A procura de uma arquitectura mais sustentável e alinhada com a economia circular obriga os arquitectos a equacionarem uma série de vertentes nos seus projectos, refere o dirigente do CITAD – Centro de Investigação em Território, Arquitectura e Design, Alberto Reaes Pinto. Para o arquitecto e professor da Universidade Lusíada de Lisboa, que foi também um dos impulsionadores da construção sustentável em Portugal, não pode haver “só desenho de conteúdo restrito”, sendo necessário “investir no conhecimento como se fosse uma guerra”.

Quando pensamos em economia circular aplicada aos edifícios, o design é crítico. Como se parece um edifício muito bem concebido do ponto de vista da circularidade?

O edifício circular é um edifício bem resolvido que incorpora materiais renováveis de baixo impacto ambiental, de baixo impacto carbónico. A escolha dos materiais não pode ser feita apenas considerando a questão estética. É preciso escolher materiais que sejam renováveis e que possam ser recicláveis e reutilizáveis no fim do ciclo de vida do edifício, para que no final, em vez de se levar o material ao vazador numa produção linear que esgota o produto e de se extraírem materiais novos da natureza – que são limitados e cuja extracção implica impactos negativos ambientais, gastos de energia, escavações, fabrico a altas temperaturas, etc. –, seja possível aproveitar os materiais utilizados no edifício e reutilizá-los ou reciclá-los, criando novos materiais não extractivos. Depois, há a questão da adaptação à funcionalidade, de tornar os espaços polivalentes e, por isso, é preciso dimensionar os espaços também em função da utilização e do equipamento. E ao mesmo tempo conceber espaços que sejam revertíveis. O que é que isso quer dizer? Nós temos que organizar a casa com uma certa possibilidade de reversibilidade para que cada geração possa gerir a sua vida e a utilização das casas como entender melhor. Portanto, quando se está a fazer um projecto, deve pensar-se também na possibilidade de uma transformação, até porque as casas têm que ser duráveis. E, para isso, também devo utilizar determinadas tecnologias que fixem os materiais mecanicamente: por exemplo, em vez de fazer rebocos posso fixar painéis já com outros acabamentos. As habitações podem ainda ser modulares e evolutivas, acrescentando-se ou retirando-se blocos conforme a necessidade, podendo incorporar o máximo de operações de pré-fabricação. Além disso, esse edifício tem que ter em conta a vertente de energia, incluindo fontes de energia renováveis para ser autónomo. Pode ser através de painéis de células fotovoltaicas nas coberturas ou nos próprios vidros e fachadas, por exemplo, mas é preciso inseri-los sem criar impactos visuais negativos. Outra coisa fundamental é, no fim de vida do edifício, não o demolir, mas desconstruí-lo e desmantelá-lo selectivamente. Desconstruí-lo como? Fazendo um projecto de desconstrução paralelo ao projecto inicial normal, em que tenha – e é fácil – um esquema de desmontagem e de recuperação destes materiais, quer da reutilização dos materiais, quer da reciclagem.

De quem seria a responsabilidade por esse projecto de desconstrução e de desmantelamento selectivo paralelo ao projecto de arquitetura convencional? Seria da arquitectura?

Alberto Reaes Pinto

© Tânia Araújo

Sim, o arquitecto, ao fazer o projecto [da construção], pode fazer também o projecto de desconstrução. O desmantelamento selectivo não é feito de qualquer maneira. Como se faz? Começando pela cobertura, tirando as chaminés, os painéis fotovoltaicos, os painéis solares para aquecimento das águas, se existirem, depois as telhas ou a laje de betão com tela asfáltica e os isolamentos térmicos, etc. Ao mesmo tempo, é preciso começar a tirar as portas, as aduelas, as louças sanitárias, as janelas, etc. Vai-se tirando tudo até às fundações. Se for possível recuperar as fundações, muito bem. Se não for, normalmente ficam lá. Mas já há fundações, em casas de pequeno porte, tipo “saca-rolhas”. São fundações metálicas helicoidais que furam o terreno. Têm umas plataformas e as casas são colocadas a 30 ou 40 centímetros do chão, em cima destes parafusos que se podem tirar. Ou seja, esta desmontagem tem de seguir uma determinada ordem para que se possam recuperar os materiais.

Porque continuamos a demolir edifícios em vez de desconstruir e desmontar?

Porque, nalgumas áreas, somos bastante acomodados… Mas não é só por isso. É porque o mercado está orientado de tal forma que é mais fácil e mais imediato partir tudo e mandar [os resíduos] para o lixo do que esperar que os arquitectos façam os projectos como deve ser. Um projecto muito rapidamente feito e, às vezes, pago de qualquer maneira é uma incoerência tremenda. O projecto, na minha opinião, tem que estar definido até ao parafuso. É preciso fazer um planeamento que diga que no ano tal, no mês tal, na semana tal, no dia tal se vão, por exemplo, abrir as fundações do edifício e que, para isso, são precisos determinados materiais em quantidade e qualidade para haver um stock mínimo em armazém. Depois, é preciso saber como abrir essas fundações, como vai ser o procedimento, quem vai fazer, quantos operadores são, qual a máquina utilizada, etc. Só tendo o projecto completamente definido, até ao parafuso, é que depois se pode fazer uma preparação de trabalho e métodos e um planeamento da obra que permitam aumentar a produtividade, e reduzir os prazos, os encargos financeiros e os custos. Isto é, se eu fizer um edifício num ano e meio em vez de em dois (anos), vai haver uma redução de encargos financeiros significativa, que se traduz na redução dos custos do edifício – mas isto só pode acontecer depois do planeamento.

Refere essa questão dos recursos e dos materiais em stock. Temos mercado para os materiais reaproveitados?

Este mercado já existiu. Há 70 anos, há 50, tínhamos este mercado. Não era bem igual, mas o que é que tínhamos? Tínhamos casas que vendiam grades de varandas, janelas, pedras, sanitários, elementos já reutilizados de demolições que se vendiam em segunda mão. Portanto, aqui, o que se tem de fazer é organizar empresas que recolham e vendam estes materiais. A comercialização não é o problema. O problema é de mentalidade, de mudança de mentalidades. Há pessoas que arriscam, são mais avançadas e querem empreender. Isto é uma oportunidade de negócio. Por exemplo, quando se fez a Expo’98, usou-se, dos edifícios existentes, o betão menos resistente e com menos qualidade em relação ao de hoje, e, mesmo assim, o que é que se fez? Partiu-se o betão – vigas, pilares. Depois, fez-se uma triagem. Armaduras de ferro foram para a siderurgia com uma reciclagem na ordem de 90 %. E o que se fez ao cimento? Triturou-se. E através da trituração do cimento pode fazer-se novo cimento ou pode usar-se para substituir a pedra em caixas, por exemplo, de arruamentos, etc. Portanto, isto tudo é um problema de educação, de conhecimento. Nós temos que investir no conhecimento como se fosse uma guerra. O mercado reage, em alguns casos, a tudo o que é novo, há especulação nalguns casos… É preciso trabalhar o mercado também para que este seja gerido por pessoas lúcidas com essa mentalidade diferente – até porque o mercado tem que mudar e vai mudar porque está a ser pressionado pelas pessoas que já exigem a sustentabilidade.

Qual é o balanço que faz em termos do posicionamento da arquitectura portuguesa nesta transição para a construção circular?

Péssimo, péssimo. Os arquitectos, de uma maneira geral, continuam convencionais. E continua-se a fazer uma “arquitectura imobiliária” no mau sentido. A arquitectura agora tem que ser durável, tem que ser sustentável. Porquê? Porque o património construído, do passado e o que nós criamos, incluindo as habitações, passa por nós e tem que ser dirigido às gerações futuras. Não podemos tratar um edifício de forma qualquer, incluir materiais que ao fim de um certo tempo estão a dar problemas, etc., porque assim estamos a encurtar o ciclo de vida do património. Aquilo que nos chega e aquilo que criamos tem que ser concebido de maneira sustentável para ser utilizado pelas gerações futuras – e também temos de lhes dar espaço… Aqui, podemos questionar o porquê de em cada espaço livre metermos logo um edifício ou o porquê de não fazermos mais reabilitação, que tem a vantagem espantosa de utilizar menos materiais e produzir menos dióxido de carbono. Assiste-se à expulsão das pessoas para a periferia, como aconteceu na década de 60 e 70 [do século passado], e criar outros impactos – é preciso criar infraestruturas e os transportes vão emitir CO2, entre outros. Portanto, o que é que temos de fazer? Temos de planear o futuro. Temos dificuldade em fazê-lo. Não há uma visão global dos problemas e não há uma perspectiva de criar objectivos para incorporar as pessoas e a qualidade de vida das pessoas na forma como se desenham os edifícios e as cidades. Em países do Norte [da Europa], Finlândia, Suécia, Dinamarca, Noruega, a mentalidade é outra. Na Noruega, por exemplo, há casos de estudo de unidades residenciais com reciclagem das águas cinzentas. As águas dos lavatórios, etc., vai para os autoclismos. Ora, na Noruega não há falta de água. E [lá] captam água e não lavam as ruas, não lavam os jardins com água potável. Nós aqui temos cerca de 30 % ou mais de perda de água nos circuitos. Fugas de água. E temos 10 % para a água potável. Lavamos os carros, lavamos as ruas, lavamos tudo e mais alguma coisa com água potável. Esta também seria uma mudança importante nos nossos edifícios; prepará-los para recolher as águas pluviais para lavagens e regas e aproveitar as águas cinzentas também para os autoclismos. A nossa mentalidade tem que ser transformada.

E como é que essa mentalidade pode e deve ser transformada? O BIM pode ajudar?

Sim, o BIM é uma ferramenta fundamental para esta visão abrangente e também porque permite uma preparação de trabalho espantosa. E os materiais estão lá todos. Podemos equacionar várias possibilidades e preparar tudo. Obriga, portanto, a ter um projeto definido. [Na economia circular] Temos uma série de vertentes, e vertentes novas, que o arquitecto tem que equacionar como se fosse uma checklist. Depois tem que fazer uma hierarquização dessas vertentes para chegar a conclusões. Tem que haver uma metodologia. Não é só desenho de conteúdo restrito, até porque o desenho cada vez tem mais carga de conhecimentos. A óptica não pode ser só daquilo que é “bonito”. Tem que ser de integração do local, respeitando as suas características bioclimáticas, etc., priorizando o isolamento térmico da envolvente de edifícios para reduzir o consumo de energia para aquecimento e arrefecimento das casas e resolver outros problemas como as humidades, que se reflectem na saúde das pessoas e na sua produtividade, por exemplo, situação agravada se trabalharem a partir de casa. Tem que ser da organização do espaço, dos materiais utilizados – renováveis em vez de convencionais, que não tenham emissões tóxicas durante o ciclo de vida e que não piorem a qualidade do ar interior ou se traduzam em problemas na saúde dos utilizadores –, das tecnologias de incorporação de materiais e da forma como estão organizados. Normalmente, a evolução ou o aparecimento de novas tecnologias e de novos materiais até estão relacionados com carências graves. Após a Segunda Guerra Mundial, com o bombardeamento de cidades e a destruição de casas, a concentração de pessoas nas cidades e o aumento brutal de natalidade, a capacidade produtiva de França e de outros países da Europa que entraram na guerra era de cerca de 80 mil fogos por ano – isto com materiais tradicionais, mão-de-obra tradicional, tecnologias tradicionais. As carências [de habitação] eram dramáticas, na ordem dos 400/500 mil fogos, portanto, só se podiam fazer casas com meios industrializados. Foi preciso encontrar e dar protagonismo a grandes estaleiros, edifícios industrializados, construção industrializada, pré-fabricação, etc. Antes da guerra, alguns sistemas construtivos não tinham viabilidade. Depois, o mercado passou por um período de quantidade. As casas perdiam calor, mas a energia fóssil era barata e as pessoas aqueciam as casas o quanto queriam. O período de qualidade veio depois, quando o barril de petróleo quadruplicou o preço, em 1973/74. Aí, começou a haver exigências qualitativas relativamente à poupança de energia e ao conforto higrotérmico e acústico e começaram-se a utilizar materiais de isolamento térmico que se comportavam muito bem e que ainda hoje se comportam bem, mas que estão carregados de derivados de petróleo, poliestirenos, etc. Agora, há outros materiais de isolamento térmico – a cortiça, a palha, o cânhamo, a fibra de côco, a lã de rocha – tão ou mais eficazes do que os derivados de petróleo e com menor incorporação fóssil. O impacto negativo ambiental que a indústria da construção e a construção dos edifícios têm vai fazer com que tenha de haver uma mudança de mentalidade.

Refere a questão da estética dos edifícios. Estamos muito focados nisso? E pode a economia circular ter algum impacto na (des)caracterização dos edifícios?

© Marlene Urbano

A arquitectura portuguesa sofre muito da [ênfase dada à] visibilidade no aspecto do edifício. Isso só pode funcionar mal. As casas são caríssimas e, muitas vezes, as pessoas não têm dinheiro para manterem as casas confortáveis porque elas são frias, húmidas… O conforto higrotérmico e acústico do envelope do edifício, a qualidade do ar, etc. acabam por ser secundárias, nalguns casos. O arquitecto tem que ter uma visão global e o projecto tem que traduzir essa visão global. Como é que um edifício circular se parece, a nível de visibilidade? A utilização de materiais e tecnologias circulares pode resultar num edifício como qualquer outro [ou seja, de aparência semelhante à de um edifício convencional], mas não tem de ser como qualquer outro, porque eu não defendo a arquitectura global. Essa globalidade tem características e especificidades fundamentais relacionadas com a rápida disseminação da ciência, da arte, do conhecimento, mas despreza, muitas vezes, as características regionais, locais e culturais. Eu acho que a identidade cultural da arquitectura de um país ou de uma região deve ser mantida e alimentada, ou até pode ser criada uma nova identidade, mas um edifício cá não pode ser igual ao que se faz em França ou na China. A preocupação com a identidade cultural passa também pelo respeito pela geografia do local, pelas suas características bioclimáticas, pelos materiais utilizados – que também devem ser mais locais por uma questão de sustentabilidade –, pela mão-de-obra e pela tecnologia da região.

A tecnologia também pode acomodar essa diferença cultural?

A tecnologia, seja ela qual for, pode ser aplicada [ao edifício e aos componentes] de forma a respeitar a identidade cultural do lugar.

Temos exemplos de edifícios bons do ponto de vista da construção alinhada com a economia circular?

Não, não se pratica cá.

Quais são os principais obstáculos à aplicação da economia circular na arquitectura?

Eu diria que é mesmo a falta de conhecimento e [a questão da] mentalidade. Alguns arquitectos e outros técnicos têm que ser reciclados [brinca]. O que quero dizer é que têm que aprender, numa aprendizagem contínua, para a actualização de conhecimento. A vertente da ciência, tecnologia e investigação é fundamental. Caso contrário, fazemos as coisas sempre da mesma maneira. Em medicina, por exemplo, tirar a vesícula já pode ser uma operação feita através de furos, em vez de ter de ser a “céu aberto”, mas o médico tem de estudar esta técnica ou outra qualquer. Tem que estudar e ver como se faz para progredir. Um arquitecto, tal como um médico, não pode ter uma evolução, quanto a mim, linear. Tem que ser abrangente e isso implica também, noutra vertente, uma visão carregada de cultura, formação, conhecimento de várias áreas – arte, filosofia, história, etc. – e alguma sensibilidade. Tirar partido das emoções, dos sentimentos de fraternidade, partilha, equipa, contribuição para a sociedade, porque a crise que temos não é só climática. É uma crise violenta. Esta transformação faz-se pela educação. Temos que massificar e reter a qualidade. Depois, também há uma burocracia tramada. A falta de regras também pode dificultar, por exemplo, a questão [da implementação] do projecto de desconstrução paralelo. Se quiser fazê-lo, vai ser preciso gastar mais tempo e dinheiro no projecto – e os arquitectos já estão com trabalhos mal pagos – e o empresário ainda está muito condicionado por visões mais imediatistas.

Quando invocamos a economia circular, falamos bastante nos benefícios ambientais. Que outros benefícios pode esta abordagem trazer?

Os benefícios ambientais são fundamentais. A redução do aquecimento global é fundamental. E lidar com a falta de recursos também, até porque a população mundial está significativamente a aumentar. Os recursos são finitos neste planeta. Têm que se criar meios para nós não estarmos sempre a querer ir tirar recursos à natureza, desequilibrando-a e destruindo os ecossistemas. E a produção não extractiva de recursos, ou seja, o não deitar materiais para o lixo e aproveitá-los para produzir outros materiais, é fundamental na economia circular e tem benefícios ambientais e não só. A eficiência dos materiais é também uma vantagem. E a mecanização, no bom sentido, pode permitir a eficiência dos processos. Em vez de fazer um reboco – que requer fazer antes o chapisco e o emboço –, com a força do pulso, posso substituí-lo por uma monomassa. A nível económico, não se pode ver as coisas de forma economicista pura e dura ou só unilateralmente. O mais barato é aquilo que traz qualidade e não cria tantos problemas tendo em vista o prolongamento do ciclo de vida, a redução dos custos de manutenção, etc. É mais caro extrair o produto da natureza, transportá-lo para a fábrica, fabricá-lo convencionalmente com a produção de gases de efeito de estufa, lidar com os resíduos e com a contaminação, do que desmantelar o edifício e aproveitá-lo – isto quando se está a trabalhar no mercado já com aceitação de boas práticas e numa economia consequente.

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 149 da Edifícios e Energia (Setembro/Outubro 2023).