No vocabulário da transição energética, está a surgir um novo conceito, o de cidadania energética. Para estudar em que consiste e em que condições floresce, o projecto europeu GRETA, que abrange, entre os parceiros, a empresa portuguesa Cleanwatts, desenvolveu um inquérito que permite apontar para oito perfis de cidadãos de energia, onde Portugal aparece como o país “com cidadãos mais activos”. Desenvolveu ainda outras ferramentas, como contratos de cidadania energética, bem como um pacote de recomendações de políticas públicas para responder a entraves.

Financiado pelo programa Horizonte 2020, o projecto Green Energy Transition Actions, ou apenas GRETA, terminado neste ano, “nasceu com a ideia não apenas de definir o conceito emergente de cidadania energética, mas de entender também em quais condições melhor emerge”, refere Lurian Klein, senior innovation developer na Cleanwatts, membro do consórcio europeu coordenado pela Universidade LUT (Finlândia).

Afinal, o que é cidadania energética? Para o especialista em sistemas de energia sustentável, o conceito “está atrelado a uma participação activa dos cidadãos nos sistemas energéticos numa determinada área geográfica” e, em última análise, á transição energética, sendo que “essa participação pode acontecer em diversos formatos e tem diferentes naturezas”.

Na prática, pode ser individual ou colectiva, mais formal ou informal, e o envolvimento pode ser materializado através do activismo climático, da participação em comunidades de energia renovável, da alteração para um comercializador de energia com tarifas mais amigas do ambiente, da troca de lâmpadas ineficientes para outras de tecnologia LED. “Os formatos em que a cidadania se faz presente são infinitos.”

E porque importa? A resposta está na relação entre esta cidadania energética e conceitos que já são de uso comum no dicionário da transição energética e que funcionam, muitas vezes, como argumentos para essa mesma mudança. São conceitos como sustentabilidade ambiental, segurança energética, descarbonização, inovação e desenvolvimento tecnológico e empoderamento comunitário.

Seis casos de estudo e um inquérito transnacional.
Portugal é o país com “cidadãos mais activos”

Sabendo que a cidadania energética se pode manifestar de múltiplas maneiras, o projecto GRETA desenvolveu seis casos de estudos “bem contrastantes uns dos outros” em Itália, Espanha, Portugal, Alemanha e Países Baixos. O objectivo era “testar diversos mecanismos de cidadania energética em condições diferentes” e, por isso, a iniciativa considerou diferentes escalas geográficas, configurações de comunidades distintas e diversas condições sociodemográficas, sociotecnológicas e sociopolíticas (incluindo institucionais).

Lurian Klein, senior innovation developer na Cleanwatts.

Os casos de estudo vão desde uma cooperativa espanhola local de eficiência energética ou de um bairro social de energias renováveis na cidade italiana de Bolonha Pilastro-Roveri, até uma rede transnacional de mobilidade eléctrica autónoma e conectada. Em Portugal, o caso de estudo consistiu na análise, numa escala nacional, da cooperativa de energias renováveis Coopérnico.

Lurian Klein, que realizou este caso de estudo, diz que foi no exemplo português que se verificou “um maior nível de envolvimento, na totalidade”. “Estamos a falar de um grupo com características muito homogéneas em termos de comportamento, cidadãos extremamente envolvidos na causa da transição energética” e “geralmente bem informados em questões de sustentabilidade, eficiência energética e, em particular, energias renováveis”.

Para “testar empiricamente” aquilo que se aprendeu com a análise dos casos de estudo e alargar o estudo da cidadania energética, o projecto GRETA implementou ainda um questionário multinacional em 16 países da União Europeia. A partir de cerca de dez mil respostas de uma amostra que tinha como requisito ser “o grupo mais heterogéneo possível”, foram criados “oito clusters de perfis de cidadãos de energia” e um mapa que faz a “ancoragem geográfica dos resultados”, permitindo a comparação entre países.

“Nesse inquérito multinacional, os portugueses acabam por ser os cidadãos mais activos dentro da União Europeia, com aproximadamente 50 % categorizados nos perfis de cidadãos activos ou defensores da causa da energia, o que é interessantíssimo”, sublinha Lurian Klein. E não só. “É o país também com menor quantidade de pessoas no perfil de indiferentes, o perfil menos envolvido e motivado na transição energética”, acrescenta.

Como explicar este resultado? Segundo o especialista, não basta olhar para um factor. É preciso olhar para o “pacote de factores considerados no desenho do inquérito”, que incluem, entre outros, o sistema de valores e as atitudes das pessoas, os recursos e a capacidade para se envolverem na transição energética sustentável, questões sociodemográficas, a dimensão das casas, as despesas com energia, o comportamento energético, as actividades de poupança de energia e o nível de confiança em diferentes fontes de informação sobre a transição energética.

Na esfera desses múltiplos critérios, Lurian Klein diz, ainda assim, que “uma das possíveis justificações” pode estar relacionada com a transposição feita por Portugal das directivas europeias que tocam no autoconsumo colectivo de energia renovável, nas comunidades de energia renovável e nas comunidades cidadãs de energia. “O Governo português transpôs essas directivas europeias em 2018, criando um novo paradigma de energia”.

“A Cleanwatts, empresa que represento, dedicou-se a esse novo paradigma – à construção e gestão de comunidades de energia renovável –, que só é possível a partir de uma mudança das políticas públicas”, exemplifica. “Acho que [a transposição] não explica tudo, mas pode ser um caminho para se compreender”, adiciona.

Cidadania energética: oito perfis e entraves

Indiferentes – 9 % UE: Estão conscientes das questões climáticas mas não lhes prestam atenção e não acreditam que as suas acções façam a diferença e que poupar energia valha a pena. Têm uma atitude neutra, estando abertos a implementar energia verde, mas só se isto não lhes afectar o estilo de vida.

Cépticos da informação – 9 % UE: Estão conscientes do debate climático, mas duvidam do impacto das suas acções e estão pouco motivados. Têm uma atitude negativa, não acreditando em quase todas as fontes de informação, e não se vêem a investir em tecnologia verde ou a entrar em cooperativas de energia.

Condicionados – 21 % UE: Têm consciência das questões climáticas e confiam na ciência para resolver o problema, mas não acreditam que empresas de energia ou governos têm impacto na situação. Normalmente são mais velhos, vivem em apartamentos, têm menos rendimentos e menos opções de acção, mas estão dispostos a poupar energia no dia-a-dia, sobretudo se pouparem dinheiro. Podem já ser sustentáveis no uso da energia.

Imaturos – 3 % UE: Preocupam-se com a sustentabilidade, discutem assuntos climáticos com amigos e família e confiam neles nestes tópicos. No entanto, normalmente mais novos, a viverem a apartamentos e com poucos rendimentos disponíveis, não conseguem tomar soluções que requeiram investimento. Têm potencial para serem decididos.

Socialmente motivados – 13 % UE: Não estão muito preocupados com a questão ambiental e não têm muita confiança nas instituições nacionais, na indústria, nos cientistas ou nas acções individuais, mas são motivados por factores sociais e curiosos quanto a actividades como comunidades de energia, por exemplo.

Investidores – 13 % UE: Têm rendimentos mais elevados e estão preocupados com o ambiente, investindo financeiramente em energia renovável, por exemplo, mas não tanto em acções comunitárias por constrangimentos de tempo, embora percebem que as acções comunitárias têm mais impacto.

Decididos – 13 % UE: Procuram fontes de rendimento adicionais e reconhecem a importância das acções ecológicas, acreditando que todos devem participar e discutindo questões ambientais com amigos e família. Interessam-se por acções simples e fáceis para poupar energia, sendo mais cautelosos quanto a investimentos maiores ou a acções que os tornem dependentes de outros.

Conhecedores – 19 % UE: Estão conscientes das questões ambientais e da necessidade do contributo de todos, acreditando em informações de governos, cientistas e outras fontes digitais, e são sensíveis aos temas de justiça energética e acesso igualitário à energia. Tentam poupar energia, usam aplicações móveis para isso e podem estar interessados em advogar por uma transição energética justa na sociedade.

Considerando os últimos quatro perfis como “activos” ou “empenhados”, o projecto GRETA concluiu, a partir do inquérito, que 58 % dos cidadãos da União Europeia já estão a participar na transição energética. Em Portugal, a percentagem conjunta destes quatro perfis mais envolvidos situa-se nos 73 %.

O que impede um maior envolvimento? Constrangimentos financeiros, falta de conhecimentos, uma atitude individualista de que “não vale a pena”, bem como uma ideia de que compete aos governos a tarefa de liderar a transição energética – uma “ideia de isenção dos cidadãos, o que é uma inverdade” –, responde Lurian Klein, com base nas conclusões do inquérito.

Para endereçar esses e outros entraves ou fatores, o projecto GRETA desenvolveu um pacote de seis recomendações de políticas públicas, que foram partilhadas num workshop com decisores políticos multi-nível. É também “assim que o projecto espera manter-se activo e vivo, mesmo apesar do fim oficial do projecto”, realça o responsável. 

Que políticas públicas fazem sentido?

Nesse pacote de políticas públicas, são feitas seis recomendações. A primeira está ligada ao envolvimento dos cidadãos na transição energética por meio de incentivos políticos monetários ou não que reconheçam e compensem o tempo e o compromisso financeiro dos cidadãos que participam na transição energética sustentável e à promoção de programas nacionais para a formação de mediadores que, a nível local e regional, prestem atenção a comunidades vulneráveis e funcionem como ponto de acesso a informação de qualidade.

A segunda sugestão passa por criar vários pontos e formatos de diálogo com os cidadãos, desde flyers, aos mediadores ou outros, incluindo a disponibilização de plataformas digitais que melhorem o intercâmbio de conhecimentos entre os vários intervenientes. Ligada a esta questão da troca de informação, surge também a terceira recomendação que se refere a uma aposta na criação de hubs integrados de cidadania energética, locais e regionais, aos quais é possível aceder a informação centralizada e que “pode ser entendida por qualquer cidadão”.

O ponto quatro diz respeito à promoção de contratos de cidadania energética. Trata-se duma ferramenta desenvolvida no projecto que visa um acordo voluntário, sem implicações legais, entre comunidades energéticas e iniciativas políticas em torno de objectivos e práticas de sustentabilidade. Ao mesmo tempo, ajudam a entender os direitos e deveres de cada um na transição energética sustentável. “Ajudam a criar uma maior clareza sobre o papel proativo que os cidadãos podem ter neste novo paradigma”, reforça Lurian Klein, explicando que estes contratos derivam dos Climate City Contracts, uma iniciativa da Comissão Europeia na Missão Cidades Inteligentes e com Impacto Neutro no Clima até 2030.

A quinta recomendação tem a ver com a proximidade e a sua integração nos quadros políticos, uma vez que é considerada o “motor da cidadania energética”. Pode ser proximidade espacial, social, técnica e económica ou até política. “Se o conceito da proximidade for levado em conta, é mais fácil conseguirmos personalizar as acções de política pública para um target de proximidade específico e conseguir envolver uma maior quantidade de pessoas”, refere. Por fim, a sexta está relacionada com a utilização e divulgação personalizada e inclusiva de diferentes dados de energia, procurando apelar aos diferentes perfis de cidadãos de energia.

Com a ambição de “promover a emergência da cidadania energética, para aumentar a sensibilização para esse conceito e remover as barreiras políticas que impedem as pessoas de exercer essa própria emergência energética”, o GRETA elaborou ainda muitas outras ferramentas. A título de exemplo, Lurian Klein destaca os Community Transition Pathways,  roteiros colaborativos para a descarbonização respeitantes a diferentes grupos de pessoas, e o Open Portfolio for Civic Energy Empowerment, um repositório aberto e público com os principais resultados e instrumentos deste projecto.