Artigo publicado originalmente na edição de Novembro/Dezembro de 2020 da Edifícios e Energia
Entre a combinação de tecnologias que já existiam e o desenvolvimento de novas soluções, a indústria está debaixo de pressão para encontrar respostas capazes de travar a ameaça da Covid-19. Quando se trata de manter as pessoas seguras e saudáveis dentro dos edifícios, o AVAC é um aliado fundamental, mas muito pouco reconhecido. Este pode ser o momento “certo” para mudar esta realidade: face à crise de saúde pública que vivemos, está na hora de a engenharia e o AVAC se fazerem ouvir pelo seu conhecimento científico e técnico.
Em pouco menos de um ano, o novo coronavírus virou as nossas vidas de cabeça para baixo. Minimizar o risco de contágio é o principal mantra dos nossos dias, que repetimos através de novas práticas, novos comportamentos, novos adereços. Queremos estar seguros nas ruas, mas, acima de tudo, queremos estar seguros dentro dos edifícios – nas nossas casas, escritórios, supermercados, lojas, restaurantes, salas de espectáculos, hospitais, etc.
A segurança sanitária e a saúde estão no topo das preocupações, mas garantir estas condições no interior dos edifícios é hoje diferente daquilo que acontecia há um ano. Contra o vírus, a ventilação e a renovação do ar (ar novo) necessárias têm requisitos mais exigentes, controla-se a humidade e temperatura, pondera-se a utilização de sistemas com maior capacidade de filtragem e de luz ultravioleta na tentativa de inactivar o vírus. Desde o início da pandemia, os agentes da indústria do AVAC, de fabricantes a projectistas, têm buscado novas formas de nos manter a salvo do vírus. As marcas garantem que muita da tecnologia necessária já existe, agora, é preciso combiná-la numa forma adequada ao contexto e saber aproveitar as potencialidades que as novas tecnologias digitais trazem na monitorização e controlo inteligente do ambiente interior.
No mercado, o impacto da pandemia sentiu-se na queda abrupta das vendas e suspensão de investimentos, mas, em contrapartida, abriu portas em novos segmentos. A indústria soube adaptar e criar soluções que respondiam às novas necessidades e tirou partido de áreas que cresceram com esta crise, conseguindo, assim, uma bolsa de oxigénio.
A pandemia trouxe ao de cima prioridades que, nestes anos, se encontravam ofuscadas pela urgência da eficiência energética. A partir de agora, saúde e engenharia têm de andar de mãos dadas. Por isso, espera-se que estas mudanças se possam reflectir na legislação, quer europeia, quer nacional. No caso português, este pode ser um incentivo para resolver um problema estrutural, que não se prende tanto com a inexistência das regras, mas sim com a sua (falta de) execução, dizem as empresas. Consequências? A despreocupação com a QAI ou com as manutenções dos sistemas deixou-nos menos preparados para enfrentar este vírus.
Tal como muitos outros sectores, o AVAC está num processo de adaptação forçada e debaixo de escrutínio. Num tema que toca a todos, não são apenas os profissionais do AVAC que levantam a discussão sobre a QAI, são também os utilizadores, que passaram a olhar à sua volta para perceber se o sistema de ventilação está mesmo a funcionar. A situação é séria, mas o sector garante estar ciente do seu papel: “o fornecimento de ar interior limpo e saudável é a raison d’être da nossa indústria”, reforçam os especialistas da associação industrial europeia Eurovent e do gabinete de estatísticas do sector, Eurovent Market Intelligence (EMI). O sentimento é partilhado pelas empresas portuguesas com quem falámos – mais do que uma oportunidade de negócio, este é o momento de o AVAC e a engenharia cumprirem um dever público e se afirmarem como indispensáveis pelo seu conhecimento científico e técnico.
Lidar com o desconhecido
Os primeiros momentos da pandemia foram marcados por um elevado desconhecimento e incerteza relativamente ao comportamento do vírus e à forma de contágio. Hoje, já sabemos que a transmissão directa acontece principalmente por contacto com superfícies contaminadas, pelas gotas expelidas por pessoas infectadas e também por aerossóis em suspensão. Outras questões, como a forma de disseminação destas partículas e o contexto e grau de contágio, continuam sob investigação, todavia, o conhecimento apurado até aqui permite já ao sector do AVAC desenvolver algumas estratégias de desenho e projecto dos sistemas.
Pedro Silva, da fabricante portuguesa de condutas e unidades de tratamento de ar (UTA) Sandometal, aponta, de forma resumida, cinco a considerar neste novo cenário: “renovação do ar dos espaços através do ar novo, existência de sistemas de controlo de pressão negativa, utilização de sistemas de luz ultravioleta para inactivar o vírus, utilização de sistemas de filtragem adequados, e controlo de temperatura e humidade”. Ao desenvolver o projecto, é preciso não esquecer de que “todas os sistemas e soluções propostas estão interligados e interagem de forma directa, podendo provocar em determinadas situações reacções opostas em relação às pretendidas”, lembra o especialista. Por fim, mas não menos importante: “É absolutamente fundamental, cada vez mais, analisar todo o sistema de AVAC (condutas, UTA, elementos de difusão, filtragem, etc.) como um sistema integrado que deve ser referenciado e projectado por especialistas na área, integrando e juntando projectistas, fabricantes, investigadores e utilizadores”.
Mais energia e mais investimento para contrariar pandemia
Estes novos elementos levam-nos a outras preocupações que devem ser tidas em conta nos projectos de AVAC: os consumos e os custos. Paulo Feyo, da Arfit, recorda que, nos projectos de AVAC, deve-se ter em conta, não só o tipo de equipamentos e de instalação, como se deve perspectivar o custo de exploração do edifício. “Com a crise sanitária, mais e novos equipamentos são utilizados para garantir a qualidade do ar. Muitos deles levam a maiores consumos energéticos, pelo que a restante instalação deverá tentar compensar com sistemas energeticamente optimizados”, diz o responsável e exemplifica: “estamos a falar de ventiladores ou recuperadores de alta eficiência, assim como sistemas bombagem de caudal variável e controlo programado adequadamente”.
O sector antecipa que responder às exigências da pandemia vai, inevitavelmente, representar um aumento no uso de energia. “Sistemas de filtragem mais eficientes obrigam a equipamentos de ventilação mais potentes e, por consequência, com maior consumo de energia, baixando a eficiência energética das instalações”, alerta Paulo Bessa, da SGT Midea. E este não é o único aumento antecipado: “Temos conhecimento de que se prepara nova legislação que vai melhorar significativamente os sistemas de filtragem no sentido de se terem ambientes cada vez mais limpos de organismos que provocam doenças, mas essas alterações vão conduzir a um incremento nos custos de instalação e manutenção dos sistemas AVAC”.
Este vírus é um adversário complexo e, face às “enormes exigências agora impostas”, resolver este problema “pode, em certos casos, provocar um downgrade da eficiência energética do sistema AVAC na sua globalidade”, alerta Pedro Silva. Contrariar esta tendência pode passar por “apostar na capacidade de controlar e monitorizar de forma mais efectiva e mais inteligente este tipo de sistemas”, pelo que o especialista da Sandometal defende o desenvolvimento de “sistemas de detecção e monitorização que possam ser utilizados em modernos algoritmos de controlo que protejam o utilizador final e, quando possível, permitam atingir os níveis de eficiência pretendidos. São essenciais sistemas adaptativos que consigam reagir a diferentes situações e exigências de todo o sistema de AVAC”.
Apesar da crescente preocupação com a QAI, para a Eurovent/EMI, tal ainda não se traduziu em mudanças significativas na procura do mercado europeu. “Será necessário tempo para desenvolver e implementar novos requisitos para a QAI, pelo que o efeito no mercado vai ser adiado”. Podemos, então, esperar que este novo foco na QAI traga repercussões ao nível da regulamentação europeia? “Devia”, defendem os analistas, que têm encetado esforços para levar uma mensagem clara aos decisores políticos europeus: “colocar a saúde e bem-estar das pessoas no centro das preocupações do ambiente construído na Europa”. “O nosso argumento é que as poupanças energéticas não são o único ponto chave, mas que os aspectos relacionados com a qualidade do ambiente interior são, no mínimo, tão importantes. Isto deveria ser mais bem reflectido na EPBD [Directiva para o Desempenho Energético dos Edifícios], nas medidas para o ecodesign, nas regras da contratação pública ecológica e em todos os restantes instrumentos políticos relevantes”, reiteram.
Desenvolvimento tecnológico
Sendo o momento de mudança, podemos esperar grandes alterações tecnológicas no sector? Para a Eurovent/EMI, o cenário é incerto, sendo expectável que haja uma maior atenção à questão da QAI, à semelhança do que acontecia até aqui com a eficiência energética. No entanto, não há qualquer conflito aqui, dizem, já que a “indústria continua comprometida com a eficiência energética e a circularidade”, o que pode, em última instância, ser assegurado pelas “exigências europeias apertadas para os equipamentos de AVAC”. Ainda assim, o responsável da Arfit, Paulo Feyo, lança o desafio aos fabricantes: “desenvolvam produtos que aliem a filtragem, a eficiência energética, a recuperação de energia, garantindo a estanquidade total dos fluxos”.
Na visão de Pedro Silva, “estamos na presença de uma nova era nos sistemas de AVAC, que vai introduzir novas filosofias, novas metodologias de trabalho e novos objectivos, podendo perspectivar-se um crescimento tecnológico na área que não era expectável”. Para além da Sandometal, outra fabricante portuguesa está também a apostar em investigação e desenvolvimento para responder ao momento. A Ocram tem marcado a sua posição com uma solução patenteada de purificação do ar e através da participação em projectos europeus. “Sendo este um cenário novo, continuamos a investir recursos financeiros e humanos para que a tecnologia resolva os problemas reais com maior eficiência, desenvolvendo produtos com valor na actual conjuntura e no futuro”, afirma a empresa de Braga.
Em matéria de evolução tecnológica, as opiniões dividem-se, mas, independentemente do que a pandemia trouxer à indústria, há, pelo menos, o consenso de que este é um momento crucial para o AVAC se afirmar. “O sector deve reorganizar-se de forma orgânica provocando uma consciencialização no conhecimento técnico nestas matérias que será muito importante para o futuro”, recomenda a Sandometal. Neste cenário, considera Jorge Carvalho, da Eurofred, há uma oportunidade que se impõe ao projectista de AVAC: “ter uma palavra a dizer neste processo em que a saúde pública nunca esteve tão melindrada”. Para isso, o gestor apela à união das associações do sector, de forma a posicionar o AVAC como um “sector forte, competente e fundamental nesta e em todas as áreas em que a engenharia não pode ter um papel secundário”.
Desde o início da pandemia, os agentes da indústria do AVAC, de fabricantes a projectistas, têm buscado novas formas de nos manter a salvo do vírus. As marcas garantem que muita da tecnologia necessária já existe, agora, é preciso combiná-la de uma forma adequada ao contexto e tirar partido das novas ferramentas digitais.
Realidades pré-existentes que se tornam problemas
Entre o desenho e a execução do projecto, não há como fugir à realidade, e se os problemas já existiam antes, com a pandemia, tornaram-se evidentes. Mas é possível olhá-los numa outra perspectiva. Para Jorge Carvalho, as oportunidades estão em resolver problemas que o sector enfrentava já antes e que se prendem com a falta de informação correcta disponibilizada ao utilizador final e “a falta de seriedade” com que a QAI tem sido, até aqui, encarada. Apesar de Portugal ter uma legislação que prevê a QAI, a pandemia trouxe uma nova perspectiva. “Desta vez, o assunto torna-se mais sério, pois é uma questão de saúde e que causa mortes”, refere Jorge Carvalho, “o medo e a obrigatoriedade ‘policiada’, mais uma vez, criam a necessidade de adquirir sistemas que consigam garantir a QAI em todas as suas vertentes, químicas e biológicas”.
Também para Vasco Horta Correia, da Mitsubishi Electric, uma realidade pré-existente acabou por revelar-se uma dificuldade nesta pandemia: “o vasto parque de edifícios que ainda têm instalados sistemas de AVAC obsoletos, nocivos para a saúde, que consomem demasiada energia e com elevadas emissões poluentes”. A situação é tão significativa que levou a marca a desenvolver uma solução para a substituição destes sistemas.
Do mesmo modo, “a falta de manutenção dos equipamentos ou a sua má execução cria problemas de saúde nos ocupantes”, refere o gestor da Eurofred, mas não é o único a apontar a manutenção periódica e preventiva como algo crucial para assegurar o bom funcionamento dos equipamentos, em particular aqueles que têm de operar em modo contínuo. Tanto no que se refere à QAI, como à manutenção, as regras existem em Portugal, o problema é que, segundo o sector, tem pouco efeito no terreno e não existe fiscalização que o controle. Para Paulo Bessa, a legislação é “suficientemente clara e abrangente”, mas com algumas falhas – “achamos que não devia isentar do cumprimento das obrigações os edifícios públicos e outros, especialmente os ligados à saúde, que são o pior exemplo em termos de QAI. Verifica-se também que a legislação dá primazia à eficiência em detrimento da viabilidade económica, destacando nós, como exemplo, a obrigação do uso de recuperadores de calor em vez de sistemas com 100 % de ar novo, muito mais efectivos em termos de qualidade do ar”.
A par da falta de manutenção, o problema pode colocar-se também na escolha de equipamentos pouco adequados, avisa Carlos Ribeiro, da Vaillant. Tal pode dever-se à falta de informação do utilizador, que fica demasiado preocupado em eleger a solução mais eficiente e que acaba por fazer uma escolha errada. “Os edifícios novos e reabilitados têm necessidades completamente distintas” e, na situação sanitária actual, controlar parâmetros, como humidade e temperatura, e assegurar a correcta renovação do ar são mais importantes do que nunca. “É fundamental que o proprietário recorra a entidades especializadas, que possam primeiramente auditar o edifício, ou habitação, identificando patologias e propondo soluções que se adequam às necessidades, sejam elas a qualidade do ar, sejam elas relacionadas com a manutenção da temperatura e níveis de humidade”.
Podemos, então, esperar que este novo foco na QAI traga repercussões ao nível da regulamentação europeia? “Devia”, defendem os analistas, que têm encetado esforços para levar uma mensagem clara aos decisores políticos europeus: “colocar a saúde e bem-estar das pessoas no centro das preocupações do ambiente construído na Europa”.
Soluções no mercado
Quando questionados sobre se a indústria de AVAC está pronta para disponibilizar produtos que respondam às condições de saúde necessárias dentro dos edifícios, a Eurovent e a EMI são peremptórias: “Sim, o fornecimento de ar interior limpo e saudável é a raison d’être da nossa indústria”. Assim sendo, os analistas não esperam que haja uma “mudança drástica” nos produtos no mercado, mas sim um acréscimo de acessórios para melhorar a qualidade do ar, tais como componentes de radiação ultravioletas para combater germes, opções melhoradas de controlo da QAI, filtros com classes superiores, etc. “Nenhuma destas tecnologias é nova e muitas delas podem ser adicionadas aos equipamentos existentes com relativa facilidade”.
“Os sistemas de AVAC estão, de facto, sob pressão”, confirma a Sandometal, cujo trabalho não tem parado nestes meses. Apesar do “ajuste quase imediato do mercado” para oferecer soluções, Pedro Silva está convencido de que “as soluções agora preconizadas, ainda que correctas para o momento, têm sido provisórias”. Para este especialista, daqui para a frente deverá haver um esforço no sentido de garantir que é possível obter instalações onde a presença de ar novo é constante e onde os mecanismos de filtragem são eficientes e suficientes para os problemas que se colocam. “A utilização de sistemas de purificação de ar por filtragem ou por luz ultravioleta podem ser sempre soluções possíveis e, nalguns casos, até passíveis de ser adaptáveis em sistemas de AVAC existentes, contribuindo desta forma em instalações já existentes para a atenuação do contágio em espaços fechados”.
Estas tendências podem ser vistas nas novas ofertas no mercado. A Midea apresentou novos sistemas de filtragem para unidades de ligação a condutas que contêm filtros Hepa e lâmpadas ultravioleta que, segundo a marca, “permitem eliminar vírus e bactérias existentes no ar”. Por sua vez, para a LG Portugal, reforçar a eficiência dos seus equipamentos como prioridade foi também a forma de responder à necessidade de instalações em funcionamento permanente. Mas há mais: agora que “a QAI e a purificação de ar estão no top of mind das administrações de edifícios”, o responsável da LG Portugal, Vítor Ferreira, diz que a marca sul-coreana “soube antecipar” com o lançamento de novos equipamentos com sistemas de purificação do ar e a aposta em produtos “altamente personalizados” que respondem a estas questões. “Só com soluções totalmente adaptadas às necessidades dos edifícios, é que conseguimos oferecer aos nossos clientes, especialmente da área B2B, o sistema AVAC que efectivamente vai responder às suas necessidades, com uma dimensão adequada, seguida de uma correcta instalação e um plano de manutenção alinhado com as especificidades dos equipamentos e do edifício”, avança.
Os sistemas de filtragem não são “nenhuma novidade nos equipamentos de ar condicionado da Mitsubishi Electric”, garante Horta Correia. No entanto, este gestor revela que, nos laboratórios da marca no Japão, duas novas soluções com capacidade de filtragem de vários tipos de coronavírus, incluindo o Sars-CoV-2, estão já em fase de testes.