Artigo publicado originalmente na edição de Março/Abril de 2025 da Edifícios e Energia.
Com a nova revisão da EPBD – Directiva para o Desempenho Energético dos Edifícios, temos a oportunidade de traçar um novo caminho para uma manutenção que consiga impactar, efectivamente, na diminuição da utilização de energia nos edifícios. Sabemos que os sistemas de aquecimento, ventilação e ar condicionado (AVAC) representam entre 40 e 60% da utilização de energia nos edifícios de serviços e sabemos também que uma manutenção preventiva adequada pode melhorar a eficiência operacional desses sistemas, permitindo reduções entre 10 e 20% na utilização de energia, o que equivale a uma diminuição global de 5 a 10% no consumo total de energia dos edifícios de serviços.
Exemplos de regulação dos sistemas de AVAC são o Regulamento dos Sistemas Energéticos de Climatização em Edifícios (RSECE) e o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Comércio e Serviços (RECS). Documentos que definiram a manutenção e inspecção dos sistemas de AVAC e estabeleceram requisitos para garantir a qualidade do ar interior e a eficiência energética dos edifícios.
Esta regulamentação exige que os edifícios comerciais, industriais e públicos realizem inspecções regulares dos seus sistemas de AVAC, assegurando que estejam em conformidade com padrões de qualidade do ar interior e eficiência energética. No terreno, no entanto, muitos edifícios operam sem qualquer tipo de acompanhamento técnico ou manutenção preventiva, aumentando o risco de falhas técnicas e comprometendo a saúde dos ocupantes. Isso ocorre porque a fiscalização é frequentemente reactiva, sendo realizada apenas após denúncias ou problemas graves, como o caso do aparecimento de legionella.
Embora exista legislação, a sua aplicação prática está longe de ser plenamente alcançada. Questões relacionadas com a fiscalização, quer na fase de construção, quer na fase de exploração – custos elevados, falta de consciencialização dos gestores dos edifícios e complexidade técnica – comprometem a eficácia do legislado.
Diante deste panorama, é importante destacar alguns pontos críticos, já conhecidos por muitos profissionais do sector:
1. Falta de fiscalização efectiva
Acreditamos que a ausência de uma fiscalização activa é um dos principais entraves ao cumprimento da legislação. Muitas empresas e instituições públicas não cumprem as exigências legais porque sabem que não há fiscalização. O projectista declara que o projecto cumpre a legislação, o director de obra declara que as instalações cumprem o projecto e o perito qualificado emite o certificado energético baseado na declaração deste, sem ter efectuado quaisquer acompanhamento e/ou verificação. Depois de executadas as instalações, é sempre mais difícil verificar o que está executado. Para piorar, as sanções a aplicar aos possíveis infractores são insignificantes em comparação com os custos de execução correcta, o que cria um ciclo vicioso onde as organizações preferem correr o risco de multas menores em vez de investir em soluções adequadas para garantir o bom funcionamento dos sistemas de AVAC.
2. Falta de um comissionamento adequado
Quando falamos em comissionamento, a tendência é para pensarmos na verificação final das instalações com vista à sua entrega. Pretende-se garantir que todos os sistemas, equipamentos e componentes instalados estejam a funcionar conforme as especificações do projecto. Para tal, é executada uma série de testes, verificações e validações técnicas, geralmente nas fases finais da obra ou durante a fase de arranque dos sistemas. O processo inclui a calibração, a integração dos sistemas, a verificação do desempenho e o treino dos operadores, assegurando que a instalação opera com a eficiência e segurança desejadas. Este conjunto de verificações é, na maior parte dos casos, simplificada devido à pressão da entrega da obra e os problemas, se identificados, são grosseiramente corrigidos, uma vez que a correcção adequada pode ser complexa e implicar revisões substanciais que afectem significativamente, não só a qualidade, mas também os custos da obra, pelo que é corrente deixar como está, resultando na precariedade de acessos aos equipamentos para a sua correcta manutenção e escamoteamento de etapas de ajustes e calibrações.
3. Custos elevados e restrições orçamentais
Os custos associados à manutenção especializada dos sistemas de AVAC representam um obstáculo significativo, especialmente no sector público. Muitos proprietários e gestores de edifícios, pressionados por limitações financeiras, optam por adiar ou reduzir investimentos em manutenção preventiva. Essa abordagem económica de curto prazo pode parecer vantajosa inicialmente, mas resulta em consequências negativas a longo prazo, incluindo falhas técnicas, degradação acelerada dos equipamentos e aumento dos custos operacionais. No caso dos edifícios do Estado, a situação é agravada pela burocracia envolvida nos processos de contratação pública. A necessidade de aprovações múltiplas e o foco excessivo em critérios de preço mais baixo frequentemente levam à escolha de fornecedores menos qualificados ou incapazes de oferecer serviços com a qualidade adequada.
4. Baixa consciencialização sobre a importância da Qualidade do Ar Interior (QAI)
A importância da QAI ainda não é amplamente reconhecida por decisores, operadores e ocupantes de edifícios. Muitas pessoas subestimam os impactos negativos de um sistema de AVAC mal mantido, que pode levar à proliferação de fungos, bactérias e outros poluentes, comprometendo a saúde respiratória e causando desconforto térmico. A campanha de sensibilização lançada com o RSECE (2007-2010), em que se pretendia através dos peritos qualificados do SCE chegar aos gestores dos edifícios e ao público, foi abortada pela extinção das auditorias à QAI. Para além disso, a complexidade técnica envolvida na gestão dos sistemas de AVAC dificulta a comunicação clara entre especialistas e leigos, criando uma barreira adicional para a adopção de boas práticas.
5. Complexidade técnica e escassez de mão de obra qualificada
Os sistemas de AVAC modernos são altamente sofisticados, incorporando tecnologias avançadas de controlo e automação. Isso exige profissionais com formação específica e actualizada para realizar manutenções adequadas. No entanto, a escassez de técnicos qualificados no mercado nacional torna difícil encontrar equipas capazes de garantir a conformidade com as normas estabelecidas.
6. O papel dominante das empresas de construção que acabam distorcendo o mercado
Um factor crucial que contribui para os desafios enfrentados pelo sector de manutenção dos sistemas de AVAC é a relação desequilibrada entre as construtoras e empresas especializadas. As grandes construtoras frequentemente detêm um papel dominante, liderando projectos de construção e subcontratando empresas especializadas para realizar trabalhos específicos, incluindo a instalação e manutenção de sistemas de AVAC.
Ora, essas construtoras tendem a impôr preços muito baixos às empresas subcontratadas, restringindo os seus orçamentos operacionais e dificultando a contratação de mão de obra qualificada ou a aquisição de equipamentos adequados. Essa prática, para além de comprometer a vida e qualidade dos sistemas de AVAC, resulta no enfraquecimento gradual dessas empresas especializadas, comprometendo a sua capacidade técnica e financeira de oferecer serviços de alta qualidade.
Desta forma, as construtoras retêm grande parte das “mais-valias” geradas nos projectos, enquanto as empresas especializadas ficam com margens de lucro mínimas. Esse modelo não apenas desincentiva investimentos em formação contínua e tecnologia avançada por parte das empresas subcontratadas, mas também perpetua um ciclo de precariedade no sector que na última década viu desaparecer os últimos grandes instaladores que, sem recursos suficientes para se modernizarem e expandirem, acabaram por fechar as portas, deixando um vazio no mercado das instalações e da manutenção especializada.
NÃO BASTA LAMENTAR – É PRECISO APONTAR UM NOVO CAMINHO
Para mitigar estas questões, é essencial adoptar uma abordagem multifacetada que combine reforço da fiscalização, integração do comissionamento desde o projecto até à exploração, aumento da consciencialização, promoção de modelos de contratação baseados na qualidade e incentivo à adopção de tecnologias inovadoras. Eis algumas medidas que propomos:
1. Criação da Fiscalização
A criação de uma força de fiscalização dedicada e capacitada pode ajudar a garantir que a legislação seja cumprida de forma consistente. As autoridades devem investir em mecanismos de auditoria regular e imprevista a edifícios, quer em construção, quer construídos e em funcionamento, utilizando tecnologia para facilitar o processo. Por exemplo, poderiam ser utilizadas plataformas digitais para registar e acompanhar as inspecções realizadas, garantindo transparência e responsabilização.
Além disso, as sanções aplicadas aos infractores devem ser mais severas e proporcionais ao grau de descumprimento. Multas elevadas ou suspensão temporária de licenças podem servir como incentivos poderosos para o cumprimento da legislação.
2. Processo de Comissionamento
Integrar o comissionamento desde a fase de projecto e acompanhar toda a execução da obra, estendendo-se até à fase de operação. Dessa forma, é possível identificar e corrigir problemas de forma mais ágil, optimizar os acessos e a manutenção dos equipamentos, além de garantir uma transição mais suave para a operação dos sistemas com o treino adequado dos operadores. Durante o processo de comissionamento devem ser realizadas inspecções detalhadas, testes funcionais e calibrações que identifiquem e corrijam problemas antes que o sistema entre em operação plena e, ao mesmo tempo, devem ser estabelecidos valores de referência para o desempenho energético para que no futuro, durante a manutenção preventiva, estes valores possam ser comparados com os medidos, por forma a detectar desvios anormais.
Este processo deve ser a base do plano de manutenção, fornecendo informações essenciais sobre o estado inicial dos sistemas, os seus pontos críticos e as melhores práticas para a sua operação e conservação, permitindo que sejam estabelecidos procedimentos mais precisos e eficazes para monitorizar e preservar o desempenho dos sistemas ao longo do tempo. Para que isto seja possível, é necessário que sejam estabelecidas revisões periódicas – Recomissionamento – durante o ciclo operacional dos sistemas de AVAC.
3. Incentivos Financeiros
Programas de incentivo financeiro, como subsídios ou benefícios fiscais, podem motivar proprietários e gestores de edifícios a investir em manutenção regular. Esses programas poderiam ser direccionados especificamente para pequenas e médias empresas, que muitas vezes enfrentam maior dificuldade em arcar com os custos associados.
Além disso, medidas regulatórias podem ser introduzidas para garantir maior equidade na distribuição de contratos entre construtoras e empresas especializadas. Por exemplo, poder-se-ia exigir que um percentual mínimo dos recursos destinados a projectos de construção seja reservado exclusivamente para empresas focadas em manutenção dos sistemas de AVAC, garantindo-lhes acesso justo ao mercado.
4. Formação e Certificação
Investir em programas de formação contínua para técnicos dos sistemas de AVAC é crucial para colmatar a escassez de mão de obra qualificada. As instituições de ensino técnico e as universidades podem colaborar com empresas do sector para desenvolver cursos especializados que preparem profissionais para lidar com as necessidades crescentes do mercado.
Certificações oficiais também podem ser introduzidas para garantir que os técnicos mantêm os seus conhecimentos actualizados e demonstram competência em áreas específicas, como a eficiência energética ou a saúde ambiental.
5. Adopção de Abordagens Preventivas
Priorizar a manutenção preventiva em vez de correctiva pode gerar economias significativas a longo prazo. Isso envolve a implementação de planos de manutenção personalizados para cada edifício, levando em consideração as suas características únicas e as necessidades específicas. Ferramentas de diagnóstico preditivo, como sensores inteligentes e análises de dados, podem ser usadas para identificar potenciais problemas antes que eles ocorram.
6. Tecnologias Inovadoras
A digitalização dos sistemas de AVAC oferece oportunidades sem precedentes para melhorar a sua eficiência e sustentabilidade. Soluções como sensores de qualidade do ar, sistemas de automatização e plataformas de monitorização em tempo real podem optimizar o desempenho dos equipamentos, reduzir o consumo de energia e garantir ambientes mais saudáveis para os ocupantes.
Por exemplo, a IoT (Internet of Things) permite que dispositivos ligados em rede monitorizem continuamente parâmetros como temperatura, humidade relativa e concentrações de CO2, enviando alertas automáticos sempre que valores fora dos limites aceitáveis forem detectados. Esta abordagem proactiva ajuda a evitar falhas catastróficas e minimiza o impacte ambiental.
CONCLUSÃO
A manutenção adequada dos sistemas de AVAC é fundamental para garantir a qualidade do ar interior, a saúde dos ocupantes e a eficiência energética dos edifícios. Embora a legislação já tenha avançado nessa direcção, a sua aplicação prática ainda enfrenta diversos desafios que precisam ser superados. Ao combinar fiscalização eficaz, processo de comissionamento, consciencialização pública, qualificação técnica e inovação tecnológica, podemos criar ambientes interiores mais seguros, eficientes e sustentáveis, beneficiando tanto os utilizadores quanto o meio ambiente.
A transformação desse cenário passa por uma mudança cultural e institucional, onde todos os stakeholders — desde legisladores e gestores de edifícios até técnicos e ocupantes — reconheçam a importância vital dos sistemas de AVAC e trabalhem juntos para garantir o seu pleno funcionamento.
Para tal, o Sistema de Certificação Energética deve reconhecer na revisão em curso – até 29 de Maio de 2026 – o papel determinante que os Peritos Qualificados podem ter na sua articulação com o dono de obra, o director de obra e o projectista dos sistemas de AVAC e incluir na legislação as medidas acima propostas. Somente assim será possível transcender a mera existência de legislação e construir um futuro mais resiliente e sustentável.
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.