Escrevo esta nota com o incêndio da Catedral mais emblemática de França em mente. Nós e todos os herdeiros do Iluminismo, também francês, choram hoje uma construção que filosoficamente chegaram a desconsiderar. É que para os criadores do século das luzes era preciso desacreditar a tirania da Idade Média. A liberdade, o progresso e a fraternidade eram os alicerces para a ciência, para o pensamento e para a razão. A separação entre a Igreja e o Estado era uma porta aberta à Maçonaria e a uma série de movimentos que ganharam força como o liberalismo económico. Catedrais góticas ou outras expressões de uma arte ou estética simbolizavam o homem bruto medieval. Mas o século das luzes não chegou para um mundo que se queria mais aberto e menos dogmático. E ainda bem. Uma cultura que, mais tarde, vinha a ser curta para o Romantismo. Um movimento novo para o qual a razão ou o conhecimento crítico não eram suficientes. O progresso estava também na subjectividade e as emoções faziam parte de uma construção inabalável até aos dias de hoje. Pelas melhores e piores razões, o homem vai sobrevivendo e vai-se reinventado. Os movimentos vão surgindo e nós vamos pulando.

Se, neste exercício, juntarmos a estética, o conhecimento, a funcionalidade, a racionalidade e as emoções, podemos dizer que temos hoje o período mais desafiante da História (não terão sido todos?). É por isso que, se lhe tirarmos alguma destas peças, ficamos com pouco. Se lhe tirarmos várias, ficamos sem nada.

Ardeu a Notre Dame e não é por acaso que uma jovem poeta portuguesa se lembrou de Walter Benjamin: “o passado traz consigo um índex secreto que o remete para a redenção”. Benjamin teve esta coragem de descontruir a arte naquilo que é a sua relação material com as pessoas. Será que a arte tem sempre o mesmo valor? Definitivamente terá esse ou outro. Mas algum terá. Matilde Campilho acorda-nos para que ninguém se esqueça. “Nada é definitivo, tudo é permanente”. E é por isso que a Catedral não morre. Walter Benjamin via na tecnologia um lado destrutivo do legado cultural e, noutro, um mundo de oportunidades de novas vivências e interacção com esse legado. E é por isso que a Catedral não morre.

Não morre a Catedral, como não morre nenhuma outra construção humana. Desde uma obra de arquitectura bruta da Idade Média, a um Caravaggio barroco e burlesco, chegando ao Heydar Aliyev Center de Zaha Hadid, tudo permanece. E tudo se pode transformar. Tudo tem uma ou outra dimensão para quem a quiser ver. Desde a primeira criação do Homem que a identidade da construção ou da reconstrução, seja do que for, tem essa beleza mas também essa responsabilidade. Enorme e que nos arrebata. Se, neste exercício, juntarmos a estética, o conhecimento, a funcionalidade, a racionalidade e as emoções, podemos dizer que temos hoje o período mais desafiante da História (não terão sido todos?). É por isso que, se lhe tirarmos alguma destas peças, ficamos com pouco. Se lhe tirarmos várias, ficamos sem nada. A permanência é um horizonte invisível que nos devia orientar a todos com responsabilidade. 

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