A recente transposição da directiva europeia para a legislação portuguesa veio facilitar a constituição de comunidades de energia renovável (CER), mas a falta de informação e apoio técnico coloca em causa a inclusão de quem não está familiarizado com o jargão energético. A resposta pode estar na capacitação e na informação dadas aos cidadãos pelas autarquias locais. Em Telheiras, a criação de uma CER para lutar localmente contra a pobreza energética gera entusiasmo.

O Autoconsumo Colectivo (ACC) e as Comunidades de Energia Renovável (CER) estão a gerar cada vez mais interesse. A incerteza nos preços da energia veio aliar-se à abertura legal trazida pela transposição para a legislação portuguesa da directiva europeia relativa à promoção da utilização de energia de fontes renováveis e, hoje, dão corpo a uma procura inédita por um novo paradigma na energia: a produção de energia renovável descentralizada e ancorada na comunidade, na proximidade.

Em Portugal, o interesse está a aumentar, mas o buzz criado parece ainda estar contido dentro de grupos de cidadãos com conhecimento técnico e interesse pelas renováveis e pela descentralização da produção energética. O desafio, agora, está em democratizar o acesso às CER, motivando o interesse e a participação activa do resto da população, ainda bastante caracterizado pela iliteracia energética. Se esse obstáculo – um dos maiores – for transposto com sucesso, a constituição de comunidades de energia renovável por todo o país pode ter o condão de agir de modo positivo e decisivo sobre um dos maiores desafios sociais no sector dos edifícios em Portugal – a pobreza energética.

Com a promessa de um licenciamento agilizado e com a garantia de isenção de IRS até aos mil euros na venda do excedente de energia produzido, o autoconsumo colectivo e as comunidades de energia renovável ganham adeptos em Portugal a bom ritmo e prenunciam a chegada de mudanças num mercado energético que ganhara o hábito de não se preocupar com a disrupção e a novidade.

A transposição da directiva europeia significou, para o mercado nacional, a diminuição substancial dos encargos relativos à ligação das Unidades de Produção para Autoconsumo (UPAC) à Rede Eléctrica de Serviço Público (RESP), mas significou, sobretudo, a construção de um novo quadro legal que consagra a figura da comunidade de energia renovável.

A possibilidade da organização comunitária em torno da produção de energia renovável não só reverte favoravelmente para os objectivos de acção climática e transição energética formalmente assumidos pelo Estado português – como são os de atingir a neutralidade carbónica até 2050 ou alcançar uma taxa de 47 % de produção energética a partir de fontes renováveis até 2030 –, como aporta benefícios bem mais particulares e aliciantes, como será a redução da factura energética e, se tudo correr bem, a redução da pobreza energética.

Com a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza Energética a assumir o objectivo de reduzir de 17,4 % para 10 % a percentagem de portugueses sem dinheiro para aquecer a casa no Inverno até 2030, paira a expectativa de que figuras como a CER possam desempenhar um papel central nesta matéria. A pobreza energética severa atinge, hoje, cerca de 700 mil pessoas em Portugal, mas segundo a Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2021-2050, estima-se que a pobreza energética possa afectar entre 1,9 e três milhões de pessoas no país, numa altura em que 1,2 milhões de agregados familiares (e cerca de três milhões de pessoas) gastam mais de 10 % dos seus rendimentos com despesas energéticas.

O que são, afinal, comunidades de energia renovável?

A consagração legal das CER vem possibilitar que cidadãos e entidades públicas produzam, consumam, partilhem, armazenem e vendam a energia produzida a partir de fontes de energia renovável, participando, assim, activamente, na transição energética.

Alekson Luz, técnico de produção na Coopérnico, uma cooperativa de energias renováveis portuguesa, explica que uma CER “é uma comunidade em que temos um grupo de cidadãos – pode ser num prédio, num condomínio – a produzir energia e a partilhar essa energia que está a ser produzida”.

O desafio, agora, está em democratizar o acesso às CER, motivando o interesse e a participação activa do resto da população, ainda bastante caracterizado pela iliteracia energética.”

A definição portuguesa de CER decorre, em boa parte, da definição aprovada pela Comissão Europeia, com algumas diferenças. Miguel Macias Sequeira, investigador e especialista em clima e energia, é particularmente adepto da definição europeia, já que ganha forma a partir “dos movimentos das cooperativas de energia, até como resposta ao nuclear na Europa”, conta. O também doutorando no CENSE, o centro para a investigação ambiental e em sustentabilidade da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, destaca o papel, por definição, das CER na utilização dos proveitos da energia renovável produzida localmente para as necessidades locais. “A participação deve ser aberta e voluntária” e a gestão “autónoma, controlada pelos seus membros que devem estar na proximidade”. Para além de participarem na transição energética e contribuírem para as metas de acção climática, as comunidades de energia renovável fazem descer a factura energética e os excedentes, quando existem, servem o funcionamento da própria CER ou são aplicados na comunidade. “Os benefícios são ambientais, sociais e económicos, em vez de benefícios financeiros.”

Na transposição para a lei portuguesa, estes preceitos são conservados, mas há, para Miguel Macias Sequeira, uma pequena diferença na hora em que a legislação determina quem pode, ou não, ser membro de uma CER. Se a directiva europeia define que podem ser membros “pessoas singulares, Pequenas e Médias Empresas (PME) ou autoridades locais, incluindo municípios”, a lei portuguesa parece deixar mais algum espaço de manobra, abrindo a porta à constituição de CER por parte de grandes empresas.

Lê-se, no Artigo 189.º do Decreto-Lei que consagra a figura de CER, que podem ser membros ou participantes numa comunidade de energia renovável “sócios ou accionistas, os quais podem ser pessoas singulares ou colectivas, de natureza pública ou privada, incluindo, nomeadamente, pequenas e médias empresas ou autarquias locais”. Para Miguel Macias Sequeira, a grande diferença está no facto de a figura das CER em Portugal não se cingir à forma comunitária e de proximidade patente na definição europeia.

“Ao colocar o «incluindo», [a definição] acabou por abrir a porta a outras entidades que existem no mercado de energia. A questão é que abre as portas às grandes empresas de energia e tudo o que estava a dizer sobre autonomia e controlo deixa de existir – esta perspectiva da participação cidadã e da democracia energética acaba por ficar de lado quando se trazem estes players que têm um poder completamente diferente”, explica. O especialista considera que “pode ser bom e pode ser mau”, mas apresenta-se céptico: “se estamos a trazer entidades com fins lucrativos para uma coisa que não deve ter fins lucrativos, alguma coisa não conjuga”. Admitindo que talvez seja necessário permitir a entrada de grandes actores “porque têm o conhecimento técnico e o financiamento necessário para alavancar as comunidades de energia”, lembra, porém, que “é preciso algum cuidado para garantir que os benefícios de que se fala – ambientais, locais, sociais, económicos – se materializam de facto. Caso contrário, a parte da descentralização do poder e da participação fica de fora”.

Tem tudo a ver com o papel que cidadãos, organizados colectivamente ou de forma individual, podem desempenhar no âmbito do Serviço Energético Nacional (SEN), já que, decorrida a transposição da directiva europeia, em 2022, para a lei portuguesa, podem, agora, passar “de meros consumidores passivos para agentes activos que produzem electricidade para autoconsumo ou para venda de excedentes, armazenam [energia] e oferecem serviços de flexibilidade e agregam produção”, assim se lê no Decreto-Lei n.º 15 de 2022.

A ADENE – Agência para a Energia e a DGEG – Direcção-Geral de Energia e Geologia definem uma CER como “uma pessoa colectiva, constituída mediante adesão aberta e voluntária dos seus membros, sócios ou accionistas, os quais podem ser pessoas singulares ou colectivas, de natureza pública ou privada, incluindo, nomeadamente, pequenas e médias empresas ou autarquias locais”.

Para que se constitua uma CER, é necessário que os membros ou participantes se encontrem próximos dos projectos e que a propriedade dos equipamentos e a produção energética sejam dos próprios membros ou de terceiros, sendo o objectivo principal “propiciar aos membros ou às localidades onde opera a comunidade benefícios ambientais, económicos e sociais, em vez de lucros financeiros”.

Podem ser de aparência idêntica, até à luz da legislação, mas autoconsumo colectivo e comunidades de energia renovável têm diferenças palpáveis entre si. Em Portugal, as CER são mais badaladas, afirma Miguel Macias Sequeira, e a verdade é que “podem fazer muito mais coisas” do que as que são permitidas ao abrigo da figura do autoconsumo colectivo. “Podem ter um papel mais activo no mercado, podem meter-se em questões de mobilidade, podem meter-se em projectos de eficiência energética”, esclarece.

Produzir entre vizinhos e reduzir a pobreza energética: a CER de Telheiras

As barreiras começaram a cair e, hoje, sente-se o interesse em torno das CER. Alekson Luz explica a queda de um dos obstáculos: “antes de 2022, o obstáculo era exactamente a parte da inscrição nas finanças – a abertura de actividade para vender esse excedente. A partir do início deste ano, esse obstáculo foi minimizado e já não é preciso abrir actividade nas finanças para fazer a venda do excedente”. Hoje, o comprador de energia – papel que a Coopérnico também desempenha – “faz essa comunicação directamente às finanças. Já não existe, em termos burocráticos, nenhuma dificuldade por parte do produtor para conseguir vender o excedente e ainda existe o benefício da isenção de IRS até aos mil euros. Nas comunidades muito pequenas, é muito difícil atingir mil euros, portanto, é um óptimo benefício colocado na legislação que saiu e que tem vindo a aumentar a venda de excedente das unidades de produção para autoconsumo”, lembra o técnico da Coopérnico, que é também responsável pela monitorização das 33 centrais de produção de energia renovável que integram a cooperativa.

No bairro de Telheiras, na freguesia lisboeta do Lumiar, um concurso de ideias lançado por um grupo cívico em 2020 foi a semente para a criação de uma CER que está agora a arrancar com um projecto piloto e pretende contribuir para o combate local à pobreza energética.

Já não existe, em termos burocráticos, nenhuma dificuldade por parte do produtor para conseguir vender o excedente e ainda existe o benefício da isenção de IRS até aos mil euros.”

Alekson Luz

No concurso, preencheram-se papéis, cada um com uma ideia. Uma das ideias a ter seguimento dizia respeito à criação de um grupo de limpeza de resíduos, mas muitas das outras ideias “iam no sentido da energia e clima”, com um foco nas energias renováveis, mas também na pegada carbónica. Ao serem analisadas à lupa pelos responsáveis da iniciativa, percebeu-se que as ideias constituíam, na realidade, a ideia de uma comunidade de energia renovável. Assim, começou a nascer a CER de Telheiras.

Miguel Macias Sequeira é um dos voluntários na Viver Telheiras, organização que comunica iniciativas locais e coordena a Parceria Local de Telheiras, grupo que junta fregueses e instituições locais. Foi com este grau de proximidade que começou a desenvolver a CER com outros fregueses interessados. Tudo com o objectivo de produzir energia renovável e partilhá-la entre vizinhos. Em plena pandemia, a dinâmica e o interesse de vizinhos e fregueses foi crescendo e os eventos para a maturação da ideia chegaram a juntar 50 pessoas presencialmente e outras tantas on-line, para além de contarem com a participação de Ricardo Mexia, presidente da junta de freguesia do Lumiar, que também se associou à ideia.

O grupo de trabalho formado começou a reunir-se mensalmente e a olhar para os edifícios do bairro, principalmente para os edifícios públicos, procurando identificar os telhados com maior potencial para a produção de energia. Dispunham já de proximidade com a junta de freguesia do Lumiar, território ao qual pertence o bairro de Telheiras, e foi com a junta que concorreram a uma chamada europeia para apoio técnico por parte do Energy Poverty Advisory Hub (EPAH) – o centro europeu para o aconselhamento em pobreza energética.

A iniciativa para a criação de uma CER em Telheiras foi uma das 23 propostas seleccionadas em toda a União Europeia para receber apoio técnico local para agir contra a pobreza energética. O projecto do bairro lisboeta junta, assim, cinco – parceiros chave, nomeadamente a junta de freguesia, enquanto governo local parceiro, a Parceria Local de Telheiras, que junta cidadãos, organizações e instituições do bairro, o CENSE, da Universidade Nova de Lisboa, o EPAH e a Coopérnico. É esta última que está responsável pelo aconselhamento e acompanhamento técnico da CER de Telheiras. A Coopérnico presta, entre outros, apoio à constituição e gestão de CER e de iniciativas de autoconsumo colectivo. O apoio que nasce da candidatura vencedora à chamada europeia teve início no passado mês de Outubro e prolonga-se, agora, até Julho.

O que vai acontecer em Telheiras

“A ideia é testar a abordagem” num telhado. Se tudo correr bem, há já “vários outros telhados identificados e com análises preliminares com potencial”, conta Miguel Macias Sequeira.

A CER de Telheiras vai começar com um projecto piloto. Foi identificado o telhado que irá receber painéis fotovoltaicos, um telhado virado a Sul no Lagar da Quinta de São Vicente, em Telheiras. Trata-se de um edifício municipal utilizado pela junta de freguesia do Lumiar. Ali, serão instalados 16 a 18 painéis fotovoltaicos, com uma capacidade de produção de energia de cerca de sete a oito quilowatt/pico (kWp), de acordo com as estimativas da Coopérnico.

Mais de 30 % é quanto os edifícios históricos representam, actualmente, no parque edificado europeu e mais de um terço do total do consumo energético de todo o sector residencial europeu.

Percorrido o caminho da definição dos aspectos técnicos do projecto, do modelo de financiamento e de operação, é necessário assegurar agora a redacção de um regulamento, que está já “praticamente fechado”. O próximo passo será o da angariação dos participantes.

A energia produzida nesta UPAC será suficiente para o consumo do edifício público e para 16 famílias. As contas feitas pela Coopérnico tiveram em conta os consumos de famílias do bairro, mas também a média de consumos nacional. Foi decidido que dos 16 agregados familiares a usufruírem da energia produzida pela primeira instalação da futura CER de Telheiras três serão famílias em pobreza energética – “são pessoas que, à partida, não se envolveriam num projecto destes” por não disporem de capacidade financeira para o investimento associado à constituição de uma CER, destaca Miguel Macias Sequeira. A entrada destes membros na comunidade de energia renovável será suportada pela junta de freguesia e pelos restantes participantes. Para seleccionar as três famílias em situação de pobreza energética, está a ser conduzido um trabalho de diagnóstico local, com a ajuda da junta de freguesia, que conta já com um levantamento que decorre do seu trabalho de assistência social às famílias da freguesia.

Os restantes 13 agregados familiares serão seleccionados após manifestação de interesse e preenchimento de um formulário on-line a ser lançado durante o mês de Maio. Os participantes no projecto piloto devem residir num raio de dois quilómetros do telhado e ter contador inteligente.

Depois de escolhidos os participantes, segue-se a compra e a instalação dos equipamentos, que será efectuada pela Viver Telheiras. O valor calculado para o investimento conta já com custos de manutenção para o primeiro ano de operação e tarifas de acesso à rede e os custos serão repartidos entre junta de freguesia e membros da CER – exceptuando os participantes em situação de pobreza energética.

Após a selecção de todos os participantes nesta primeira etapa da CER de Telheiras, serão reunidos os códigos de ponto de entrega (CPE) de cada um dos membros da comunidade e dar-se-á, por fim, início ao processo de licenciamento da CER junto da DGEG. “Ainda é um processo que demora um bocado, meses, pelo que temos visto”. A demora na resposta aos pedidos de licenciamento estará, contudo, a diminuir. “No início, acho que [levava] muitos meses. Agora, são poucos meses”, diz Miguel Macias Sequeira.

“Depois de termos os painéis instalados, como é que isto funciona?” À pergunta, Miguel responde o seguinte: “funciona com coeficientes fixos de partilha, ou seja, como cada pessoa investiu o mesmo, não fazia sentido estarmos a dar mais electricidade a uma pessoa do que à outra”. Cada participante terá direito a usufruir de um coeficiente fixo da produção de energia. No caso de alguém que se ausente de férias por um mês, exemplifica, “o excedente reverte para a associação Viver Telheiras, que é a entidade gestora do autoconsumo colectivo”. “Depois, a associação pode vender à Coopérnico ou a outra empresa.”

Sem que seja necessária a colocação de cabos ou infra-estrutura física, a partilha da energia produzida será “toda virtual”. Das facturas de energia, será deduzido o valor da produção. Para que as pessoas participantes na CER entendam o impacto da produção de energia renovável, a Viver Telheiras pretende fazer chegar os números à casa das pessoas. “A nossa ideia é, todos os meses, dizer às pessoas «neste mês poupou [por exemplo] trinta euros por estar na comunidade de energia»”.

A planificação e a gestão da CER, bem como quaisquer futuras decisões, serão inteiramente da responsabilidade dos participantes. O controlo na governança é algo indissociável da criação de uma CER e em Telheiras há uma vontade de aplicar a ideia de forma transversal à comunidade que agora se constitui. “Havia esta vontade da comunidade de sermos nós [a planear e a gerir], não só como projecto de energia sustentável ambientalmente, mas também pela parte económica da poupança”.

No início do ano, a ADENE lançou um regulamento tipo para o autoconsumo colectivo, que pode ser usado como base na constituição de comunidades de energia renovável.

Em Outubro do ano passado, a ADENE e a DGEG lançaram um outro documento orientador, designado Autoconsumo e Comunidade de Energia Renovável – Guia Legislativo. Trata-se de um manual digital para o autoconsumo colectivo e para as CER, com o objectivo de ajudar interessados a percorrerem todos os passos necessários à constituição de uma comunidade de energia renovável ou ao registo de qualquer UPAC.

Os obstáculos técnicos e quem fica de fora

Navegar pelo processo de licenciamento na DGEG, estimar o potencial de produção, escolher os equipamentos, distribuir a energia produzida entre os membros da CER, decidir o que fazer com o excedente, redigir e aprovar um regulamento. São tudo etapas a percorrer e são, também, obstáculos técnicos e burocráticos para uma maioria da população ainda pouco – ou nada – familiarizada com o termo CER e, muito menos, com a constituição e gestão de uma comunidade de energia.

Para Miguel Macias Sequeira, é ainda “muito complicado” falar na democratização do acesso às CER. Tudo começa com a “falta de literacia energética” e, mesmo “pensando no caso mais simples, que seria um condomínio com pouca gente, continua a ser muito difícil começar estes projectos”.

Por enquanto, na fase embrionária da descentralização e democratização da produção energética em Portugal, as movimentações mais firmes ainda são protagonizadas por uma espécie de elite. Não se trata necessariamente da elite com o poder financeiro, político ou com uma alargada esfera de influência na sociedade. Esta elite diz respeito, antes, a pequenos grupos de pessoas que detêm a posse do conhecimento técnico. Por enquanto, é, sobretudo, quem detém o conhecimento técnico e quem mais se interessa pelos temas de produção de energia que está em posição privilegiada para avançar. Mas isso é algo que terá de mudar, sob pena de não se descentralizar verdadeiramente o acesso à produção energética e de não se cumprir com a transição energética e com as metas de acção climática a esta associadas.

Não entram em jogo só os obstáculos técnicos que distinguem quem habilmente descodifica os códigos do jargão energético. Em questão, está ainda o facto de a mensagem não ter, ainda, sido espalhada, de forma generalizada, pelos cidadãos e de não ocupar, por enquanto, espaço central no leque de possibilidades equacionadas por indivíduos individuais ou colectivamente.

Em 2022, houve um esforço do Estado para a promoção de iniciativas cidadãs de autoconsumo colectivo e para a criação de comunidades de energia renovável. Uma chamada do Fundo Ambiental com fundos do Plano de Recuperação e Resiliência e com um orçamento de 30 milhões de euros para distribuir por comunidades de energia renovável, autoconsumidores e Entidades Gestoras de Autoconsumo (EGAC) surgiu para comparticipar o financiamento de iniciativas desta natureza em edifícios residenciais, da administração pública central e de comércio e serviço. A data limite para as candidaturas chegou no final do mês de Fevereiro, decorrendo agora a respectiva análise.

Certo é que está a gerar-se bastante interesse. Fala-se de comunidades de energia renovável desde 2019, mas “existiam três ou quatro constituídas oficialmente e uma centena ou duas de pedidos”, lembra Miguel Macias Sequeira. Agora, com a legislação de 2022, sem esquecer o contributo da crise energética, aparenta estar em curso uma rápida mudança e uma reconfiguração da paisagem energética.

Até ao fim de Janeiro, tinham sido submetidos à DGEG 372 processos de licenciamento. Entre esses, 95 haviam já recebido aprovação. Para além das centenas de processos em andamento, muitas outras CER e muitos outros projectos de autoconsumo colectivo estarão, neste momento, a dar passos seguros em frente. Um desses casos é o da CER de Telheiras.

A expectativa, agora, é a de que o interesse gerado possa contribuir de modo decisivo para mudar o paradigma dos comportamentos e da utilização de energia nos nossos edifícios.

A democratização das CER e o poder da administração local

Colocar a produção na mão das comunidades, dos vizinhos, dos condóminos. As possibilidades ao alcance dos pioneiros da constituição de comunidades de energia renovável são muitas, mas para que as CER se reproduzam será necessário um empurrão na forma de campanhas de informação e de capacitação técnica.

À semelhança da CER que agora ganha forma em Telheiras, Miguel Macias Sequeira não duvida do potencial de constituição de comunidades de energia renovável à escala local e pelo país fora. “Em Lisboa, e na maior parte dos bairros, existe pelo menos uma ou duas associações que fazem trabalhos interessantes”, refere, lembrando que pode ser fomentada, a partir destes centros de participação cidadã, a criação de novas comunidades de energia. Para se chegar a este ponto, o apoio de municípios e de juntas de freguesia, por serem agentes próximos das pessoas, pode ser fundamental.

Para cidadãos liderarem a alteração de paradigma na produção de energias renováveis “é preciso [haver] mais informação e mais materiais informativos, mais espaço nos meios de comunicação”.

Miguel Macias Sequeira

Podem ser as pessoas a liderar o processo de reconfiguração e alteração de paradigma na produção de energias renováveis, tomando em seu poder os instrumentos de produção e alcançando a independência e autonomia energética, mas é necessário fazer passar a informação e criar incentivos.

Num documento lançado no final de 2022 pelo INTERREG – o programa de financiamento para a cooperação transfronteiriça da União Europeia –, são sugeridas várias vias para as administrações locais apoiarem a criação de CER, entre as quais estão a realização de campanhas para aumentar a visibilidade dos benefícios associados, a inclusão das CER nas ferramentas de planeamento urbano, a definição de objectivos para a produção de energia a partir de comunidades de energia renovável, a promoção de linhas de financiamento ou a simplificação dos procedimentos e da burocracia associada ao licenciamento e constituição de uma CER.

Adicionalmente, o documento europeu aponta para a possibilidade de autarquias se tornarem membros de CER, financiarem estudos de viabilidade ou até oferecerem aconselhamento legal e técnico na preparação de uma CER. Estas últimas são medidas também sugeridas por Miguel Macias Sequeira, que reconhece “um papel importante dos governos locais”.

“É preciso [haver] mais informação e mais materiais informativos, mais espaço nos meios de comunicação”. Municípios, juntas de freguesia e agências de energia locais podem oferecer “apoio mais técnico e especializado na área da energia – na lógica one stop shop, [um sítio] em que as pessoas podem tirar dúvidas sobre energia. Ter um técnico disponível à escala local, na freguesia, poderia apoiar nas comunidades de energia”, conclui.

No norte do país, há uma junta de freguesia prestes a formar uma CER

A freguesia de Vila Boa do Bispo, pertencente ao município de Marco de Canaveses, quis dar o exemplo e, em 2020, começou a dar os primeiros passos para se tornar na primeira junta de freguesia em Portugal a constituir uma CER. 

Com um investimento inicial estimado em 32 mil euros, a freguesia do Norte do país pretende produzir energia para quatro edifícios: o pavilhão desportivo local, o edifício que alberga a Casa do Povo, a sede da junta de freguesia e ainda o edifício dos bombeiros de Vila Boa do Bispo. 

Com a ambição de poupar cerca de 5,5 mil euros anuais nas facturas de energia, o processo de constituição desta CER ainda decorre e conta com o apoio da Coopérnico. “Foi o presidente da junta de freguesia que entrou em contacto connosco”, explica Alekson Luz. 

Para conseguir uma comparticipação de 50 % do valor de instalação do sistema, com uma capacidade de produção de energia de 17 quilowatt/pico (kWp), o projeto da junta de freguesia candidatou-se ao “Apoio à concretização de Comunidades de Energia Renovável e Autoconsumo Coletivo”, do Fundo Ambiental, e espera, agora, o resultado para avançar com a instalação no terreno. Segundo o autarca local, Miguel Carneiro, e uma vez dados os primeiros passos, existe a intenção de alargar a participação na CER às empresas locais e aos cidadãos da freguesia.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 147 da Edifícios e Energia (Maio/Junho 2023).