Eduardo Maldonado, actualmente presidente da Agência Nacional de Inovação, não está zangado com os edifícios, mas “algo desapontado com os actores nacionais”. Uma conversa sobre os nossos edifícios, a urgência da reabilitação séria, os bloqueios e sobre o que é necessário fazer. “Se a transposição da Directiva para os Edifícios for feita da mesma maneira que a última, a nossa conversa daqui a dez anos será a mesma”. Uma visão pessimista ou realista?

Deixou os edifícios e veio dirigir a inovação. Foi um caminho natural?

Quando eu estava nos edifícios, já fazíamos inovação. O que se pretende é tornar os edifícios sustentáveis, energeticamente eficientes e confortáveis para as pessoas. Para isso, são necessárias soluções práticas e produtos inovadores no mercado. 

Criar as condições para que as peças encaixem não será também inovação? O que é inovação?

A inovação é o desenvolvimento de produtos ou soluções com vista à sua entrada no mercado. Se um projecto, por mais inovador que seja, ficar numa gaveta, não é inovação, é investigação. Se esse projecto for ligado à indústria, criada uma patente e chegar ao mercado, isso é inovação. O que fazemos aqui e aquilo que tentamos promover é exactamente que, por um lado, a investigação feita nas instituições de ensino superior passe para as empresas e, por outro, que as empresas e academia trabalhem em conjunto na procura de soluções inovadoras que possam ir para o mercado.  

Podemos ter inovação, mas se o mercado não vir oportunidade económica…

Sem o mercado não há inovação. Um produto que não entre no mercado, não contribui para a economia. Falei na academia, mas não há nada que obrigue a esse modelo. A iniciativa pode vir das empresas, que, sozinhas ou não, o podem fazer. 

Hoje, com a rapidez da tecnologia há muita coisa que nasce quase de um dia para o outro. 

Estes processos podem ter muitos modelos. Passar da ideia ao produto é o lema, mas a história dá-nos conta que nem sempre a melhor tecnologia é a que ganha. É sempre preciso algum tempo para que estas coisas aconteçam e que haja um foco também na receptividade do utilizador final.

Podemos fazer inovação sem patentes?

Claro que podemos. Aliás, a patente é apenas uma das muitas formas de protecção da propriedade intelectual. Muitas empresas optam por não as ter, porque, no momento em que as registam, a ideia fica escrita publicamente. A Coca-Cola não tem a patente da sua fórmula original! 

Se pensarmos nos edifícios e na generalidade de outras áreas, verificamos que o conhecimento, a ciência ou a inovação estão sempre muito à frente daquilo que é a nossa utilização. Parece que há dois mundos…

Mas não é só nos edifícios. Nos edifícios, existem outras questões. É difícil mudar os comportamentos. Se falarmos no aquecimento, há uns anos, promovia-se a lenha como fonte renovável. Hoje, isso não acontece por várias razões mas foi preciso muito tempo para dar esse salto. O aquecimento eléctrico (resistência eléctrica) não era uma possibilidade em determinado momento e devíamos ir para o gás, que era mais eficiente. Agora, estamos no mundo das bombas de calor eléctricas como a solução mais defendida. Só que há aquelas pessoas que continuam a defender, como eu, que o importante é evitar tudo isso. Os edifícios devem precisar do mínimo possível. E esse pouco pode ser compensado com renováveis, que era a filosofia da EPBD (Directiva para o Desempenho Energético dos Edifícios) e dos NZEB (Nearly Zero Energy Buildings). Tudo isto tem apenas a ver com uma mudança de mentalidades que é necessário implementar e que nada tem a ver com inovação. Tem a ver com planeamento, em primeiro lugar. 

Temos excelentes arquitectos e engenheiros, mas tipicamente há um défice de responsabilização no nosso país. Esse não será um entrave à nossa capacidade de fazer melhor nos mais diversos domínios?

A questão da falta de responsabilidade tem a ver com outros aspectos. Podia dar exemplos de edifícios, mas vamos supor que estou a criar um medicamento novo. A inovação é chegar com ele ao mercado e, na grande maioria das vezes, deixa-se o processo a meio por causa da regulação. Esta indústria é altamente controlada e regulada e os edifícios não o são. São a área menos regulada que eu conheço. Mesmo quando há regulação no papel, ela não existe na prática. Os edifícios pecam, não por falta de responsabilidade, mas por falta de regulação que nada tem a ver com a existência de regulamentos, porque eles existem. Tem a ver com a falta de poder ou de vontade em aplicar esses regulamentos. As leis existem e vai ser necessário um esforço acrescido para chegar aos objectivos da eficiência energética e às cidades inteligentes na componente dos edifícios. Vai ser muito mais fácil fazê-lo com a mobilidade e com os transportes.

E porquê?

Porque, na mobilidade, estamos a falar de uma dezena de grandes construtores de automóveis e a passagem para os veículos eléctricos ou a hidrogénio vai ser uma realidade pela simples falta de oferta das actuais soluções de propulsão num futuro não muito distante. 

Mas essa indústria vai ficar dependente dos edifícios. Vai precisar deles.

Na prática, vai ficar dependente de uma tomada e veja-se bem as dificuldades que têm existido em implementar uma simples obrigação de colocar os carregadores dos veículos eléctricos nas garagens dos condomínios. 

Fomos pioneiros nessa matéria.

Fomos pioneiros na Lei, mas eu estou a falar em os colocar efectivamente, de forma utilizável, nas garagens. Na aplicação dessa Lei. De facto, quando a Europa adoptou a medida, nós já a tínhamos no nosso regulamento.

Podemos dizer que somos inovadores na produção de diplomas?

Podemos dizer que sim! [risos] A Europa tem uma classificação para a inovação assente em vários indicadores e, há alguns anos, Portugal estava em 18º. Neste momento, estamos em 13º.

Isso é extraordinário?

Olhe que sim. Subir cinco lugares no ranking europeu da inovação em três ou quatro anos é muito significativo. 

Qual a área mais forte no nosso país?

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). 

E a tecnologia na área dos edifícios?

É relativamente marginal em termos de inovação.

Está a referir-se à construção?

A tudo. A materiais em geral, tecnologia e equipamentos para climatização, materiais de construção, tintas, revestimentos, janelas… Temos dois clusters industriais (Cluster Habitat e Cluster Arquitectura, Engenharia e Construção) que tratam do sector dos edifícios. O Cluster das TIC (TICE) também contribui.

Temos centros de investigação de excelência.

Muito bons e muito activos. 

Está zangado com os edifícios?

Não estou zangado com ninguém! Estou, mais precisamente, algo desapontado com os actores nacionais ligados aos edifícios. 

Cerca de 75 % dos edifícios europeus são ineficientes. Cá arriscaria em mais. Os edifícios continuam a ser uma peça fulcral e, agora, ganham nova vida. Isto vai mudar à força?

A descarbonização tem de se conseguir em todos os sectores e não podemos ignorar os edifícios, que representam 30 % do consumo de energia. Mas é preciso ter em conta outros factores como a incorporação da energia nos materiais de construção. Tudo isto vai implicar um grande esforço para se chegar a essa neutralidade carbónica anunciada para 2050. Vai ser mais fácil desenvolver a mobilidade eléctrica do que desenvolver a sustentabilidade nos edifícios por uma mera questão de resistência cultural. 

Os edifícios vão ser eléctricos e vamos ter de nos ajustar. Depois, vai ter de haver “inovação” na forma como se vão encontrar as boas práticas e o modelos de gestão. Os edifícios vão a reboque?

Vão ter de ir, sobretudo se determinados materiais deixarem de existir ou os seus preços aumentarem muito e, aí, terá de se encontrar alternativas “inovadoras”.

Que tipo de materiais?

Todos. Vamos ter de produzir cimento ou janelas com menos pegada ecológica, por exemplo. E encontrar alternativas mais amigas do ambiente tendo sempre em conta o ciclo de vida do produto até chegar ao edifício. 

Os temas da pegada carbónica dos materiais ou da energia incorporada parecem não existir…

Eu olho para o meu telemóvel e sei que tem uma enorme “pegada”. Estas coisas vão ter de mudar. 

É esse o grande desafio, o de ter a informação e contabilizá-la em todos os sectores?

É claro que sim. Basta olhar para as baterias dos carros eléctricos. Daqui a dez anos, ou compra um carro eléctrico ou não compra nenhum carro. Só que, daqui a dez anos, ainda vamos poder comprar uma casa com uma pegada ecológica tremendamente má, mal isolada. A menos que haja uma mudança de mentalidades radical. Ninguém vai destruir os bairros tradicionais das cidades e olhar para os edifícios de uma forma séria. 

Como desafios, vamos ter a incorporação da energia nos materiais, os sistemas e a descentralização da energia. Qual o preocupa mais?

O que me preocupa mais é a reabilitação do parque existente em todas essas vertentes, porque vai exigir muito dinheiro.

A descentralização de energia poderá acomodar uma parte significativa dos custos?

Nós já temos uma rede eléctrica inovadora do ponto de vista do software de gestão da integração de fontes renováveis, que teve um enorme investimento, mas, também, um excelente retorno. 

O ponto é produzir local, consumir local. 

Com o conceito de cidade que temos, insistir nessa ideia não é possível. A energia necessária para Lisboa, por exemplo, muito dificilmente será produzida em Lisboa porque é uma área muito concentrada. Temos de ver isto numa perspectiva equilibrada. E o caminho poderá estar na exportação da nossa energia solar. Neste momento, posso ter um edifício altamente consumidor de energia e este ser todo verde e com um balanço energético zero. 

Mas, na realidade, chamar-lhes NZEB é uma armadilha. Não existem edifícios com balanço de energia nulo porque só estamos a contabilizar a produção e a operação de parte do edifício.

O edifício tem muitos prismas que devem ser abordados se pensarmos na energia. 

E quando vamos olhar para eles dessa forma? 

Vamos precisar de produtos inovadores para a construção de edifícios para reduzir essa pegada. Mas, por sua vez, precisamos também de mudar as atitudes e comportamentos das pessoas e sem isso não vamos conseguir. Além da inovação tecnológica, precisamos que as pessoas saibam utilizar os edifícios de forma sustentável. Se formos ver o que se passa, há muita gente que não considera estas questões como importantes. Neste particular, a inovação social é fundamental no sentido de actuar junto da população e das comunidades. 

A mudança poderá ser feita por aí? 

Sem dúvida, mas demora muito tempo a fazer. Se virmos a reciclagem, ainda estamos muito longe do que seria expectável. Agora, se compararmos o que se faz hoje com o que se fazia há 20 anos, estamos muito melhor. Esse processo foi introduzido nas escolas e foram as crianças que o ajudaram a activar em escala. Temos de fazer o mesmo nesta área.

Do lado do mercado, também há bons exemplos que casam com a cidadania, como é o caso das comunidades de energia. As vantagens económicas não serão também um bom gatilho?

São ainda uma minoria. Precisamos de todas as ajudas. E podem ser desenvolvidos produtos de inovação social que sejam atractivos para o Estado ou para as cidades. Pode existir inovação nos modelos de negócio. 

Temos agora uma janela com a transposição da Directiva para os Edifícios.

Se for feita da mesma maneira que foi feita a última, a nossa conversa daqui a dez anos será a mesma.

“Não estou sequer desapontado apenas com a comunidade portuguesa. Estou zangado com a comunidade internacional. Todos dizem que sim, que há que actuar, mas, depois, não se faz nada de relevante”.

E por que razão não fazemos bem?

Porque não há vontade. Não estou sequer desapontado apenas com a comunidade portuguesa. Estou zangado com a comunidade internacional. Todos dizem que sim, que há que actuar, mas depois não se faz nada de relevante. Os edifícios são uma área difícil de tratar. É muito mais fácil de actuar na oferta. A produção da energia eléctrica verde, que tem a ver com a descentralização, também tem custos. É preciso dinheiro para investir independentemente do retorno que gere. 

Mesmo com financiamentos, essa tem sido a principal barreira. O que podemos fazer?

Em todo o processo negocial europeu das directivas, cada país procurou sempre e em cada momento mudar uma palavra ou uma vírgula que lhe desse a possibilidade de fugir a uma obrigação. O que vejo é que não há uma vontade efectiva de mudança.

Porquê?

Porque os edifícios não dão votos. Se obrigarem as pessoas a substituírem as janelas das suas casas, elas não vão gostar. Há uma resistência natural às obrigações. A solução vai estar nas pessoas. As pessoas, um dia, vão convencer-se de que precisam de ter determinadas atitudes para que não aconteçam catástrofes e outras tragédias no planeta. A questão do clima é séria.

Não vê esperança para os edifícios?

Numa visão que assumo como pessimista, a minha experiência diz-me que os edifícios vão ser a última área a ser intervencionada. Não vejo vontade política de atacar este problema. Um problema importante, mas difícil. Vão atacar primeiro todos os outros porque são mais atractivos, mais fáceis e vão trazer mais resultados e mais depressa para a economia. A mudança para os carros eléctricos continua a ser um bom exemplo, porque vai trazer um enorme retorno à economia mundial e nacional durante a próxima década. 

Por cá, vamos coleccionando certificados energéticos?

Vamos coleccionando certificados em papel que valem muito pouco. 

O que faria se estivesse a liderar esses processos?

Há 20 anos tinha mudado o curriculum das escolas à semelhança do que se fez com a reciclagem. Hoje, tínhamos pessoas formadas e sensibilizadas. Em termos de regulamentação, a aplicação tinha sido séria! E não é só em Portugal que as coisas acontecem. Este é um problema europeu e mundial. Vamos aos EUA e é a mesma coisa, onde mais de metade dos Estados não tem sequer qualquer regulamento para os edifícios que aponte para os mínimos de eficiência energética. Na Alemanha, vendem-se certificados energéticos pela internet a tuta e meia. Muita coisa está mal!

Vai voltar para os edifícios?

Não sei dizer… É difícil cortar com um passado de 40 anos.