Tijolos feitos em fibra de cânhamo são uma realidade em muitos países por esse mundo fora. Mas, em Portugal, só agora começou a ser possível desenvolver e utilizar esta matéria-prima no sector da construção. A SKREI, uma empresa de construção civil, terminou recentemente a construção de um edifício, no Porto, com este material. E muitos mais se seguirão, apesar da dificuldade em obter esta matéria-prima, tão simples de cultivar e rápida a crescer, mas que é, hoje, pouco comum no nosso país.
Em tempos muito antigos, na época dos Descobrimentos, Portugal foi um dos maiores produtores e exportadores ocidentais de cânhamo. A planta era utilizada para as velas e cordas dos navios. Mas, alguns séculos depois, a sua utilização está longe de ser consensual ou comum, apesar das inúmeras vantagens que o cânhamo industrial já provou ter e do sucesso que faz além-fronteiras no sector da construção.
A SKREI, uma empresa de construção civil, cujos projectos pautam pela utilização de ensaios e inovações, utiliza o cânhamo como alternativa ao cimento. Fundada em 2009 pelos arquitectos Francisco Adão da Fonseca e Pedro Jervell, que a apelidam de “oficina”, esta empresa tem uma actividade vincadamente prática e que junta várias disciplinas. Assim, desenvolveram este material, com o qual já se construiu um edifício no Porto, de três andares e águas furtadas, e estão a realizar o primeiro edifício de pré-fabricação em cânhamo, isto é, um edifício cujas paredes são previamente fabricadas e, só depois, instaladas no local.
Chegar até este grau de desenvolvimento e execução implicou muitos estudos e ensaios, realizados pela SKREI em parceria com a Universidade do Minho, a Universidade do Porto e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, no caso do edifício recentemente terminado. À Edifícios e Energia, Francisco Adão da Fonseca explicou que todo este processo foi desenvolvido e acompanhado para que seja uma opção para todos e não apenas uns projectos alternativos “mais hippies” que só servem para poucos. A empresa que o arquitecto refere ser de “actividade alargada, em pequena escala”, tem mais obras prontas para avançar, uma com paredes em pré-fabricado, outra com blocos de cânhamo e carvão.
Mas porquê o cânhamo, quais as vantagens desta planta face ao tradicional betão? Francisco Adão da Fonseca esclarece que se trata de cânhamo industrial, que não tem nada a ver com o farmacêutico: “o cânhamo industrial é uma planta que tem particularidades muito interessantes para resolver grandes questões com que nos estamos a debater em Portugal. É uma planta de crescimento muitíssimo rápido, que faz a reestruturação do solo e do território de uma forma mais alargada, porque devido ao seu rápido crescimento tem um tipo de gestão de cultivo muito simples e não precisa de pesticidas. Tem também um enraizamento que promove a permeabilização do solo, portanto, a retenção da água, e faz a reposição de carbono e azoto, além de ser uma planta que funciona como barreira vegetal aos incêndios. Portanto, o conjunto de características desta planta, no seu estado de cultivo, são tão positivas que, se tivermos hoje um motor como a construção civil, que consome toneladas e hectares desta matéria-prima, para fazer uma construção de altíssima qualidade, teríamos aqui uma situação completamente win-win. Do lado agrícola, temos uma cultura muito democrática, acessível a todos, e, do lado da construção civil, teríamos uma alternativa de ponta para responder às questões de sustentabilidade que se põem neste momento na construção civil”.

Um artigo da agência Bloomberg sobre este mesmo tema referia, precisamente, que os fabricantes de cimento são responsáveis por cerca de 7 % do dióxido de carbono global emitido anualmente para a atmosfera. Ao ser substituído pelo cânhamo, tal não aconteceria, refere Francisco Adão da Fonseca, já que este “é o material de construção que tem uma pegada de carbono mais negativa. Neste caso, negativo é positivo, ou seja, absorve muito mais carbono (quatro vezes mais) do que a madeira, por exemplo, sendo a construção em madeira, vista como a grande alternativa de carbono negativo. O cânhamo, pelo seu crescimento muito rápido, emite uma fotossíntese muito rápida e, portanto, tem uma absorção de dióxido de carbono muitíssimo rápida e interessante. Para além disso, tem características técnicas que são ímpares. Por exemplo, é o único material de construção que conheço (e já tenho alguns anos de investigação nesta área) que em 19 cm de espessura cumpre com os grandes regulamentos da construção, que é térmica, acústica e incêndio. Não há nenhum outro material que reúna estas qualidades de forma tão expressiva como a construção naquilo a que chamamos o betão de cânhamo”.
Ainda segundo a Bloomberg, são os materiais utilizados na construção dos edifícios que representam o impacto da pegada de carbono vitalícia de uma estrutura. Assim, substituir materiais com uma grande pegada de carbono, como o cimento, por alternativas mais ecológicas, como o cânhamo, pode reduzir drasticamente ou até compensar as emissões de gases de efeito estufa. A agência explica ainda que os campos de cânhamo absorvem carbono durante o seu crescimento, mas, mesmo após a colheita, as plantas mantêm essa característica ao ser misturadas com limão ou argila. Apesar de os números variarem, dependendo dos processos, a JustBioFiber uma empresa canadiana que usa o cânhamo na construção, e ouvida pela Bloomberg, refere que o cânhamo que utilizam captura 130 kg de dióxido de carbono por cada metro cúbico que constroem. Assim, as estruturas construídas com os seus tijolos absorvem mais gases de efeito estufa do que emitem na sua produção. Em contrapartida, de acordo com a Associação Europeia de Cimento, cada tonelada de cimento produzida emite meia tonelada de dióxido de carbono.
Fornecimento do cânhamo: o entrave
A SKREI elabora os seus tijolos com argila – “uma argila muito específica, que se encontra na zona Centro e no Norte de Portugal, e que é reactiva com cal. Portanto, a formação é cal, argila e cânhamo. Depois, dependendo para aquilo que é usado, adicionamos, por exemplo, antifúngicos, caso seja necessário. E, em termos de maquinaria, a fabricação destes tijolos não requer praticamente nada. Portanto, é algo muito acessível a qualquer pequeno produtor”, explica Adão da Fonseca. Mas, refere o arquitecto, existe um grande entrave em Portugal no que toca ao uso desta matéria-prima: o seu fornecimento. “A plantação de cânhamo, até há pouco tempo, precisava de diversas licenças, do Infarmed, do ministério da Agricultura. Neste momento, há um desajuste nas instituições para saberem ler esta legislação para os agricultores terem confiança. O problema que temos aqui é ao nível do fornecimento. Quando temos uma produção em que precisamos de um maior rigor, de modo a evitar ao máximo qualquer variação de desempenho técnico dos tijolos, temos de mandar vir as aparas de França. Os grandes produtores dos tijolos de cânhamo, na Europa, são a França e a Alemanha. Esta tecnologia com que estamos a trabalhar já é altamente utilizada em França, na Alemanha, Bélgica, Austrália, Califórnia e Canadá. E, em Inglaterra, a pré-fabricação em cânhamo é um universo absolutamente impressionante porque, além de todas as qualidades já referidas, tem mais uma: é muito leve. O peso do cânhamo anda nos 250kg/m3, enquanto o betão pesa 2500kg/m3, e a cortiça anda nos 150kg/m3. Portanto, esta característica faz com que seja muito interessante, não só para os trabalhadores da construção civil, como para a pré-fabricação, ou seja, o transporte de paredes já feitas”.
Posto isto, pode concluir-se que a utilização do cânhamo industrial como material de construção é uma mais-valia para todos – trabalhadores da construção, utilizadores finais dos edifícios e, acima de tudo, o ambiente. Assim, impõe-se a questão: qual a desvantagem deste material que o leva a não ser muito utilizado em Portugal? Francisco Adão da Fonseca não hesita na resposta: “há uma: quando isto for para a frente vai fazer mossa no mercado da construção. Muita mossa. Porque há também as questões das compatibilidades, de que não se fala. Ou seja, quando usamos cânhamo como material de construção, a estrutura não tem de ser tão robusta como as que aguentam com tijolos. A estrutura do edifício também fica mais leve, portanto, a construção em madeira é potenciada, em detrimento de construções em aço ou betão. Quando há um material de construção que ocupa um papel central, este tem repercussões no universo de todos os materiais que o complementam. No caso do cânhamo, isso é muito radical porque a construção contemporânea é uma construção que não respira, ao contrário da construção tradicional, em que as paredes respiram, a madeira respira. O cânhamo também, portanto, vai promover o mercado, a procura de outros materiais que também respiram, em detrimento dos outros, como os plásticos ou os cimentos”.
Há, assim, muitas razões para optar por este tipo de construção. São agora necessárias acções que potenciem a consciencialização da importância deste material e que promovam o seu cultivo nos inúmeros campos que o país possui. Rumo a uma construção mais verde, tão necessária num planeta em estado de emergência climática e ambiental, como declarado em Novembro de 2019, pelo Parlamento Europeu, pedindo medidas concretas para a redução de gases com efeito de estufa.