas olham mais para a parte financeira”. Existindo a disponibilidade financeira para um investimento faseado, como houve, tudo se torna mais fácil.
“Conto sempre esta história, que é um bocadinho uma caricatura, mas acaba por ser verdade, sobretudo em condomínios muito grandes. Há sempre aquelas pessoas que não ligam aos assuntos do condomínio, mas que, quando há uma assembleia, vão queixar-se de que não sei quê está avariado.”
O “ruído” que reconhece passar-se na maioria das assembleias de condomínio pode descer de intensidade quando a proposta que se faz não requer uma despesa adicional, diz. Há seis anos, Vasco explicou o plano, o investimento que estaria envolvido na primeira fase e também como e quando o condomínio poderia recuperar o investimento. “É preciso que as coisas façam sentido economicamente – o que as pessoas não querem é ouvir falar de gastar dinheiro.”
Em 2017, quando apresentava a proposta ao condomínio, colocava as coisas desta forma: “o objectivo é gastar este dinheiro para depois, no médio prazo, recuperar-se esse dinheiro e poupar-se, no fim, para a perpetuidade, no consumo eléctrico do condomínio”. Hoje, e dependendo dos perfis de consumo, afirma Vasco, “é perfeitamente possível fazer uma instalação desta natureza que se amortiza em dois, três, quatro, cinco anos”.
Por fases: primeiro as partes comuns do condomínio, depois os consumos domésticos
Depois do sucesso da primeira pequena instalação, veio a segunda, em 2018. Instalou-se um potencial adicional total de cerca de 14,6 kWp nas coberturas dos blocos A, E e H, e, em 2021, foi feita a última instalação até ao momento. Nesta última etapa, foi instalado um potencial adicional de cerca de 9,7 kWp.
Actualmente, a capacidade instalada de 27,3 kWp está a alimentar oito Códigos de Ponto de Entrega (CPE) das partes comuns do condomínio, aqueles que hoje estão associados à CER, subtraindo a produção própria ao consumo que provém da rede.
Com o aumento previsto da produção de energia, os moradores têm planos mais ambiciosos para a recém-constituída CER.
Por agora, existe a certeza de não estar a ser produzido um excedente. A totalidade da produção está a alimentar as partes comuns, a sua iluminação e os seus equipamentos como são os extractores que se encontram em constante funcionamento nos edifícios.
Uma vez alcançada a capacidade de produção de 77 kWp, o objectivo é que os condóminos possam “beneficiar directamente nas suas próprias contas de electricidade”, explica Vasco. Com o aumento da produção, existe a ambição de instalar capacidade de armazenamento, já que a hipótese de existência de um excedente de produção vai crescer com o substancial aumento previsto da capacidade de produção de energia eléctrica. A importância da instalação de capacidade de armazenamento é explicada sobretudo pelo desfasamento horário que se verifica entre o pico de produção, registado “entre as 11 horas da manhã e as cinco da tarde”, e as horas de maior consumo, geralmente “entre as seis e as nove da noite”. Armazenando o excedente potencialmente produzido, “conseguiremos uma diferença do ponto de vista do custo”, refere Vasco.
“A ideia será manter 80 % da produção eléctrica alocada aos CPE das partes comuns”, passando a ser distribuídos os restantes 20 % da produção de acordo com a permilagem dos condóminos, facto que permitirá descontar directamente na factura energética dos moradores.
Antes ainda de serem instalados sistemas de monitorização da produção – estes, ao dia de hoje, só foram implementados nos equipamentos instalados mais recentemente –, Vasco Pimenta calculava cerca de oito mil euros de poupança anual na factura energética dos quadros afectos às partes comuns do condomínio.
No total, foram já instalados 27,3 kWp através de um investimento de cerca de 30 mil euros. Na próxima fase, a ambição é instalar um potencial que permita chegar a um potencial total de 77 kWp, através de um investimento de cerca de 15 mil euros, que deverá ser comparticipado pelo Fundo Ambiental e que deverá permitir um potencial adicional significativo de cerca de 50 kWp, praticamente triplicando a capacidade actual. Neste momento, o condomínio espera pelo resultado da candidatura à chamada do Fundo Ambiental para avançar com a instalação que possibilitará cobrir com painéis solares fotovoltaicos uma área “muito próxima” da totalidade da cobertura do condomínio dotada de potencial solar.
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Coopérnico e apoios públicos à criação de CER
Apesar de estar quase sozinho na promoção da CER, Vasco confessa que não lhe dá muito trabalho e que “agora as pessoas estão mais despertas, já fazem mais perguntas e querem saber [como funciona]”.
No meio de um universo que lhe desperta interesse, mas que não domina, Vasco “tropeçou” na Coopérnico, uma cooperativa de energias renováveis portuguesa que tem sido responsável pela instalação de capacidade produtiva e pela promoção das CER em Portugal.
Vasco tornou-se cooperante e, desde então, tem tirado partido do conhecimento e da disponibilidade dos membros da cooperativa, que se têm revelado fundamentais na navegação da legislação e na burocracia associada à produção de energia para autoconsumo, bem como na constituição da CER.
Com a nova legislação em vigor, navega-se em território quase desconhecido e, afirma Vasco, “ninguém sabe muito bem quais é que são os passos. As pessoas vão descobrindo e as próprias entidades públicas não sabem o que fazer. [Há] Entraves do ponto de vista orgânico para os quais eu, enquanto cidadão, não teria tido tempo nem pachorra; não teria conseguido fazer nada disso [sem a ajuda da Coopérnico]”.
O impulso recentemente dado à constituição de CER pode ser apenas o início de um processo de descentralização da produção e de aumento da independência energética por parte dos cidadãos. É nisso que acredita Vasco Pimenta, que considera “um mistério ser tão rara” a constituição de comunidades de energia renovável.
“Faz sentido do ponto de vista da hierarquia das redes e das perdas de energia que se registam na rede distribuição; faz sentido do ponto de vista das pessoas alcançarem um pouco mais de independência financeira; faz sentido do ponto de vista ambiental. Faz sentido de todos os pontos de vista e, portanto, acho que seria óptimo que as pessoas estivessem mais despertas para isto.”
Artigo publicado originalmente na edição de Julho/Agosto de 2023 da Edifícios e Energia