Sempre tivemos vírus e bactérias e “sabemos como lidar com eles no ambiente interior” – a afirmação é de Manuela Cano, responsável do Laboratório de Qualidade do Ar do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge – INSA. A especialista lembra que, nos espaços interiores, as pessoas estão entre as principais fontes de contaminação e defende que, quando se fala em qualidade do ar interior (QAI), é preciso ter em conta diversos factores, entre os quais o conforto térmico dos ocupantes. “Já temos o conhecimento”, diz, falta agora “a integração das especialidades, confiar na engenharia, promover a multidisciplinariedade e simplificar procedimento quando falamos em auditorias”, sendo que “devia dar-se mais importância às avaliações exploratórias”.
Neste momento, temos a QAI de novo em cima da mesa. Como estamos nessa matéria?
Temos, de facto, as atenções viradas de novo para a QAI, e estamos muito melhor hoje do que estávamos há alguns anos, nomeadamente antes de 2006, altura do aparecimento do Sistema de Certificação Energética e Qualidade do Ar Interior (SCE).
Que, desde 2013, está mais pobre, com a saída das auditorias obrigatórias à QAI.
Sim, já não é a mesma coisa. No entanto, o Instituto Ricardo Jorge raramente era contratado para a realização das referidas auditorias, pelo facto de utilizar metodologias que envolvem procedimentos de amostragem mais longos, seguidos de determinações laboratoriais bastante mais onerosas do que a utilização de aparelhos de leitura directa, usados, em regra, pelos peritos qualificados. Aliás, a maioria dos pedidos que nos chegam surge na sequência de queixas dos ocupantes dos edifícios.
A nossa preocupação está em observar, identificar possíveis fontes de contaminação do ar por agentes químicos ou microbiológicos, medir esses agentes, comparar com valores de referência e sugerir a adopção de medidas de prevenção e controlo da exposição. Quando falamos de agentes químicos, não nos cingimos apenas aos referidos na legislação da QAI, mas a qualquer outro agente para o qual existam potenciais fontes de contaminação do ar. No seguimento da nossa avaliação, fazemos um relatório com as conclusões e recomendações, que nem sempre passam pela ventilação e podem simplesmente tratar-se de boas práticas na utilização dos espaços e da sua manutenção e limpeza. Há outros aspectos muito importantes a considerar relacionados com o conforto térmico dos ocupantes, difícil de atingir em espaços de grandes dimensões, muito ocupados e com fachadas em vidro devido às elevadas cargas térmicas. Ora, as grandes variações de temperatura podem estar na origem de constipações ou outros problemas respiratórios que deixam as pessoas mais vulneráveis a infecções. No entanto, consideramos que as auditorias são importantes.

Quais são as fontes de contaminação que existem?
As principais fontes de contaminação do ar são os ocupantes, quer através dos bioefluentes e produtos de higiene e cosmética, quer através das suas actividades, o edifício – designadamente os materiais de construção/decoração – e o ar insuflado nos espaços, que dependerá do ar exterior e das actividades de manutenção dos sistemas de ventilação. O dióxido de carbono é um excelente indicador do grau de viciação do ar em espaços ocupados sem outras fontes de contaminação que não os ocupantes. Sempre que a ventilação é insuficiente, verifica-se, igualmente, um aumento na concentração de bactérias que têm, na sua maioria, origem nos ocupantes.
Quando diz que os edifícios estão melhores em matéria da QAI, está a referir-se aos edifícios grandes e com sistemas mecânicos?
Exactamente. Esses, quando bem mantidos e em perfeita operação, com caudais de ar novo ajustados às necessidades, promovem um melhor ambiente interior. No entanto, é preciso não esquecer de que há sempre pessoas insatisfeitas na maioria dos espaços. Aliás, de acordo com várias normas, pode considerar-se um ambiente aceitável quando a percentagem de insatisfeitos é de até 20 %.
Os pedidos que chegam ao INSA mantiveram-se depois de 2013, data em que terminaram as auditorias obrigatórias?
Houve uma altura em que sentimos uma ligeira redução, mas temos tido sempre bastantes pedidos. Mesmo nessa altura, nunca estivemos parados.
O que é que um vírus como o que provoca a Covid-19 vem trazer de novo quando pensamos na QAI?
Não vem trazer nada de novo. Sempre tivemos vírus, veja o da gripe, por exemplo, e sabemos como lidar com eles no ambiente interior. No caso destas infecções respiratórias transmitidas pessoa a pessoa, através de secreções orais e nasais, estão bem identificadas as fontes de contaminação – as pessoas e seus bioefluentes –, logo, se existirem pessoas contaminadas poderá haver transmissão da doença. As medidas de prevenção a adoptar passam pela remoção da fonte de contaminação do ar, se possível, por evitar a contaminação do ar e superfícies com as referidas secreções, através da utilização de máscaras cirúrgicas, da descontaminação das mãos e superfícies, contudo, a ventilação terá um papel fundamental na remoção dos agentes patogénicos em suspensão do ar, seja através da extracção do ar contaminado, seja através da sua diluição com caudais de ar novo adequados e evitando a recirculação do ar. O dióxido de carbono e as bactérias com origem nos seres humanos serão bons indicadores de viciação do ar e, consequentemente, darão informação sobre um maior ou menor risco de infecção, caso haja pessoas infectadas no interior.
Sabemos que este vírus tem uma carga viral muito grande.
Sim e esse é um factor de contágio importante. Repare que os potenciais hospedeiros não são todos iguais e temos pessoas muito mais vulneráveis do que outras. Nos hospitais, estes cuidados ao nível da ventilação já existem há muito tempo nas unidades para doenças infecto-contagiosas e noutras, como é o caso dos blocos operatórios. A engenharia sabe construir ambientes com as especificidades aplicáveis a cada caso, podendo apenas haver necessidade de alguns ajustes em resultado de estudos mais recentes.
Mas este assunto está a ser tratado fora da engenharia e o pedido de contributos às especialidades fora da saúde tem tardado.
Mas não devia e, no caso dos hospitais, é muito fácil de entender porquê. Quando o INSA faz avaliações num hospital, tem de envolver sempre uma equipa multidisciplinar. Temos de ter a segurança e saúde no trabalho envolvida porque temos de proteger o pessoal de saúde. Temos de ter as comissões de controlo de infecção e, naturalmente, os serviços de instalações e equipamentos, que incluem os engenheiros responsáveis pelos sistemas de climatização e ventilação. Quando não trabalhamos todos em conjunto, as coisas normalmente não correm bem e nem sempre as recomendações que fazemos saem do papel. É importante que a Ordem dos Engenheiros esteja envolvida em processos que definam linhas de orientações quando se trata da qualidade do ambiente interior. No INSA, caracterizamos o ambiente em termos de contaminantes, procuramos identificar as fontes e sugerir as estratégias a desenvolver, mas, depois, a concretização deixa de ser connosco. Veja-se o caso de uma pessoa internada com um vírus como o SARS-CoV-2. Terá de garantir-se que o ar contaminado não saia daquele quarto, definir os caudais de ar, onde deve ser feita a insuflação/extracção num percurso previamente definido, etc. Há muita coisa dependente de outras especialidades.
Se recuperássemos o que já tínhamos podíamos atacar este problema?
Sim, mas apenas em parte. A saúde também tem de estar envolvida e, em 2006, não estava. Temos de ter a consciência de que fazemos muito pouco se não tivermos também o contributo do lado da saúde. Quando falamos em QAI num hospital, temos ambientes tão diversos como as salas de operações, limpas e com estratégias próprias de ventilação para proteção dos técnicos e do doente. Temos outros espaços onde há manipulação de agentes químicos que podem contaminar o ar e locais onde, por exemplo se torna necessário proteger os doentes do espaço hospitalar, como é o caso dos quartos protegidos destinados a doentes com neutropenia. Há uma multiplicidade de casos e cada espaço deve ser tratado de uma forma única. Não podemos uniformizar modelos de actuação quando queremos uma boa QAI.
“Não é com uma colheita de 15 minutos que vamos identificar os problemas, as fontes de contaminação ou desenvolver qualquer estratégia. Isso é um erro e uma perda de tempo. Precisamos de uma estratégia diferente para não colocar em risco as pessoas. Acho que, em 2006, demos um passo maior do que as pernas. As exigências eram demasiadas.”
Há muita coisa que podemos melhorar para além daquilo que hoje fazemos?
Precisamos de mais integração de especialidades. E este é o ponto mais importante. Por sua vez, do lado das avaliações, podia ser dada mais importância a avaliações exploratórias nas quais se determinasse o dióxido de carbono, as partículas, os compostos orgânicos voláteis (COVs), por exemplo, e, se as coisas não estivessem bem, tinha de se realizar um estudo mais profundo utilizando metodologias com maior sensibilidade e exactidão. Quando obtemos um valor elevado de COVs, a portaria exige a identificação de uma série de agentes que, na grande maioria dos casos, não é expectável que esteja presente. Temos apenas de identificar/medir o que é expectável que exista para, numa situação ideal, eliminar ou isolar a fonte de contaminação.
E como se faz isso?
Para além das medições, é preciso ir aos espaços, falar com as pessoas, perceber como é que o espaço é utilizado pelos ocupantes. Imagine que nas limpezas estão a ser utilizados detergentes em concentrações que podem ser nocivas. A contaminação também tem a ver com uma má utilização dos equipamentos. Não é com uma colheita de 15 minutos que vamos identificar os problemas, as fontes de contaminação ou desenvolver qualquer estratégia. Isso é um erro e uma perda de tempo. Precisamos de uma estratégia diferente para não colocar em risco as pessoas. Acho que, em 2006, demos um passo maior do que as pernas. As exigências eram demasiadas.
E agora temos de recuar um bocadinho?
Temos de recuar um bocadinho porque mais vale começar por fazer uma avaliação exploratória do que partir logo para a detecção de agentes que, na maioria das vezes, não são indicativos de coisa nenhuma.
Estamos mais protegidos nas unidades de saúde do que na maioria dos outros edifícios?
Não necessariamente. Temos edifícios muito bem dimensionados e a operar em boas condições, mas tem de haver formação em qualquer dos casos. Nos hospitais, cada doente é uma fonte potencial de contaminação do ambiente, mas, na maioria das vezes, são as más práticas dos profissionais de saúde que estão na origem das infecções. Quem nunca viu um médico de estetoscópio ao peito a almoçar no bar ou no refeitório? E por isso há que ter os cuidados necessários após o contacto com pessoas infectadas, tais como higienizar as mãos, a troca de vestuário, a descontaminação do equipamento médico, o descarte do equipamento de protecção, etc.
Estamos a falar de comportamentos?
É fundamental olhar para os comportamentos. É preciso que as pessoas conheçam as formas como as doenças podem ser transmitidas e o que se deve fazer para o evitar. Na sequência da pandemia de Gripe A, em 2009, foram reforçadas as boas práticas, como lavagem e desinfecção das mãos, entre outros, e, em consequência, verificou-se a redução das infecções hospitalares.
O INSA fez um estudo sobre os lares e os alertas já existiam.
Em conjunto com engenheiros e profissionais de saúde, fizemos um levantamento sobre estes espaços e o impacto que a QAI poderia ter na saúde destes ocupantes. Relativamente à QAI, houve resultados surpreendentes. No Inverno, apenas 20 % dos locais apresentaram níveis de dióxido de carbono acima dos valores de referência, indicando uma insuficiente renovação do ar. Os COVs foram muito baixos na generalidade e o formaldeído foi excedido em 10 % dos espaços, apesar da utilização de desinfectantes que podem conter este agente. Relativamente à contaminação do ar por bactérias, verifica-se que mais de 35 % dos espaços excedem o valor de referência indicando sobreocupação e/ou deficiente renovação do ar. A ventilação podia ter melhorado significativamente a QAI, contudo, na maioria dos casos, os edifícios dispunham apenas de ventilação natural, fazendo-se o arejamento através da abertura de janelas. Relativamente ao conforto térmico, verificou-se que 46 % dos espaços estudados são desconfortáveis no Inverno e 30 % no Verão.
Nos edifícios de serviços com sistemas a funcionar, aumentar a quantidade de ar novo ajuda?
A introdução de ar novo é fundamental, mas muitas vezes não é o único factor a ter em conta. Podemos ter equipamentos vários que constituem fontes de contaminação do ar por partículas (impressoras, fotocopiadoras, etc.). Estas situações podem ser evitadas se esses equipamentos forem colocados em compartimentos com extracção do ar localizada, por exemplo. Precisamos de ter em conta todos os equipamentos que são utilizados nos edifícios e perceber o impacto que podem ter no ambiente. A extracção do ar contaminado junto às fontes de contaminação é uma prática comum e adequada em muitas circunstâncias. Mas claro que quanto mais ar novo tivermos, melhor.
A portaria da Direcção Geral da Saúde sobre a QAI está para sair em breve. O que lhe parece na sua globalidade e que alertas deixa?
A portaria que nos chegou para dar parecer tinha muito poucas alterações relativamente à anterior, embora já fossem referidas avaliações periódicas obrigatórias com prazos de oito anos para grandes edifícios de serviços (GES) e de quatro anos para GES que abranjam lares e creches. Qualquer dos prazos nos parece excessivo, dado poderem estar na origem de problemas de saúde graves, caso haja ultrapassagens dos valores de referência durante um período tão longo, capaz de transformar sintomas agudos e reversíveis em problemas de saúde crónicos. Mantinham-se, apesar de injustificável, as medições médias de oito horas, a especiação dos COVs listados na anterior portaria e, mais uma vez, não se prevê a avaliação do conforto térmico. Matérias sensíveis como a QAI deveriam ser alvo de discussão alargada por forma a conseguir consensos que traduzam os conhecimentos adquiridos ao longo de muitos anos de experiência. Todas estas questões exigem muito trabalho e muito tempo de ponderação.
Ainda vamos a tempo de ter um bom diploma para a QAI?
Nós esperamos que sim.
Continua a existir a confusão de que o ar condicionado ajuda à propagação de vírus e bactérias no ar.
A propagação tem sempre origem nas pessoas, mas não me parece que essa confusão continue a existir neste momento. Os gestores dos edifícios querem garantir que não há o vírus da Covid-19 no ar e apenas isso. Estou convencida de que essa mensagem já está a ser ultrapassada. Não nos podemos esquecer de que sempre existiram vírus transmitidos pelo ar. Sempre existiu a tuberculose! Sempre tivemos hospitais preparados para tratar estes doentes e edifícios com preocupações quanto às questões da transmissão de doenças infecciosas. Nada disto é novo. O novo coronavírus pode transmitir-se mais, mas a estratégia tem de ser a mesma que foi aplicada à prevenção de todas as outras doenças, com os ajustes necessários. Claro que a carga viral é maior do que nos casos anteriores, as pessoas podem ser portadoras sem o saberem e há um conjunto de agravantes, mas já todos sabemos como nos devemos proteger individualmente e nos edifícios também.
Falando agora de aspectos mais técnicos, os vírus têm o mesmo comportamento que as bactérias quando falamos em aerossóis? Ou seja, as bactérias não se desenvolvem e propagam pelo ar e pelas gotículas mais facilmente?
As bactérias podem multiplicar-se no ambiente desde que tenham as condições ideais, de temperatura e disponibilidade de nutrientes, como é o caso da Legionella. Neste caso, a fonte de contaminação é ambiental dado que a Legionella não se transmite de pessoa para pessoa. No caso dos vírus, os mesmos só se multiplicam dentro das células do hospedeiro.
Mas há diferença em termos de contaminação?
A grande diferença é que o vírus é um parasita que só se multiplica dentro de outras células. Quando o vírus infecta as nossas células, passa a utilizá-las para produzir ar cópias de si próprio. E, nessa altura, espalha-se. Sucede que essas partículas virais só conseguem sobreviver durante algum tempo. Se estiverem numa superfície e essa superfície for desinfectada, as partículas ficam inactivas. Ou seja, o vírus não se multiplica se não tiver um hospedeiro ao contrário das bactérias que podem existir em reservatórios ambientais.
Essa diferença poderia reduzir o tempo de contágio ou propagação pelo ar se comparado com uma bactéria ou é uma visão simplista?
Em teoria sim, mas depende da carga que existe. O último coronavírus tinha uma carga viral muito inferior e por isso a propagação não foi tão acentuada. O maior risco está na propagação entre pessoas por via dos aerossóis. Se os aerossóis são pesados, a força da gravidade reduz a sua permanência no ar e, em três ou quatro segundos, podem chegar ao chão. Mas, se forem leves, é diferente e podem permanecer no ar mais de 20 dias, mas, para isso, é preciso que não haja qualquer fluxo de ar. É aqui que a ventilação é fundamental.
Os 20 dias é um cenário praticamente impossível na medida em que existe sempre fluxo do ar em qualquer espaço pelas diferenças de temperatura, etc.
Exactamente e apenas vão permanecer no ar se não existir deslocação das massas de ar. Criar estratégias de ventilação e fluxos do ar é uma estratégia obrigatória para manter a QAI.
Orientar o fluxo do ar é fundamental?
Claro! Temos de saber muito bem como orientar o fluxo do ar. Não basta que ele exista. Veja-se no caso dos blocos operatórios que têm locais específicos para a insuflação e extracção do ar de forma a garantir que o ar contaminado não circule perto das vias respiratórias dos profissionais de saúde, protegendo-os.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 132 da Edifícios e Energia (Novembro/Dezembro 2020).