Autores: Joana Gonçalves, MArch (CTAC, Universidade do Minho) | Ricardo Mateus, PhD (CTAC, Universidade do Minho) | José Dinis Silvestre, PhD (CERIS, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa)

É tempo de lançar um novo olhar sobre o edificado histórico, salvaguardando o saber acumulado ao longo de séculos na interação e adaptação ao meio ambiente, como um valor patrimonial a preservar.

O papel do Património para o desenvolvimento sustentável

O início do século XXI veio acompanhado de uma maior consciencialização sobre os perigos da sociedade de consumo, não apenas ao nível económico, com as constantes oscilações dos preços dos produtos e dos mercados financeiros internacionais, mas também no que ao ambiente diz respeito. A indústria da construção é uma das mais representativas na economia mundial, mas também a que está associada a maiores impactes ambientais, com mais emissões de carbono e consumo de matérias-primas. Para além disso, na Europa, as áreas urbanas concentram cerca de 80 % da população e consomem entre 60 % a 80 % da energia produzida.

Em 1987, o Relatório Brundtland define desenvolvimento sustentável como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazerem as suas próprias necessidades”. A partir desta definição, a relação entre Sustentabilidade e Património torna-se mais evidente: Património, no seu sentido literal, remete também para o legado deixado às gerações vindouras, no sentido de herança construída. Desta forma, o conceito de património apresenta um vínculo com o futuro tão ou ainda mais forte do que com o passado, já que importa preservar a sua continuidade, assegurando a sua transmissão às gerações futuras.

Apesar desta relação entre os dois conceitos, apenas em 2011, a publicação dos “Princípios para a Gestão e Salvaguarda das Cidades Históricas e Áreas Urbanas”, pelo ICOMOS, articula a questão do desenvolvimento sustentável com os princípios de salvaguarda do património histórico, em recomendações largamente aceites internacionalmente. Este documento reconhece que a necessidade de limitar a expansão urbana tem contribuído para uma maior atenção devotada aos centros históricos urbanos.

Mais recentemente, os objetivos para o desenvolvimento sustentável adotados pelas Nações Unidas na Agenda 2030 salientam a importância do património para meios urbanos mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Na sequência da adoção internacional destes objetivos, a UNESCO tem vindo a promover a integração da perspetiva da sustentabilidade nos processos da convenção para o património mundial, afirmando a importância de reconhecer ao património um catalisador e não uma vítima do desenvolvimento sustentável.  

Reconhecendo que o património cultural está integralmente conectado às alterações climáticas, questões energéticas e bem-estar social, o ICOMOS procurou, em 2016, estabelecer princípios concretos de atuação para a integração destas preocupações na valorização e salvaguarda do património. O conceito de património é redefinido, destacando o papel do conhecimento adquirido pela experiência na interação com o território ao longo de séculos. É nesta experiência que reconhece o potencial para retirar ensinamentos para lidar com as alterações climáticas e aumentar a resiliência das comunidades.  

Apesar desse reconhecimento, o contributo do património para a sustentabilidade tem sido mais frequentemente analisado na perspetiva do desenvolvimento equitativo, ou seja, no cruzamento das dimensões social e económica, pelos benefícios para a coesão social, criatividade, interesse e atratividade económica e promoção do entendimento entre as comunidades.  

Ainda que o ICOMOS assuma que a reutilização e reabilitação do património contribui para promover processos circulares importantes para a transição para a descarbonização das economias locais, existe ainda uma lacuna de indicadores concretos que permitam compreender o contributo do património para a dimensão ambiental da sustentabilidade.

Tornam-se, assim, essenciais as ferramentas de avaliação de impacte para o património cultural que demonstrem os benefícios a longo prazo do investimento no património e que possam ser utilizadas na tomada de decisão nas ações de planeamento e gestão.

Indicadores na determinação do valor patrimonial

No sector do património, os indicadores têm sido utilizados para a classificação de valores culturais a preservar, tais como a identidade do lugar, autenticidade ou integridade. O alargamento do conceito de património tem sido um resultado direto da extensão de valores considerados pela sociedade ao longo do tempo, até à recente sistematização do conceito de património intangível, pela UNESCO em 2003.

O conceito de património é redefinido, destacando o papel do conhecimento adquirido pela experiência na interação com o território ao longo de séculos. É nesta experiência que reconhece o potencial para retirar ensinamentos para lidar com as alterações climáticas e aumentar a resiliência das comunidades.

No início do século XX, Alois Riegl (1903) esteve entre os primeiros a utilizar uma abordagem baseada na avaliação de valores aplicada ao património, distinguindo valores rememorativos (antiguidade, histórico e comemorativo) e de contemporaneidade (artístico, de uso e de novidade). Na classificação de património mundial, a expressão “outstanding universal value” (valor universal excecional) considera frequentemente critérios históricos, artísticos, científicos, estéticos ou antropológicos, mas, desde a criação das primeiras diretrizes operacionais em 1977, estes critérios de avaliação têm sido substancialmente expandidos e modificados.

Recentemente, as redefinições do conceito de património fazem com que este tenha deixado de ser entendido como um objeto estático, mas, sim, como um processo social de seleção. Como expressão das crenças e preocupações da sociedade, os valores podem evoluir e mudar ao longo do tempo, sendo específicas dos contextos temporais e espaciais.  

Segundo vários autores, a característica mais importante dos valores patrimoniais é que estes são sempre atribuídos e nunca inerentes ao objeto patrimonial. As características objetivas (cor, material, antiguidade, etc.) não têm significado cultural em si mesmas, resultando antes da projeção dos processos culturais de aprendizagem e consciencialização. Assim, todas as decisões de conservação resultam da ponderação de valores multidimensionais, expressando um processo de escolha que não é neutro, ao implicar a aceitação que apenas alguns aspetos serão preservados, em detrimento de outros, em função da narrativa a transmitir às gerações futuras.

A falta de indicadores explícitos e objetivos faz com que as decisões de conservação sejam difíceis de compreender e comunicar. Torna-se, assim, fundamental estabelecer modelos que permitam que os dados acerca de valor e significado patrimonial se concretizem em informação concreta e efetiva para apoiar a tomada de decisão.

A necessidade de reconhecer a diversidade cultural como um aspeto fundamental do património representa uma dificuldade acrescida nas metodologias de avaliação de valores culturais, que têm sido criticadas por condicionar a flexibilidade na abordagem à especificidade de cada caso. No entanto, a avaliação de significado, mesmo que informal, é essencial para a distinção de património. A falta de indicadores explícitos e objetivos faz com que as decisões de conservação sejam difíceis de compreender e comunicar. Torna-se, assim, fundamental estabelecer modelos que permitam que os dados acerca de valor e significado patrimonial se concretizem em informação concreta e efetiva para apoiar a tomada de decisão.

Eficiência energética nos edifícios históricos

Na última década, o tema da reabilitação sustentável tem sido muito estudado, sobretudo nas tipologias de habitação. No entanto, os estudos mais recentes centram-se essencialmente na questão da eficiência energética, procurando a otimização do edificado existente, maioritariamente construído entre as décadas de 70 e 90 do século XX, para garantir maior conforto com um mínimo custo. Nestes trabalhos, o termo reabilitação assume o carácter de reforma e melhoria técnica das habitações, mas não a vertente de valorização da identidade e memória do edificado, na sua relação com a comunidade.

Noutros casos, a a análise custo-benefício na introdução de medidas de sustentabilidade na construção incide na reabilitação de edifícios antigos, com base na análise de diferentes cenários de reabilitação da perspetiva energética e da sustentabilidade. As conclusões apontam para que os edifícios antigos não se adequam às exigências contemporâneas, nomeadamente no que respeita ao conforto térmico. Do ponto de vista patrimonial, no entanto, não são analisadas as implicações dos cenários de reabilitação mais interventivos no edifício.

Apesar de a reabilitação de edifícios patrimoniais poder contribuir para benefícios económicos, ambientais e sociais, na prática profissional, tende a identificar-se um conflito de interesses entre o valor patrimonial e a aplicação prática dos princípios para a sustentabilidade. Considera-se, por princípio, que a reutilização adaptativa deveria implicar o mínimo no significado patrimonial do edifício, adicionando-lhe valor de contemporaneidade, no entanto, os edifícios tradicionais estão frequentemente sob pressão regulamentar para cumprir com os padrões contemporâneos de sustentabilidade, frequentemente centrados na conservação de energia.

A melhoria do desempenho energético dos edifícios é uma parte importante do EU Energy 2020, no entanto a legislação corrente centra-se no combustível e energia, sem que sejam protegidos os tecidos urbanos, cuja substituição é encorajada quando o desempenho térmico é melhorado. A eficiência energética em edifícios históricos é um campo recente de investigação, mas, considerando a reduzida percentagem que estes edifícios representam no parque edificado global, esta poderá não ser uma prioridade para fins de desenvolvimento sustentável. Considerando o balanço energético regional, a adoção de medidas de reabilitação energética da pequena percentagem constituída pelos edifícios históricos pode não ser suficiente para justificar alterações inaceitáveis do ponto de vista patrimonial.  

No entanto, apesar do aparente conflito de interesses, prolongar a vida de um edifício existente através da sua reutilização pode reduzir o consumo de materiais, transportes e energia, representando um importante contributo para a sustentabilidade. Além da mais imediata avaliação do desempenho energético dos edifícios, as intervenções sobre o edificado histórico devem ter em consideração os custos de energia ao longo do ciclo de vida, incluindo a energia incorporada e a sustentabilidade, não só do ponto de vista energético, mas também do impacte ambiental incorporado do edifício, uso do solo, água, materiais e saúde dos ocupantes. Isso implica que qualquer intervenção proposta ao edifício deve partir sempre da compreensão dos seus princípios construtivos e funcionamento global.

Património Sustentável

A integração de valorização do património nos objetivos para o desenvolvimento sustentável de Agenda 2030 das Nações Unidas veio reforçar a necessidade de ferramentas de avaliação que permitam apoiar a tomada de decisão.

Ainda que as metodologias baseadas na avaliação de valores patrimoniais, desenvolvidas a partir do início do século XX, sejam hoje alvo de críticas devido à sua inflexibilidade, os indicadores são necessários para determinar os limites aceitáveis de mudança nos edifícios históricos. Além disso, permitem identificar e atuar sobre os aspetos negativos e fundamentar a tomada de decisão através de uma linguagem comum aos diferentes intervenientes nos processos de gestão patrimonial.

No que respeita à ligação entre património e sustentabilidade, conclui-se que esta ainda não foi estudada de forma suficientemente abrangente, resultando num aparente conflito de interesse entre a preservação dos valores patrimoniais e os padrões contemporâneos para o desenvolvimento sustentável. Frequentemente, os edifícios históricos têm sido encarados como fragilidades que devem ser corrigidas para cumprir com os contemporâneos padrões de desempenho e requisitos de sustentabilidade, ou, em alternativa, como relíquias a proteger a todo o custo face às ameaças das alterações climáticas. Perde-se, assim, a oportunidade de reconhecer que o património construído contém valiosas lições para aproximações integradas ao desenvolvimento sustentável.  

Assumindo que a atribuição de valor patrimonial é um processo que reflete as preocupações da sociedade do seu tempo e reconhecendo que, cada vez mais, o desenvolvimento sustentável é uma prioridade a nível mundial, é tempo de lançar um novo olhar sobre o edificado histórico, salvaguardando o saber acumulado ao longo de séculos na interação e adaptação ao meio ambiente, como um valor patrimonial a preservar.

As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.