António Raposo Soares é projectista, consultor e tem uma vasta experiência na actividade da fiscalização. Para este engenheiro, é fundamental “mudar de mentalidade e acabar com o insuportável ‘mais ou menos’. Senão, neste ‘caldo’ de imprecisão, um processo de Certificação não é sustentável”.
As intenções iniciais quanto à promoção da eficiência energética estão a perder-se? Hoje, temos parâmetros para a QAI, requisitos para as instalações e manutenção e outros procedimentos obrigatórios. Insuficiente?
Existiram boas intenções inicialmente, mas começaram a notar-se, logo no início, alguns exageros. Não por falta de alertas sobre as taxas do ar novo, ou do tamanho descomunal das unidades de tratamento de ar que eram instaladas, dos caudais ou das potências. As escolas construídas na altura mais parecem autênticas fábricas na cobertura. Pode dizer-se que o projecto (média dimensão), na sua generalidade e após a entrada da regulamentação em 2006, piorou em muitos aspectos. Havia um desconhecimento generalizado. As coisas começavam a funcionar menos bem. Na sua aplicação prática, o SCE devia ter sido objecto de um período de aprendizagem e de ensaio com a aplicação das correcções necessárias na altura própria. Veja-se o caso da Alemanha, que só lançou um programa destes depois de ter implementado um piloto e feito o devido rescaldo aplicado aos edifícios públicos. Não impôs medidas prescritivas, mas limites/domínios de actuação. Houve um processo de aprendizagem e maturação para identificar o que era mais essencial. Foram feitas medições no terreno e definidas e avaliadas as condições/requisitos mínimos. Uma forma de trabalhar e uma abordagem oposta ao pseudoconhecimento livresco, decorado, imposto de modo prescritivo. No nosso caso, começámos a sentir, desde muito cedo alguma irracionalidade, alguns desvios de trajectória, apesar dos alertas que iam aparecendo na fase inicial da formação. Mas não houve a coragem e lucidez para sua revisão/correcção. E, quando se desvirtuam os processos técnicos, não havendo a necessária optimização, cria-se confusão quanto aos conceitos básicos. O processo deixa de ser técnico, para ser outra coisa. Assiste-se às inevitáveis contradições e fica a descaracterização. Surgem indícios de que algo não está bem e isso sente-se até aos dias de hoje. São exemplo disso situações bizarras, nas quais as taxas e honorárias do PQ são quase equivalentes aos honorários do projecto de dimensão média. Como é que isto é possível e sustentável em termos de mercado? Como se justifica, no caso dos edifícios de serviços entre 50 a 1000 m2, que se paguem taxas que começam nos 150 e vão até os 750, 800 euros? Por outro lado, não é por acaso que hoje temos um SCE vazio.
António Raposo Soares, MSc.(Eng) – FCTUC
“O SCE exige inevitavelmente uma implementação prática e uma verificação no terreno, supervisionado directamente pelos próprios quadros (da Entidade de Gestão), mas com a devida experiência“.
Em que sentido?
As pessoas com experiência e maturidade profissional afastaram-se nestes últimos anos. Actualmente, são notórias as dificuldades técnicas de conversão e de enquadramento jurídico de várias directivas europeias importantes já publicadas há vários anos. O próprio SCE corre o risco de ficar datado (quando se pretender seleccionar um equipamento de produção térmica, por exemplo). Para além de se perderem recursos financeiros europeus por tais atrasos. O SCE exige inevitavelmente uma implementação prática e uma verificação no terreno, supervisionado directamente pelos próprios quadros (da Entidade de Gestão), mas com a devida experiência. Existem edifícios de serviços, “certificados (só) no papel”, difíceis de descrever quer do lado da instalação, quer do lado do funcionamento, claramente deficiente e sem o acompanhamento devido. Estamos a chegar ao ponto em que as coisas podem cair com estrondo, se ocorrer algo de estranho (edifícios doentes e outras sintomatologias, risco de acidentes, prazos a ser ultrapassados…), nos edifícios de serviços. De facto, o processo “SCE + QAI”, que se esperava já maduro ao fim de 12 anos, revela-se hoje pouco sólido na sua aplicação. Podemos colocar quatro questões basilares, de avaliação da eficácia, dos resultados, ao longo da vida útil de um edifício de serviços supostamente certificado, nomeadamente quanto às garantias do SCE: Garante a sua Eficiência Energética? Garante a QAI medida, verificada de forma correcta e honesta? Não! Obriga a auditorias periódicas ao seu desempenho/eficiência energética e à QAI? Não! O SCE, aplicado aos edifícios de serviços serve, então, para quê? Uma resposta que é frequente ouvir-se entre colegas e clientes: “Apenas para cobrar taxas, nalguns casos, completamente exageradas (mesmo se houvesse utilidade), e para pôr um papel na vitrina. Temos de reverter esta situação, a bem do próprio SCE! No sector residencial, as coisas são diferentes e vão funcionando, porque é muito mais simples e directo. Uma folha de cálculo, uma sessão fotográfica no local, um relatório mecanizado, com a tal meia dúzia das “famosas medidas de melhoria”, escolhidas do catálogo. E já está!
Esse é um cenário muito negativo e muito difícil de reverter passados tantos anos. Que soluções existem?
A QAI, que deve ser colocada em primeiro lugar para todos os edifícios, mas com maior acuidade nos edifícios de serviços. Trata-se do ar que respiramos. Não podemos estar preocupados com a EE se o ar ambiente nos edifícios (hospitais, lares, piscinas…) não for minimamente recomendável em termos de assepsia, concentrações de poluentes, partículas em suspensão PM2,5 e PM10 acima dos limiares de protecção, se a ventilação não estiver bem distribuída, com as taxas de renovação adequadas, a hierarquização correcta das pressões, etc. Mas, pasme-se, a abordagem actual do SCE é exactamente a contrária em termos da sua aplicação. Em segundo lugar, temos de assegurar uma solução de climatização que crie conforto efectivo às pessoas, obviamente sem pôr em causa a sua saúde, o que obriga a colocar a QAI em primeiro lugar. E só depois a energia, a sua eficiência, o comportamento térmico, a iluminação, a acústica, a estética. Tudo é importante, mas no seu devido lugar. Em terceiro, a noção de que esta mesma QAI está relacionada com a qualidade do ar exterior. Este tema tem de ser devidamente integrado e equacionado pelas várias tutelas oficiais, os vários players públicos e privados do sector. Neste momento, não acontece assim! Neste país, é extremamente difícil entidades diversas trabalharem em conjunto. Em quarto lugar, o SCE aplicado aos edifícios de serviços corresponde à plataforma de trabalho existente, bem ou mal feita, e com a qual temos de viver. As actuais dificuldades na sua aplicação obrigam-nos a corrigi-la, estando cientes de que o problema principal está na implementação e operacionalidade do SCE. A forma como se fecham (ou não) os processos de certificação é crucial. Em quinto lugar, as auditorias periódicas às instalações, à QAI, na verificação da qualidade da manutenção preventiva têm de ser colocadas efectivamente no terreno. Para isso, os responsáveis do SCE, e não só os PQ, têm de saber andar no terreno e obter resultados práticos. Falta, pois, operacionalizar este trabalho de campo, bem regulamentado com responsabilidades assacáveis. Mas se cairmos no exagero de medir tudo, aumentam-se os custos além do razoável e o mercado reage negativamente. É preciso bom senso e equilíbrio. Em sexto lugar: não podem existir, de forma nenhuma, regimes de excepção, como aconteceu com o sector da hotelaria, a Parque Escolar ou nos edifícios públicos.
Os certificados têm de ser construídos e têm de existir critérios. Não podem ser uma folha em branco.
Certo, mas bem estruturados. Os processos, mesmo os mais complexos, não precisam de mais de meia dúzia de princípios básicos, que, depois, podem ser adaptados a cada caso. A partir daqui, há um outro tipo de trabalho e intervenção que exige capacidade e espírito críticos. Se assim não for, o sistema enfraquece e acaba por contradizer-se a si mesmo. Fica bloqueado, estéril. Não produz resultados. Acerca do que se escreve nos certificados, li, perplexo, que as entidades responsáveis apresentam-se como “coleccionadores” de “cerca de 2 milhões de medidas de melhoria identificadas”. Na mesma fonte, relativa aos PQ, li ainda uma expressão estranha que desconhecia por completo: “PQ inexperientes”? Não se entende. Como se explica esta bipolaridade?
Como vamos conseguir que essas medidas saiam do papel e sejam implementadas? E como vamos mudar esta forma de trabalhar no terreno?
Antes de mais, temos de começar a trabalhar mais honestamente e ser consequentes no que fazemos numa lógica de eficácia e resultados práticos. Mas isto não acontece no SCE, actualmente. Se formos a um edifício de serviços, qualquer técnico experiente consegue demonstrar rapidamente que as instalações não cumprem os regulamentos/portarias. Há, contudo, boas excepções, certinhas, mas muito poucas. Voltando à maioria, basta medir temperaturas, proceder a alguns balanços e cruzar com o histórico de consumos reais, para concluirmos que as eficiências apresentadas não correspondem ao expresso no certificado. Para além de corrermos o risco de detectar erros crassos na execução da instalação, no seu funcionamento e no modo de controlo. A nossa percepção no terreno é de que 75 ~ 85 % dos edifícios de serviços certificados se encontram nestas condições. Dois exemplos reais: uma escola com os equipamentos parados (ouve-se, amiúde, “não há verba para os pôr a funcionar…”), sem querer, acaba por possuir a eficiência máxima. Porque não consome! Assim, a eficiência declarada no certificado é suplantada. Devemos dar-lhe os “parabéns”?! Num edifício de serviços, detectou-se recentemente, numa simples visita técnica, que o circuito que devia assegurar a principal recuperação energética nunca foi instalado, as tubagens paradas no etéreo e a bomba do circuito nunca viu água. É uma questão de fiscalização deficiente e de certificação. Não se pode certificar o que quer que seja deste modo.
Ir para o terreno pode significar muitas coisas. Aí, a responsabilidade e a competência dos técnicos também tem de existir! Sem estes factores não há sistema, regulamentação ou fiscalização possíveis.
O PQ e/ou o responsável pela manutenção têm de ir ao local e trabalhar no terreno. É a sua função e responsabilidade. O fiscal ao nível das obras/instalações, igualmente. Se o processo de comissionamento (englobando fiscalização) tivesse funcionado desde o início, o Dono de Obra nem imagina o que pouparia! Um processo de Comissionamento impõe que nunca se avance para a fase seguinte enquanto as fases anteriores não estiverem implementadas e consolidadas. Não é complicado! Só temos é de ser competentes e honestos! A Certificação exige honestidade!
E nada disso é feito?
Na generalidade, não. Para além disso, a fiscalização, de uma maneira geral, é mal paga, por isso, mal feita. É o “normal” nessas situações, face ao que o mercado está disposto a pagar, porque, por mais competente que seja o técnico, este move-se para sectores em que é mais bem pago. A tendência é ir para a indústria, que funciona relativamente bem e sabe reconhecer e premiar os bons técnicos.
Ajudava se a figura do TRF (Técnico Responsável Edifício) voltasse a existir na legislação?
Tem de existir alguém que seja efectivamente responsável e licenciado para a tarefa, que assegure e fiscalize o bom funcionamento das instalações, que responda perante a entidade exploradora do edifício. Logo, deve ser contratado directamente por esta, mas simultaneamente responsável, dado o seu contexto profissional específico, nas acções que desenvolve e nas evidências que produz como agente licenciado para este objectivo, respondendo perante a tutela segundo uma grelha de obrigações e direitos devidamente regulamentada. Exige-se um enquadramento legal preciso, para evitar conflitos de interesse, de facto, devo reconhecer.
Mas o mercado está a funcionar e as empresas estão a trabalhar…
Hoje, trabalha-se duas, três vezes mais para se conseguir o mesmo valor de há 15 ou 20 anos.
Voltamos à questão dos preços. O dono de obra não quer ter mais encargos.
Mas vai tê-los, inevitavelmente. Vai pagá-los durante a vida útil do edifício, quer queira quer não, uma vez que fica com o bebé. Os outros players já lá não estão e isso faz toda a diferença. Complica-se logo no início o que é simples (os tais interesses…) e, no fim, a habitual embrulhada onde ninguém é culpado. De facto, o país como um todo tem de ser muito mais exigente consigo mesmo e, acima de tudo, muito mais honesto, tem de subir urgentemente nesta escala para caminharmos em direcção a uma Holanda, Suécia, Finlândia,…
Notas muito finais e muito resumidas?
Por mais que se definam regras, regulamentos, etc., é essencial termos a noção de que a qualidade do conhecimento que este processo exige é elevada. Tem de ser baseada na experiência profissional, com provas dadas. Existe, depois, o chamado conhecimento livresco dos manuais de menor qualidade. Este, só, não chega! Um trabalho de certificação sem actividade de campo, sem a tutela ir ao terreno não funciona, ou funciona mal! O SCE nos edifícios de serviços não pode existir sem a QAI, naturalmente corrigindo os exageros do passado que fazem parte de qualquer processo de aprendizagem. Ou o SCE acabará ele mesmo por se transformar num contra-senso! O SCE deve emendar a mão, de modo isento, recuperar a sua verdade e validade técnicas, como garantir resultados práticos no final, o que, neste momento, não possui. Sem golos, não se ganham os jogos, pelo contrário, perdem-se. Noutra vertente, como é que se pode pretender formatar os PQ, uma classe de profissionais de formação superior, supostamente qualificada? Pedir-lhes que encaixem a sua actividade profissional iminentemente técnica, para além da observância dos preceitos do regulamento e demais portarias, condicionar quase por completo a sua restante actividade, mediante guias de tarefas, tipo “receitas de cozinha”? Estamos a caminhar nesta direcção acrítica. A questão incontornável em termos do mercado: os clientes (promotores, investidores) pagam taxas significativas em troca do quê, concretamente? Como projectista, como é que justifico isto aos meus clientes? Que análise de custo/benefício sustentável lhes apresento? Na actual situação a que chegámos, devo confessar que já não faço certificação, mas debato, troco sugestões com PQ que contrato. Em primeiro lugar, por motivos de higiene mental, em segundo, porque não consigo pagar o meu tempo consumido em tal tarefa “entusiasmante”. Deixou de ser viável.