Autores: Jorge Fernandes | Ricardo Mateus | Helena Gervásio
Universidade do Minho. Doutoramento financiado pela FCT (PD/BD/113641/2015)
A eficiência energética e os impactes ambientais são, hoje, preocupações do setor da construção. A arquitetura vernácula apresenta-se como uma solução.
A consciencialização ambiental sobre o setor da construção tem evidenciado diversos problemas no que à eficiência energética e aos impactes ambientais concerne. Assim, o setor está numa fase de mudança de um paradigma pouco preocupado com o contexto climático e os impactes ambientais dos edifícios, dependente de sistemas mecânicos e de materiais com grande quantidade de energia incorporada e elevado potencial de impacte ambiental, para uma abordagem holística que procura um maior equilíbrio entre as três dimensões do desenvolvimento sustentável. Este é um setor-chave para a redução dos impactes ambientais, já que é um dos maiores utilizadores de energia e recursos, responsável por um terço do total global do uso de energia primária e das emissões de CO2. No contexto da União Europeia, para mitigar estes impactes têm sido definidos objetivos de médio e longo prazo para redução do consumo de matérias-primas e produção de resíduos e, entre os mais mediáticos, o aumento da eficiência energética e a descabornização do parque edificado até 2050 – através da transformação do edificado existente em edifícios com balanço energético quase nulo (nZEB).
Para alcançar estes objectivos, é pertinente pensar o futuro da construção assente na reflexão sobre o que foi o seu passado. Neste âmbito, a arquitetura vernácula é um tipo de construção que importa analisar.
A importância das estratégias vernáculas para a sustentabilidade dos edifícios
A industrialização e o surgimento de novos materiais padronizados homogeneizaram globalmente os modos de construir. Os edifícios, muitas vezes concebidos sem preocupações de adequação ao contexto climático, tornaram-se dependentes de sistemas de climatização para assegurar as condições de conforto. A assunção desta situação como uma prática normal conduziu à rotineira instalação destes sistemas mecânicos, mesmo quando não são necessários. Para além disso, a padronização das “zonas de conforto” originou uma condição de monotonia térmica, responsável também por um intenso uso energético. Estas questões são discutidas por diversos autores, já que os humanos e os seus ambientes não são padronizáveis, pelo que devem ser tidas em consideração outras dimensões locais específicas que influenciam o conforto, tais como o clima, a cultura e os hábitos sociais. No entanto, hoje, edifícios indiferentes ao seu contexto são ainda amplamente visíveis e construídos.
Num momento de viragem, em que se procura uma construção com menores impactes ambientais, o conhecimento inerente às construções vernáculas volta a suscitar interesse a nível internacional, no qual Portugal não é exceção.
A arquitetura vernácula é fortemente influenciada pelo seu contexto geográfico (clima, geologia, cultura, etc.), o que originou construções com características distintas de região para região. Não foi aleatória a forma como se cunharam diferenças significativas entre as habitações do Norte de África e as do Norte da Europa ou, no caso de Portugal, entre a casa transmontana e a casa alentejana. Na sua longa evolução, e inseridas num contexto de escassez, desenvolveram-se empiricamente estratégias pragmáticas de adaptação ao meio envolvente e de racionalização dos recursos disponíveis.
Após um período de esquecimento, devido à industrialização da construção e à conotação com pobreza e subdesenvolvimento, o interesse e estudo pela arquitetura vernácula no âmbito da sustentabilidade têm vindo a aumentar, uma vez que as suas características/estratégias (ex. gestão do uso do solo, uso de materiais locais, estratégias passivas, recolha de águas pluviais, etc.) são a base do que agora se define como “construção sustentável”.
Os estudos realizados em diversos locais do mundo reportam conclusões similares, tais como: i) os edifícios vernáculos conseguem atingir níveis de conforto aceitáveis durante quase todo o ano, apenas por meios passivos, pelo que as estratégias passivas são eficazes e praticáveis atualmente; ii) a utilização das estratégias vernáculas e materiais locais, desenvolvidos na necessidade de adaptação a um território e clima específicos, contribuirá para a redução do desperdício, do uso de energia para climatização e consequentemente das emissões de carbono, entre outros impactes ambientais; iii) e na dimensão social, a valorização deste legado cultural fomentará a criação de emprego e a formação de mão-de-obra especializada.
Estratégias de arrefecimento passivo
Num contexto em que muito se tem falado do arrefecimento devido às diversas ondas de calor e em que o relatório “The Future of Cooling”, publicado pela Agência Internacional de Energia, refere que as necessidades de energia para arrefecimento irão triplicar até 2050 (como noticiado na edição anterior desta revista) e o relatório da Sustainable Energy for All (SEforALL) alerta para a dificuldade de acesso a arrefecimento pelas populações e reforça a necessidade de se desenvolverem e testarem novas soluções que não impliquem apenas a utilização de sistemas de ar condicionado, é pertinente que este artigo se debruce sobre as estratégias de arrefecimento passivo, apresentando alguns resultados de um caso de estudo da arquitetura vernácula do Alentejo.

Figura 1. Vista exterior do caso de estudo.


Figura 2. Perfis de temperatura e humidade relativa do ar (excerto da monitorização de verão)
No Sul do país, a arquitetura vernácula desenvolveu estratégias específicas de mitigação do calor estival – a estação mais rigorosa, quente e seca, com temperaturas máximas entre os 30-35ºC, atingindo, em alguns dias, os 40-45ºC. Com este propósito, foram desenvolvidas diversas estratégias de arrefecimento passivo, frequentemente concomitantes, como:
i) redução da dimensão e número de vãos em contacto com o ambiente exterior. O uso de janelas pequenas, recuadas em relação à fachada, permite também que a profundidade do vão funcione como sombreamento;
ii) o uso de sistemas construtivos com elevada inércia térmica, nomeadamente paredes em taipa e abóbadas – estas últimas aumentando o pé-direito e a estratificação térmica;
iii) o uso de cores claras na envolvente do edifício, principalmente superfícies caiadas, para refletir a radiação solar incidente;
iv) aberturas para ventilação, integradas em portas e janelas, para promover a circulação de ar, principalmente durante a noite para remover as cargas térmicas diurnas, sem comprometer a segurança e a privacidade;
v) os pátios, contendo frequentemente vegetação e, em alguns casos, água, geram um microclima junto ao edifício através da evapotranspiração e evaporação, respetivamente.
vi) a vegetação usada como sistema de sombreamento (ex. as parreiras em frente à porta de entrada);
vii) em contexto urbano, os traçados compactos e de ruas estreitas e irregulares permitem reduzir as áreas expostas ao sol e permitem que os edifícios se sombreiem entre si – e às ruas – reduzindo os ganhos de calor pela envolvente.
Destas estratégias, as pesadas paredes em terra destacam-se por permitirem atrasar a progressão da onda de calor para o ambiente interior, mantendo a temperatura e a humidade estáveis, principalmente durante o verão, sendo um elemento caracterizador da arquitetura da região. O uso da taipa na região é antigo, já referido por Vitrúvio, e o terreno plano, o clima seco e a abundância de solos argilosos foram fatores favoráveis à disseminação desta técnica, mesmo em áreas onde a pedra prevalece.
O caso de estudo localiza-se no concelho de Moura, uma das regiões mais quentes do país, e é um edifício representativo da arquitetura vernácula da região, apresentando um leque de estratégias de arrefecimento passivo e cujos elementos construtivos se mantêm bem preservados e próximos dos originais (Figura 1). A maioria dos elementos construtivos são em terra; as paredes exteriores em taipa têm uma espessura média de 60 cm. O edifício não possui qualquer sistema mecânico para arrefecimento.
Durante a monitorização de verão, a temperatura exterior máxima foi frequentemente >35º C e a mínima >20º C. Apesar da amplitude térmica diária, verifica-se que a temperatura interior nos diversos compartimentos permaneceu muito estável com valores médios de temperatura entre 26.7º e 27.1º C (Figura 2). No que concerne à humidade relativa, a amplitude diária exterior é elevada, mas no interior os perfis de humidade são mais estáveis e com oscilações entre 40 e 60 % – a amplitude mais adequada à saúde e conforto humanos.
Na avaliação de conforto térmico, usando um modelo de conforto adaptativo, ajustado ao contexto português e o mais adequado para edifícios ventilados naturalmente, os resultados para o verão mostram que o ambiente interior possui uma condição de conforto térmico (ponto vermelho) no centro da amplitude de conforto (linhas cinzentas) (Figura 3). Nos inquéritos realizados aos ocupantes, todos responderam que se sentiam “neutros”, i.e. confortáveis.
O desempenho higrotérmico do edifício mostra que a elevada inércia higroscópica dos sistemas construtivos utilizados (taipa, baldosas, rebocos de cal), juntamente com outras estratégias de arrefecimento, tem uma grande capacidade para estabilizar a temperatura e a humidade relativa interiores. Deve ser também realçada a proatividade dos ocupantes para melhorar a sua condição de conforto, nomeadamente, promovendo a ventilação noturna, fechando portas e janelas durante os períodos com radiação incidente, etc.
Aplicando a metodologia da norma EN15251 para classificar o edifício durante o verão, é possível verificar que o ambiente térmico se encontra na Categoria I (categoria de maior exigência) a maior parte do tempo, e que a humidade relativa se reparte entre as Categorias I e II (Figura 4). Os resultados demonstram que este tipo de edifícios era concebido para responder ao calor intenso durante o verão, recorrendo apenas a estratégias de arrefecimento passivo para garantir o conforto dos seus ocupantes.

Figura 3. Gráfico de conforto adaptativo. Temperatura de conforto (temperatura operativa) na sala de estar num dia representativo de verão.

Figura 4. Classificação do ambiente térmico e da humidade relativa interiores em espaços representativos do edifício (de acordo com a EN15251). (Categoria I – Expectativa elevada e aplicável a edifícios com requisitos especiais —
ex. creches e lares de idosos; Categoria II – Expectativa normal e aplicável a edifícios novos); Categoria III – Expectativa moderada aplicável a edifícios existentes; Categoria IV – Valores fora dos critérios das restantes categorias.
Desafios emergentes no contexto da regulamentação de desempenho energético
Embora o caso de estudo tenha demonstrado um elevado desempenho durante o verão, os sistemas construtivos utilizados não cumprem os requisitos atuais definidos na legislação nacional sobre o desempenho energético dos edifícios (REH), limitando o uso dos mesmos como até agora o tinham sido. Como exemplo, para elementos opacos verticais exteriores, e dependendo da zona climática, os valores máximos permitidos para o coeficiente de transmissão térmica (valor U) deixaram de ser entre 1.45 e 1.75 W/(m2.°C) (RCCTE) para ser entre 0.35 e 0.50 W/(m2.°C) (REH). Tomando em consideração o caso das paredes em taipa, com 40-60cm de espessura, o valor U é de 1.60-1.30 W/(m2.°C). Assim, sem isolamento térmico não é possível cumprir com requisitos legais. O problema parece de fácil resolução, mas as propriedades físicas destes materiais em terra – como a necessidade de “respirarem”– e também aspetos estéticos, são pouco compatíveis com as soluções correntes de isolamento (ex. ETICS) sem haver uma perda das vantagens inerentes a estes materiais. Por estes motivos, os profissionais (arquitetos, engenheiros, construtores) ligados à construção em terra argumentam que a legislação é demasiado restritiva e que não tem em consideração as vantagens deste tipo de construção.
Considerações finais
Os resultados apresentados mostraram a estreita relação entre a arquitetura vernácula do Sul do país e as condições locais, demonstrando a eficácia das estPerfis de temperatura e humidade relativa do ar
(excerto da monitorização de verão) ratégias de arrefecimento passivo e o potencial de redução das necessidades de energia para este propósito. No entanto, é ainda necessário avaliar o balanço energético anual deste tipo de edifícios por forma a testar soluções que concomitantemente permitam cumprir os requisitos legais e não diminuam as vantagens deste tipo de materiais. Se os edifícios nZEB devem suprir as suas necessidades energéticas através de energia de fontes renováveis, talvez seja viável a utilização de técnicas vernáculas de construção, mesmo que não cumpram com o valor U definido.
(Mais informações em www.rever.pt)
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.







