Artigo publicado originalmente na edição de Maio/Junho de 2021 da Edifícios e Energia

A engenharia e os sistemas de AVAC estão no centro de todas as estratégias com vista à mitigação dos contágios e à manutenção da qualidade do ar interior nas unidades de saúde públicas. Conheça o que está em causa, quais os desafios e como estão a reagir os gestores hospitalares às novas exigências.

Os hospitais são edifícios com regras próprias. A prevenção de infecções ou o controlo da contaminação do ambiente interior são aspectos que são levados muito a sério, sobretudo, nas zonas mais críticas. Os vários estudos sobre as mortes causadas por infecções hospitalares apontam para um problema transversal a toda a Europa. Hoje, no contexto da pandemia de Covid-19, tudo é diferente e tudo se agravou, ampliando as fragilidades já existentes e outras que foram surgindo. Tudo vai mudar nas instalações hospitalares nos próximos anos e a engenharia e os sistemas de AVAC estão no centro de todas as estratégias. Esta é uma realidade incontornável para os gestores na área da saúde.

Passado mais de um ano do início da pandemia, a reacção imediata ou o improviso estão a dar origem a uma reflexão mais profunda e a um trabalho exaustivo no sentido de perceber o que é preciso fazer de novo, o que é necessário reabilitar ou corrigir daqui para a frente. Mas, se o trabalho é enorme, o investimento também terá de ser. Segundo conseguimos apurar, os projectos já estão a ser definidos e as estratégias começam a ganhar forma individualmente em cada hospital. No Estado, a autonomia é total e, por isso, cada unidade de saúde pública tem o seu orçamento. O distanciamento entre pessoas, a protecção dos profissionais e doentes, a ventilação e tratamento do ar, a qualidade do ar interior (QAI) ou a configuração de zonas com pressões positivas ou negativas são parte de um puzzle que requer muita capacidade técnica das várias especialidades. Provavelmente, a arquitectura e a engenharia vêem agora um maior reconhecimento, o que é uma boa notícia. É que reconfigurar espaços adaptados a determinadas funções é um trabalho da arquitectura, mas definir instalações técnicas de ar condicionado, de ventilação e cuidar do ambiente interior, seja de uma sala de operações, seja de uma sala de espera, são competências de uma engenharia preparada e responsável.

Para este artigo, falámos com profissionais e gestores na área da saúde e é consensual a urgência sobre estes temas. Em jeito de retrato, importa entender o que está em causa e como estão a reagir os gestores hospitalares às novas exigências e que necessidades e desafios estão em cima da mesa. Já sabemos que a QAI nos hospitais depende dos sistemas de AVAC (aquecimento, ventilação e ar condicionado), os quais estão directamente relacionados com um serviço de manutenção adequado e regular. Sabemos que a manutenção feita nos hospitais é na maioria dos casos insuficiente, limitada à mera substituição de alguns filtros e reparações de urgência e que isso se reflecte na deterioração dos equipamentos, no aumento da contaminação por microorganismos, nas doenças nosocomiais e nas más condições de trabalho para colaboradores e utilizadores. Sabemos que há um caminho a percorrer em matéria de QAI, sobretudo agora. E sabemos que os requisitos e orientações pré-pandemia podem estar já desactualizados em função das novas necessidades. “As recomendações devem ser entendidas como circunstanciais. No entanto, a pandemia deve obrigar o projectista a soluções flexíveis. Porque actualmente estamos perante esta dificuldade, mas, daqui a uns anos, poderá vir outra e vamos ser obrigados a actuar de maneira diferente. É preciso também notar que, hoje, deixar uma instalação sobredimensionada não significa gastar mais energia, pelo que também pode ser uma opção sempre que possível”, explica Olandino Caliço, projectista e presidente do Grupo OMF.

“Há legislação específica suficiente em matéria de QAI”, dizem-nos os especialistas, mas são muitos os factores que requerem um olhar individual para cada caso e as escolhas divergem. Flexibilidade parece ser a palavra de ordem. Flexibilidade quanto ao projecto e quanto às soluções, de forma a ser possível acomodar várias situações. É o exemplo da importância da reversibilidade dos sistemas nas zonas mais críticas e já adoptada por vários hospitais de forma a podermos alternar entre a pressão negativa e a pressão positiva no mesmo espaço. Será esta uma situação ideal? Francisco Brito, director de Serviço de Prestação de Segurança e Controlo Técnico (SCT) do SUCH – Serviço de Utilização Comum dos Hospitais e vice-presidente da ATEHP – Associação de Técnicos de Engenharia Hospitalar, explica que “a actual situação trouxe muitas dúvidas e alguma desorientação em termos de ventilação. Não é adequado pensar que as salas de operação possam funcionar em pressão negativa durante a cirurgia, mesmo quando o doente em causa for Covid positivo. Muitas das orientações no âmbito da presente pandemia tiveram a sua origem em documentação existente, nomeadamente a relacionada com a tuberculose. Também para esta situação, é desejável que as salas de operações estejam em pressão positiva”. Para que isso aconteça, será necessário que os hospitais tenham capacidade, nas suas instalações, para terem, em permanência, salas apenas para um efeito, o que não acontece na maioria das situações.

Já não podemos olhar para a QAI e para os hospitais da mesma maneira e essa é outra certeza que temos. “A situação hoje é completamente diferente da de 2019. Está em causa a capacidade de adaptar as novas instalações de AVAC, nomeadamente a QAI, às situações de pandemia, sejam elas quais forem”. Sucede que, “na actualidade, as regras e recomendações para os projectos de instalações de AVAC para zonas nevrálgicas dos hospitais não prevêm quaisquer indicações e/ou normas para soluções anti-pandémicas”, lembra Olandino Caliço.

Com ou sem orientações ajustadas ao momento actual, o conhecimento já existe e por isso é possível ir tomando as decisões necessárias. “Melhorar a qualidade de construção higiénica dos equipamentos, filtragens competentes, utilização de lâmpadas germicidas (abandonadas durante tantos anos), construção de redes de condutas mais cuidadas, entre outros aspectos, sem deixar de olhar para a optimização e eficiência energética, são pilares fundamentais para a melhoria da qualidade das instalações, do tratamento do ar nos hospitais e nos equipamentos de saúde. No entanto, tudo isto terá de ser seguido na vida útil do edifício por via de uma eficaz manutenção e gestão das instalações. Também por isso, ou principalmente por isso, um bom sistema de gestão técnica centralizada, que tenha uma boa monitorização da QAI, é uma ferramenta fundamental para gerir de forma séria um edifício”, aponta João Madeira, engenheiro especialista de AVAC e CEO da MSE.

A desejada flexibilidade estende-se também aos sistemas onde seja possível alterar, a qualquer momento, as necessidades de ar novo ou dos caudais de ar, bem como a hierarquização das pressões ou a reversibilidade dos sistemas. Outra dificuldade que foi apresentada à nossa revista prende-se com as redes de condutas, que merecem um olhar especial porque o mais natural é não estarem preparadas para aquilo que é necessário. Para além disso, devem ser muitos os casos nos quais não é possível dar um passo em frente sem mudar as soluções e os equipamentos tipicamente envelhecidos ou insuficientes.

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A engenharia e os sistemas de AVAC como aliados

Pensar a saúde é abrir o conhecimento às outras especialidades e, quando falamos em QAI e no ambiente interior, a engenharia é uma delas. Já todos sabemos a importância dos sistemas de AVAC na mitigação das contaminações transmitidas pelo ar. Muito se tem falado e, embora o tema tenha arrancado da pior maneira com orientações difusas e insuficientes, hoje não há dúvidas sobre o que fazer. “Existe como que uma democratização dos conceitos e princípios de ventilação, quer natural quer mecânica. Abriu-se o tema à população em geral e à generalidade das situações, tanto no âmbito de unidades de saúde, como de espaços laborais, de lazer, particulares ou outros”, reclama Francisco Brito.

“Os sistemas de AVAC podem actuar principalmente como protectores dos doentes. Em primeiro lugar, as infecções de origem pulmonar representam cerca de 30 % do total de infecções hospitalares e, portanto, só essas se propagam por via aérea. Os sistemas de AVAC podem ajudar a proteger os doentes mais susceptíveis, como os imunodeprimidos, com o recurso a salas de pressão positiva, ou isolar os doentes contagiosos em salas de pressão negativa. Também as correctas renovações do ar e a boa filtragem ajudam a uma atmosfera mais saudável. No entanto, sabemos que os principais agentes responsáveis pela contaminação hospitalar são os seus utilizadores. O corpo médico, os auxiliares, os utentes e as visitas transmitem facilmente vírus e bactérias multi-resistentes através do contacto com as superfícies hospitalares. Na minha opinião, será muito mais importante educar devidamente estas pessoas”, explica João Madeira. Para Olandino Caliço, os sistemas de AVAC já são há muito tempo um aliado na prevenção de contaminações hospitalares. E, para o efeito, considera imprescindível que o projecto e a instalação sejam adequados e a manutenção periódica correctamente feita.

Público vs. privado

Nos últimos anos, os hospitais públicos começaram a ganhar autonomia quanto à gestão das suas instalações. Com um orçamento próprio, os projectos, a manutenção e tudo aquilo que é necessário podem ser definidos e contratados directamente a empresas exteriores. As equipas técnicas residentes dão apenas resposta a questões de manutenção regulares ao funcionamento diário e o resto é pedido ao mercado. Na base, está uma nova estratégia que já não faz depender as unidades de saúde e a sua gestão de entidades do Estado, criadas, em tempos, para o efeito. As vantagens e desvantagens são reconhecidas.

A par de uma maior autonomia, há uma estratégia diferente para cada unidade de saúde. “Os hospitais têm sofrido com as constantes indefinições e políticas erráticas para a saúde. Não havendo uma linha bem definida, não haverá boa gestão nos hospitais públicos, o que, consequentemente, se reflecte também nas instalações de AVAC. Infelizmente, o que se passa na saúde é o reflexo do país. Não há linhas orientadoras e estruturantes que permitam exigir bons profissionais e, em consequência, deles se obterem bons projectos e instalações de qualidade. A nossa actividade ainda sofre da falta de profissionais de qualidade suficiente”, explica João Madeira.

As exigências entre o público e o privado são diferentes e, porventura, mais apertadas no caso dos privados. O investimento no privado tem vindo a aumentar e o público está a ficar para trás. Ainda assim, as auditorias são comuns e o caminho que se tem feito nos últimos anos é positivo, defendem os especialistas. João Madeira é da opinião de que os investimentos dos últimos anos têm contribuído para a melhoria na construção e, por consequência, do conforto e da QAI dos edifícios. Para este projectista, também há “maus privados” embora considere que isso se verifique fundamentalmente nas unidades de saúde mais pequenas. “A nossa actividade ainda sofre da falta de profissionais de qualidade suficiente também na fiscalização, na gestão da manutenção, na gestão energética, na formação, etc.”. No entanto, hoje, “temos os excelentes profissionais que trabalham na área, bem como uma enorme evolução que se tem registado nos equipamentos e materiais. É hoje muito mais fácil realizar projectos com qualidade e que permitam ser evolutivos e adaptáveis aos edifícios”, conclui, e essa é uma vantagem que podemos explorar quando tentamos equilibrar as necessidades de conforto e salubridade com a eficiência energética, sobretudo nos hospitais. Para Olandino Caliço, “a manutenção dos hospitais particulares é mais eficiente do que a manutenção nos hospitais públicos, já que tem mais meios financeiros e, por conseguinte, mais meios humanos, melhor organização, menos desperdício e menos burocracia”.

30 % é quanto, segundo o projectista João Madeira, representam as infecções de origem pulmonar do total das infecções hospitalares e que se propagam por via aérea.

Dualidade na legislação?

A legislação existe, mas a necessidade de actualização das recomendações em vigor é consensual. Embora sem carácter vinculativo, as linhas de orientação para o projecto de novas instalações em unidades de saúde da autoria da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) remontam a 2008. Sem força de Lei e desactualizadas, estas especificações técnicas já não servem, denunciam os gestores hospitalares. É que, embora tenham tido uma revisão insuficiente em 2014, é nestas recomendações que as entidades licenciadoras se estão a basear. Francisco Brito lembra que existe um conjunto de Portarias, com força de Lei, aplicáveis unicamente a unidades de saúde privadas, com requisitos, por vezes, distintos dos definidos nestas especificações técnicas da ACSS e, para este técnico, “esta dualidade é incompreensível”.

Embora considere a legislação suficiente para o sector, Olandino Caliço defende que “faz sentido adaptar uma estratégia para a QAI nos hospitais”. Por outro lado, refere ainda que existem muitas especificações para os projectos de AVAC. E, como tal, nem todos os projectos e instalações de AVAC em hospitais são os melhores. “Mas não é por falta de recomendações e normas que os projectos não são bem feitos e as instalações não são as melhores”.

Para João Madeira, a legislação deve servir para delimitar e não limitar. Este projectista defende que deve existir legislação para definir quem pode executar serviços na área do AVAC (projecto, instalação, manutenção ou gestão). “Já existe alguma legislação nesta matéria, mas penso que devia ser mais exigente e muitas vezes não é aplicada (mas esse é outro problema). É fundamental existir a responsabilização do projectista, mas esta deverá ser acompanhada por honorários em consonância. Tem sido essa uma dificuldade? E, neste momento, faz sentido mudar de estratégia, quando não há estratégia? Penso que as entidades licenciadoras devem ser enriquecidas em matéria humana competente e desenvolverem documentação capaz e actualizada que dê ao projectista as directrizes (guidelines) necessárias”.

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