Artigo publicado originalmente na edição de Março/Abril de 2021 da Edifícios e Energia

Nos últimos anos, o bairro de Coronación, na cidade espanhola de Vitoria-Gasteiz, tem sido palco de demonstração de soluções inovadoras para reforçar a sustentabilidade das cidades europeias. Enquanto cidade farol do projecto SmartEnCity, a estratégia de Vitoria-Gasteiz aposta tudo na reabilitação energética dos edifícios e coloca, em cima da mesa, uma solução a que os bascos estão pouco habituados: uma rede urbana de distribuição de calor.

Depois de ter sido Capital Verde Europeia em 2012, a cidade espanhola de Vitoria-Gasteiz passou a destacar-se no mapa europeu de municípios que têm na sustentabilidade um dos seus eixos de actuação. O legado permanece até hoje e são várias as iniciativas locais que acompanham as ambições europeias em matéria de energia, clima e desenvolvimento sustentável. O projecto SmartEnCity – Towards Smart Zero CO2 Cities across Europe, que decorre desde 2016, é uma delas e tem na reabilitação energética do edificado a sua bandeira.

Tudo acontece no bairro de Coronación, localizado a noroeste do centro histórico e conhecido por ser uma das áreas mais vulneráveis desta cidade basca, e, por isso, prioritárias para intervenção aos níveis social, de habitabilidade, acessibilidade e eficiência energética. Coronación faz, inclusivamente, parte dos Barrios de Oro de Vitoria-Gasteiz, áreas urbanas construídas entre os anos 50 e 70 do século passado e definidos assim pela câmara municipal face ao potencial que a sua regeneração representa na melhoria quer do espaço público, quer de qualidade de vida da população.

Com a participação no SmartEnCity, coordenado localmente pela empresa pública de habitação do governo regional, VISESA, o município tem tido a oportunidade de concretizar esse potencial e os resultados e lições aprendidas neste bairro deverão servir de exemplo para outras cidades europeias. Isto porque Vitoria-Gasteiz é uma das cidades farol do projecto internacional, que se prolonga até Julho deste ano e cujo orçamento, para a cidade, supera os 29 milhões de euros, apoiados pelo programa Horizonte 2020 (H2020). Para além da espanhola, duas outras cidades assumem um papel similar: Sønderborg, na Dinamarca, e Tartu, na Estónia. As três são seguidas de perto por Lecce, na Itália, e Asenovgrad, na Bulgária. Num consórcio com 35 parceiros, o objectivo é “desenvolver uma abordagem sistémica para a transformação das cidades europeias em ambientes urbanos sustentáveis, inteligentes e eficientes na forma como usam os recursos”.

Escolhido para ser a área de demonstração na cidade do País Basco, o bairro de Coronación está a ser palco de intervenções em cinco eixos, sendo a reabilitação energética das habitações e a implementação de uma rede de distribuição de calor a biomassa as de maior envergadura. O projecto propõe também a regeneração do espaço público, a promoção de medidas para a mobilidade sustentável, nomeadamente a electrificação de veículos de serviço e a implementação de uma nova linha inteligente para autocarros eléctricos, e, por fim, o desenvolvimento de uma plataforma de gestão urbana, aberta para os utilizadores.

Reabilitar e ligar à rede são requisitos

Para implementar as diversas medidas, foi escolhida a área mais antiga e vulnerável do bairro, num total de 89 100 m2, de uso maioritariamente residencial, com alguns estabelecimentos comerciais no piso térreo. Inicialmente, estavam incluídos na área do projecto 108 edifícios, mas, em 2017, a pedido dos moradores, o âmbito foi alargado a uma área de 147 edifícios. Numa análise prévia feita ao desempenho energético destes edifícios, 90 % obteve a classificação F ou G, comprovando a urgência de intervenção.

Para a renovação energética, o projecto tinha como objectivo chegar a 750 habitações, para as quais foram definidas seis tipologias diferentes. O município realizou um acordo com entidades de arquitectos e agrimensores, com experiência em intervenções de melhoria de desempenho energético e, em resultado, 55 equipas profissionais apresentaram propostas de soluções face às necessidades identificadas. Não obstante, a proposta da VISESA exigia duas acções centrais: intervenção na envolvente e ligação à nova rede de aquecimento urbano.

Exemplos de intervenções nos edifícios do bairro: antes/depois da intervenção. Fonte: VISESA

No que se refere à envolvente, cada uma das tipologias identificadas teve direito a várias propostas, sendo que a regra passou por ir além do que é exigido em termos da regulamentação em vigor. Perante isto, o projecto definiu, para o isolamento, uma espessura média utilizada de 14 centímetros e, para a transmissão térmica, U máximos permitidos de 0,211 W/m²K para fachadas e coberturas e de 0,4 W/m²K para os pisos térreos. Já a substituição ou melhoria das janelas está dependente das condições gerais dos envidraçados.

A segunda condição para fazer parte do projecto – e beneficiar dos apoios financeiros previstos– é a ligação à nova rede de distribuição de calor, gerida por uma empresa de serviços de energia, e cuja obra arrancou em Julho de 2020. Esta acabou por revelar-se um dos principais desafios para a cidade espanhola no âmbito do SmartEnCity, confessa Alberto Ortiz de Elgea, coordenador do projecto na VISESA, e a razão está no facto de não haver na cidade uma cultura de utilização de redes urbanas de aquecimento.

Exemplos de intervenções nos edifícios do bairro: antes/depois da intervenção. Fonte: VISESA

Para alimentar o sistema, a biomassa foi escolhida como fonte de energia por ser um recurso local e mais competitivo do ponto de vista económico, explica a autarquia. A partir de uma “casa das máquinas” no Centro Cívico Aldabe, onde se encontram as caldeiras a biomassa e gás natural e um silo no qual a biomassa é armazenada, o calor gerado é distribuído pelos edifícios, sendo, depois, utilizado para aquecimento ambiente e águas quentes sanitárias. Desta forma, pretende-se que as famílias deixem de usar as caldeiras a gás natural, individuais ou centralizadas, para passarem a usar um sistema colectivo mais eficiente e com base numa fonte de energia renovável.

A ligação entre o edifício e a rede é feita no ponto mais próximo entre os dois e o calor é, depois, levado até à subestação de transmissão térmica instalada em cada habitação (instalada, por exemplo, no local onde anteriormente ficava a caldeira a gás natural). Cada apartamento dispõe ainda de um contador individual que permitirá monitorizar o consumo. Qualquer edifício desta área da cidade pode ligar-se à rede, no entanto, apenas os edifícios que estiverem contemplados no projecto europeu podem beneficiar das ajudas financeiras para o efeito. No fim de cada mês, todas as habitações ligadas à rede de aquecimento urbano pagam um valor fixo e de disponibilidade, ao quais acresce o valor variável correspondente ao consumo de cada casa. Nas contas do projecto, a instalação da rede, que deverá estar concluída no final deste ano, representa cerca de 4,5 milhões de euros.

Fazendo jus à componente smart do projecto, os planos para a cidade de Vitoria-Gasteiz incluem a criação de uma plataforma urbana de gestão de dados, essencial para gerir aquilo que são os objectivos mensuráveis da iniciativa europeia: reduzir o consumo energético e as emissões de CO2. Assim, os moradores das habitações reabilitadas podem aceder a dados de parâmetros relacionados com as suas casas, não só no que se refere ao uso de energia, mas também em matéria de conforto (humidade, temperatura), e, com base nisso, tomar decisões sobre as suas necessidades de aquecimento.

“Sem cidadãos, não há projecto”

Segundo as estimativas da VISESA, a reabilitação de cada habitação custa, em média, 21 mil euros, variando consoante as particularidades do projecto. Embora beneficie do financiamento do H2020, com cerca de 15,7 milhões de euros para a reabilitação do edificado, o montante não é suficiente. A solução para contornar este constrangimento foi apostar num modelo de parceria público-privada, que terá como “beneficiários os moradores do bairro, que contribuem, por sua vez, para as despesas das obras de reabilitação”. Assim, o investimento é repartido entre proprietários e entidades públicas: o apoio público previsto é de 54 % do investimento – uma média de 11 400 euros –, que será assegurado pela Comissão Europeia (23 %), governo do País Basco (25 %) e pelo município (6 %); por sua vez, ao proprietário, cabe um investimento de 46 % (na ordem dos 9 600 euros). Mas, num bairro com as fragilidades económicas e sociais como Coronación, o acesso ao projecto não poderia ficar condicionado à disponibilidade de investimento e, de forma a tornar este processo acessível a todos, foi criado, pelos governos local e regional, um fundo de garantia para agregados com rendimentos anuais inferiores a 21,1 mil euros. O mecanismo pode cobrir até 100 % dos custos e, ao fim de 25 anos, caso não haja mudança no proprietário, converte-se em fundo perdido.

Fazer com que este modelo funcione pressupõe que haja um forte envolvimento dos moradores no projecto e a VISESA tomou isso em consideração. Nesta estratégia, foi importante a identificação dos stakeholders chave locais e o seu envolvimento para a definição dos objectivos comuns no âmbito da iniciativa. Para além disso, foi preciso chegar à restante população local e foram várias as estratégias aplicadas, entre distribuição de materiais informativos, campanhas na imprensa, reuniões comunitárias, eventos públicos com moradores e sensibilização porta-a-porta.

O projecto apostou também no impacto do efeito “dominó”. Isto é, identificando os primeiros aderentes e promovendo as acções realizadas com vista a atrair mais interessados. A proximidade mostrou-se determinante e, depois de perceber que o gabinete de apoio ao projecto “oficial” fora da área de demonstração recebia poucas visitas, em finais de 2017, a empresa pública abriu um ponto de informação no centro do bairro para estar junto desta população e esclarecer, assim, as dúvidas de proprietários e outros residentes. Qual a finalidade de tudo isto? Garantir que a transformação prevista para Coronación tinha por base um modelo de co-criação.

Espaço público e mobilidade suave

Carregamento de autocarro eléctrico ©SmartEnCity

Para melhorar o espaço público, o projecto recorreu à ajuda dos moradores, que, através de workshops participativos, partilharam as suas visões e ideias para o bairro. Depois de algumas acções, ficou definido que a área de actuação do projecto será o eixo entre a Plaza de la Ciudadela e a Plaza de Aldabe e que as obras acontecerão depois da instalação da rede de aquecimento. Os projectos aprovados para estas áreas, com um orçamento de cerca de dois milhões de euros, apostam essencialmente na redistribuição do espaço público para a criação de zonas pedonais e cicláveis e de áreas de estada e lazer e na implementação de medidas para a acalmia de tráfego. Outra das medidas previstas, mas que chegará a todas as ruas do bairro, é a modernização da iluminação pública, com tecnologia LED e um sistema de gestão que permitirá uma maior eficiência.

No campo da mobilidade, a medida mais emblemática do SmartEnCity foi a criação de uma linha inteligente de autocarros eléctricos, “com impacto no arranque de uma nova forma de mobilidade sustentável alinhada com o Plano de Mobilidade” municipal. Para além disso, houve também aposta no uso da bicicleta e na electrificação dos veículos para turistas e frotas municipais.

Lições aprendidas

Em 2021, o SmartEnCity entrou na sua recta final. “A pandemia está a afectar esta fase final, especialmente devido a alguns atrasos nos procedimentos para as licenças municipais e nas reuniões com os proprietários, assim como nas intervenções de obra”, relata Alberto Ortiz de Elgea. À Edifícios e Energia, o coordenador avança que foi acordada, com a Comissão Europeia, a extensão de um ano ao projecto, de modo a conseguirem terminar todas as intervenções até 31 de Julho deste ano e monitorizar os resultados até ao mesmo período de 2022.

Mas o que dizer do trabalho feito até aqui? Num ponto de situação do projecto feito em meados de 2020, já em plena pandemia, o projecto contava com 27 edifícios aderentes, contemplando 312 habitações. Destes, 122 tinham já sido totalmente reabilitados e registavam poupanças energéticas e de emissões de carbono de até 60 %. Inclusivamente, dois dos edifícios renovados fazem agora parte de um outro projecto europeu, BIM-Speed, que se foca na aplicação da tecnologia BIM para projectos de reabilitação energética de edifícios residenciais. Por sua vez, a rede de aquecimento urbana foi também redimensionada para garantir o abastecimento de calor aos edifícios aderentes e está preparada para uma eventual expansão no futuro. Em reflexo do efeito dominó, o projecto conseguiu também que, fora da sua área de intervenção, cinco edifícios, com 64 habitações, estejam a implementar medidas de renovação energética. Outro impacto relevante da iniciativa deu-se ao nível das regulamentações municipais. Em Fevereiro de 2019, o Plan General de Ordenación Urbana da cidade espanhola foi alterado, de forma a facilitar a melhoria energética e a protecção acústica dos edifícios.

Em termos quantitativos, o projecto não conseguiu alcançar os números inicialmente previstos. Todavia, algumas aprendizagens podem ser já retiradas. No desenrolar do projecto, os desafios têm sido vários, mas, segundo a VISESA, as principais barreiras prenderam-se com o envolvimento das pessoas. As características particulares de cada área e comunidade obrigam a adaptações no projecto, o que poderia ser atenuado se tivesse havido participação dos cidadãos na fase conceptual da iniciativa, defende a entidade pública.

No caso de Coronación, tal ficou evidente perante as características demográficas e socioeconómicas do bairro, marcado por uma população envelhecida, com uma elevada percentagem de estrangeiros (21%), uma taxa de desemprego de 22 % e baixos rendimentos de quem trabalha. Dos moradores, 27 % vive em casas arrendadas, sendo a literacia energética e a consciência da importância de obras de reabilitação muito reduzidas, o que se mostrou também como uma barreira à iniciativa. Para além disto, o bairro apresenta ainda uma grande heterogeneidade, quer no que se refere aos edifícios e respectivas necessidades, quer no que se refere às comunidades residentes. Ainda que a experiência possa ser “muito positiva”, a tarefa seria “muito mais fácil e com melhores resultados” se as estruturas dos edifícios e das comunidades fossem semelhantes, admite.

Da mesma forma, os regulamentos locais representaram dificuldades para a implementação do SmartEnCity. Segundo a lei espanhola para a propriedade horizontal, a adesão ao projecto precisava do consentimento de, pelo menos, 60 % dos proprietários de cada um dos edifícios. A tarefa é ainda mais complicada perante a inexistência de associações de proprietários, o que fez da intervenção em cada edifício uma “batalha” com múltiplos interlocutores.

Por último, pesou ainda o desencontro entre os calendários, isto porque a consolidação de um projecto de regeneração urbana é sempre maior do que o tempo de duração de uma iniciativa com a chancela do H2020, revela o responsável. Até agora, o projecto já demonstrou que os agentes “andam a diferentes velocidades”, o que pode prejudicar o envolvimento dos cidadãos, que, muitas vezes, precisam de um exemplo demonstrativo. No plano inicial, esta seria a função dos “pioneiros”, mas os ritmos mais lentos acabaram por prejudicar esse objectivo, sendo, por isso, preferível agir por etapas.