Artigo publicado originalmente na edição de Maio/Junho de 2023 da Edifícios e Energia
Foi com enorme satisfação que soube da publicação do Aviso do Fundo Ambiental dirigido especificamente à reabilitação de condomínios, através do qual, pela primeira vez, um gestor de condomínio pode, agora, de forma centralizada, promover uma intervenção global em todo o edifício, sem ter de envolver candidaturas individuais de cada um dos condóminos. Há muito que já tinha escrito que sem facilitar as intervenções nos condomínios, onde vive mais de metade da população nas cidades, nunca seria atingida a meta da descarbonização do setor dos edifícios em Portugal. Nenhum dos apoios até aqui disponibilizados permitia uma candidatura de um condomínio de forma tão expedita e, portanto, bastava que um único dos condóminos não alinhasse num projeto comum, ou não fosse elegível (por exemplo, por ser uma segunda habitação ou por ter um qualquer atraso num pagamento de impostos, entre outros motivos para exclusão), e caía pela base qualquer iniciativa de reabilitação global de um prédio abrangido pelo regime de condomínio.
Foi também com muita satisfação que tomei conhecimento de que a proposta que o Governo enviou para a Assembleia da República no pacote da habitação prevê o fim do requisito da unanimidade dos condóminos para aprovar uma intervenção de reabilitação energética de um condomínio. Todos os que já participaram em assembleias de condomínio conhecem bem a dificuldade em obter unanimidade sempre que se trata de aprovar algo que envolva custos para os condóminos. Quanto maior o número de condóminos, maior a probabilidade de algum dizer que não paga. E, não se tratando de uma intervenção obrigatória, por exemplo, eliminar uma entrada de água pela cobertura, qualquer intervenção opcional (e a melhoria da eficiência energética caberia, certamente, nesta classificação), sobretudo uma com custos significativos como isolar toda a envolvente ou substituir todas as janelas para novas caixilharias de vidro duplo, teria enormes hipóteses de não ser aprovada pelo voto negativo de um único condómino. Fica, assim, uma maioria dos condóminos protegida da intransigência ou falta de razoabilidade de uma minoria. É uma medida indispensável. Sem ela, poucos serão os condomínios que farão uma renovação com vista a melhorarem a sua eficiência energética.
Mas… há sempre um mas, neste caso, vários “mas” muito sérios.
Essa satisfação rapidamente arrefeceu quando li o texto do Aviso do Fundo Ambiental. Mesmo tratando-se de um piloto para preparar outros avisos futuros no mesmo sentido, desejavelmente melhorados, e, portanto, tendo um orçamento bastante limitado, poderá esgotar as parcas verbas disponíveis com os casos mais fáceis de low-hanging fruit, assunto sobre o qual também já escrevi anteriormente. Tem, portanto, todos os componentes para ser, no fim, mais outro Aviso classificado como um caso de sucesso por quem o lançou, mas as demasiadas deficiências no seu desenho e nos condicionalismos da sua implementação deixam-me profundamente desiludido e, até, um pouco descrente. Tem todo o potencial para promover más práticas de reabilitação e resultar em edifícios teoricamente já renovados, mas, na realidade, muito mal renovados. Passo a explicar porquê:
1. Primeiro, e mais importante, diria mesmo, “o pecado original”: os velhos edifícios nacionais não têm isolamento e têm envidraçados com vidros simples, muitos deles com caixilharia de alumínio. Dados da ADENE mostram que há 400 000 edifícios multifamiliares em Portugal, que alojam 2,9 milhões de famílias (ou seja, com uma média de sete condóminos por edifício), dos quais 95 % foram construídos antes de 2006, dois terços dos quais mesmo antes do primeiro RCCTE de 1990 se aplicar – como se sabe, este primeiro RCCTE não obrigava ainda ao vidro duplo, o que só aconteceu com revisões da regulamentação posteriores a 2006, na sequência da primeira versão da Diretiva Europeia sobre a Eficiência Energética dos Edifícios e, mesmo aí, apenas numa pequena parte de Portugal. Serão estes os principais candidatos à renovação, pois, após 2006, o isolamento térmico das envolventes passou a ser uma quase obrigatoriedade, com muito pequenas exceções em circunstâncias muito especiais, e os vidros duplos apenas fortemente recomendados, mas ainda não obrigatórios, na prática, até à revisão da regulamentação térmica de 2013.
Ora, este Aviso apenas financia o isolamento dos edifícios multifamiliares. Exclui expressamente o apoio à alteração dos envidraçados. Ou seja, vai promover edifícios com envolventes opacas bem isoladas, mas cheias de “buracos” térmicos de vidro simples, onde as perdas térmicas se manterão enormes e inalteradas, mas com a agravante de um contraste muito maior entre o comportamento térmico das zonas opacas e das zonas envidraçadas. Vão, certamente, aumentar os problemas com as condensações nas zonas de fronteira.
Seja o isolamento aplicado pelo exterior (a solução mais desejável), seja o pelo interior, os remates a fazer entre os isolamentos (e respetivos acabamentos) e os vãos envidraçados vão tornar difícil substituir a posteriori os vidros simples por duplos, ou mesmo colocar janelas duplas, sem destruir de novo esses remates, aumentando custos para quem os quiser vir a colocar no futuro (além de que a substituição de janelas fração a fração vai provocar questões estéticas, pois a probabilidade de serem instaladas janelas diferentes em cada fração, sobretudo se feitas em tempos distintos, será enorme).
[Este Aviso] Tem todo o potencial para promover más práticas de reabilitação e resultar em edifícios teoricamente já renovados, mas, na realidade, muito mal renovados.”
Vamos condenar os edifícios agora isolados com o apoio deste Aviso a manterem o vidro simples ainda durante muitos, muitos, anos. É uma falta de visão atroz. Resta apenas a esperança de que seja permitido combinar e acumular os apoios deste Aviso com os do outro programa, já em curso, que subsidia a substituição de vidros simples por vidros duplos, fazendo esta mudança antes ou aquando da intervenção de isolamento no condomínio, tendo, no entanto, a enorme limitação de o apoio para instalar vidro duplo ter de ser solicitado individualmente por cada condómino, fração a fração.
2. Segunda limitação importante: o Aviso incentiva o isolamento dos edifícios sem a prévia elaboração de um projeto por um técnico qualificado! Não proíbe, claro, mas o custo do projeto não é um custo elegível, o que vai levar a grande maioria dos gestores de condomínio a poupar. E, portanto, o que vai acontecer? Na maioria dos casos, o gestor do condomínio vai simplesmente pedir propostas a vários empreiteiros, cada um dos quais tentará fazer o preço mais barato, mesmo que tenha que cortar nalguns cantos, pois, já sabe, a empreitada vai ser entregue quase sempre à proposta mais barata. Os gestores dos condomínios, e os proprietários das frações, não são normalmente especialistas nestas tecnologias de isolamento e não terão capacidade de definir um caderno de encargos com os requisitos mínimos para o projeto; vão pedir “uma solução que funcione” e serão os empreiteiros, qualquer empreiteiro, bom ou menos bom, a fazerem o papel de projetista. Os gestores vão confiar nos empreiteiros e em ficarem dependentes deles. Haverá garantias, mas todos sabemos também como estas funcionam. Os riscos de não serem aplicadas as melhores soluções são claros, com as subsequentes patologias a ficarem claras num prazo mais ou menos curto, provavelmente pouco após o final do período da garantia.
O Aviso indica a necessidade de acompanhamento da obra por um Perito Qualificado que confirme o “antes” e o “depois” da aplicação do isolamento, e a sua boa execução, mas este não terá certamente o poder de dizer que a solução de isolamento não é a melhor; apenas irá confirmar que o executado foi o solicitado no orçamento da operação e que esta cumpre estritamente apenas o que o Aviso exige, como garantia para o pagamento do apoio pelo Estado.
3. Terceira grande limitação, agora para o financiamento das intervenções: o Aviso exige que, aquando da candidatura, mesmo antes de se saber se a candidatura vai ser bem sucedida, o condomínio demonstre que tem, depositada num banco, em conta própria, a totalidade dos fundos necessários para cobrir o diferencial entre o custo total da obra e o valor do subsídio a atribuir pelo Fundo Ambiental – alínea e) do ponto 9.2 do Aviso.
Na maioria dos condomínios, o fundo de reserva existente não será suficiente para cobrir 100 % das verbas necessárias para a colocação do isolamento (vou deixar de lhe chamar renovação, pelas razões já expostas), o que obrigará a pagamentos em regime de adiantamento por todos os condóminos, antes que a candidatura possa sequer ser entregue. Vai ser preciso marcar uma Assembleia de Condóminos (provavelmente extraordinária, pois o Aviso tem prazos incompatíveis com a habitual reunião no 1.º trimestre de cada ano civil; o prazo, se não for adiado, termina a 28 de dezembro de 2023) para aprovar uma quota adicional para as obras e fixar um prazo curto para que todos paguem e para que a verba fique disponível na conta do condomínio para este poder fazer prova da existência dessa verba no ato da submissão da candidatura. O gestor do condomínio, se tiver começado a preparação da candidatura no dia da publicação do Aviso, terá, no máximo, cerca de nove meses para fazer todos os preparativos, incluindo pedir orçamentos, obter licenças camarárias, ter a aprovação dos condóminos e conseguir ter todo o dinheiro necessário depositado na conta – sem isso, não cumpre os requisitos para a aprovação da candidatura!
Eu compreendo a motivação da exigência prévia da verba disponível para pagar as obras de isolamento térmico, mas poderiam, talvez, ter sido encontradas formas de facilitar o pagamento de verbas algo avultadas ao longo de um prazo mais longo, com alguns pagamentos possíveis antes da aprovação da operação e não a totalidade antes da data de submissão da candidatura. Bastava uma aprovação da operação condicionada ao aparecimento das verbas, e os condóminos certamente se sentiriam muito mais motivados a pagar por algo que já soubessem estar aprovado do que a pagar para algo que pode nem sequer vir a ser aprovado por um qualquer mero detalhe técnico que falhe na candidatura. É também bem sabido que a população portuguesa não abunda em disponibilidade financeira e esta exigência pode fazer limitar este tipo de intervenções a condomínios destinados à pequena fração dos proprietários com maior capacidade financeira (como se diz, aos condomínios de luxo, que, se calhar, até já são mais modernos e já estão isolados…).
4. Quarto problema: o valor do incentivo e o valor a pagar pelos condóminos. Embora o Aviso diga que paga até 80 % do custo global, a realidade vai demonstrar que o custo para os condóminos vai ser, efetivamente, bastante maior do que 20 % do total. Se certos custos podem ser evitados, por exemplo, o custo do projeto – não se faz projeto! –, outros não elegíveis são inevitáveis, nomeadamente o IVA e as licenças camarárias. E o preço limite fixado no Aviso não está ajustado aos custos reais de instalação dos isolamentos, nem nas fachadas (pelo exterior), nem nas coberturas em terraço (por exemplo, note-se que o Aviso fixa o mesmo valor limite para uma cobertura e para um pavimento sobre garagem, o que é absolutamente incomparável no caso de coberturas em terraço). Portanto, em muitos casos, os 80 % dos custos reais de isolamento vão exceder (bastante…) o máximo que o condomínio pode receber por cada fração.
Embora o Aviso diga que paga até 80 % do custo global, a realidade vai demonstrar que o custo para os condóminos vai ser, efetivamente, bastante maior do que 20 % do total.”
Para além disso, o Aviso estabelece esses limites por fração, independentemente da sua área. Ou seja, o máximo apoio é igual para um T0 de 25 m² ou para um T4 de 200 m². Ou seja, favorece os edifícios com frações mais pequenas.
Mas, apenas para efeitos de ilustração, analise-se um prédio muito habitual, isolado, de quatro pisos, esquerdo e direito, ou seja, com oito frações, cada um com uma média de 120 m² de área útil de pavimento o que, com as partes comuns, daria uma forma retangular com 15 m por 20 m. Admita-se garagem comum (em cave) e cobertura em terraço. Há que isolar cerca de 650 m² de fachada (o resto serão vãos envidraçados), pelo exterior, 300 m² de terraço e 300 m² de laje de separação para a garagem. Admita-se um custo médio de isolamento de 60 €/m² (será difícil fazer bem mais barato, considerando a necessidade de colocar andaimes e soluções correntes de qualidade aceitável). O custo será da ordem dos 75 000 euros. Os limites impostos pelo Aviso são oito frações com a atribuição de 4 750 euros a cada uma para isolar as paredes, e quatro frações com a atribuição de 4 000 euros a cada uma para isolar cobertura e pavimentos, o que totaliza 54 000 euros. Portanto, bastante menos do que o valor necessário para a intervenção. O custo para os condóminos será, portanto, o diferencial entre o custo real e o incentivo concedido (21 000 euros) mais o IVA sobre a totalidade do custo (admitindo 6 % de IVA para toda a intervenção, o valor a pagar será de 4 500 euros). A isto acrescem os custos com as licenças camarárias e os serviços do Perito Qualificado que fará a certificação do projeto. No mínimo, no entanto, estamos a falar de 25 000 euros, ou seja, mais de 3 000 euros por condómino. A verdadeira taxa de reembolso do apoio será, portanto, inferior a 70 % e não os 80 %, que, à primeira vista, são prometidos. Enfim, quase 70 % ainda é bom… mas 80 % era melhor.
A percentagem real de comparticipação pode ser menor em casos especiais em que a componente “isolamento de terraços” tenha mais peso no edifício, e até pode ser próxima dos 80 % se as coberturas forem em desvão, onde o custo do isolamento é bem menor.
Dando de barato que a exigência de entregar, aquando da candidatura, as fotografias demonstrativas de que o isolamento já foi aplicado é uma gralha do Aviso e que esse detalhe será corrigido (alínea j do ponto 9.2 do capítulo “Documentos a submeter com a candidatura”: Registo fotográfico que comprove a implementação de cada tipologia de intervenção prevista na candidatura, devendo evidenciar as frações autónomas abrangidas e a execução dos trabalhos, antes, durante e após a intervenção), uma vez que o Aviso indica, logo no início, no ponto 6.3, que só “são elegíveis candidaturas cujas intervenções estejam por realizar à data de submissão da candidatura”, não deixa de se estar perante um processo com alguma exigência formal e técnica que muitos (a maioria?) dos gestores de condomínio terão alguma dificuldade em implementar de forma eficaz e atempada. Certamente, haverá consultores que lhes farão esse trabalho, mas, claro, não deixarão de cobrar os seus honorários, não elegíveis para apoio, e, portanto, de aumentar ainda mais os custos globais do projeto e reduzir ainda mais a taxa de compartição real do Estado para o isolamento do condomínio.
Conclusão
Este Aviso, que disponibiliza 12 milhões de euros para isolar edifícios, é, sem dúvida, um marco importante, pois é o primeiro a reconhecer a figura legal do condomínio como beneficiário direto de um apoio do Estado para a sua renovação energética, tendo em vista o objetivo de longo prazo da descarbonização total do setor dos edifícios até 2050. Só por isto, é ótimo que tenha aparecido e que tenha sido anunciado como um piloto a repetir, com os devidos ajustes, em anos futuros.
Espero que, da aplicação concreta e prática deste Aviso, sejam retiradas as devidas conclusões e que os próximos Avisos para reabilitação (não apenas de isolamento térmico, por favor) de condomínios sejam muito melhores e que corrijam todos os problemas de ordem técnica e administrativa, ou dificuldades de implementação, que forem identificados. Espero que os responsáveis pelas políticas públicas que lançaram este Aviso recolham, no futuro, um leque alargado de contributos, incluindo dos potenciais beneficiários e de quem possa especificar e executar as intervenções de renovação térmica, quando lançarem novos Avisos para este mesmo fim nos próximos anos.
Fica apenas o gosto muito amargo de o Aviso não permitir uma reabilitação energética global de um edifício multifamiliar. Teria preferido ver, com o mesmo dinheiro disponível, menos edifícios bem intervencionados do que um número maior de edifícios com uma intervenção limitada. No longo prazo, é uma estratégia má que vai acabar por exigir mais custos nos edifícios agora intervencionados ao abrigo deste Aviso para se atingir a grande meta da descarbonização total até 2050.
Balanço final: este Aviso será bom? É algo questionável. Tem pontos muito positivos, mas falha num ponto-chave e tem várias limitações que dificultam a sua implementação no terreno. Mas sejamos positivos: pesados os prós e os contras, vale a pena termos este Aviso, e quem quiser, e puder, que aproveite. Mas, a quem puder, apelo a que tente mesmo fazer a mudança para vidros duplos ANTES de fazer o isolamento do condomínio… o Aviso permite um prazo de execução do isolamento de dois anos, e, portanto, podem tentar obter apoio à mudança para o vidro duplo no entretanto. Ficará muito melhor no fim!
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.