Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 156 da Edifícios e Energia (Novembro/Dezembro 2024).
A sustentabilidade dos edifícios vai passar a estar centrada nas emissões de todos os processos construtivos, dos materiais e equipamentos. Ou seja, a pegada carbónica de um edifício passa a centrar-se no seu ciclo de vida e no ciclo de vida de todos os seus componentes. O sector da construção vai ocupar um espaço decisivo na avaliação e contabilidade do desempenho energético dos edifícios. A eficiência energética ganha assim novo significado e o mercado terá de se adaptar rapidamente.
A nova Directiva sobre o Desempenho Energético nos Edifícios (EPBD) tem dado muito que falar desde a sua publicação há mais de 6 meses. São muitas as novidades e o tempo é escasso. Descarbonizar os edifícios novos até 2030, e os restantes até 2050, poderá ser uma missão impossível. O novo Plano Nacional para a Renovação de Edifícios, que vem substituir a actual Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE), terá de apontar uma estratégia para a descarbonização de todo o parque edificado e vai ser preciso muito dinheiro, público e privado. Até ao momento não se conhecem mecanismos de financiamento ou apoio que possam ser disponibilizados. Ou seja, está tudo por fazer.
O impacto desta nova visão da energia nos edifícios é grande. A avaliação do desempenho energético tem estado centrada na operação e utilização dos edifícios e, com estas mudanças, as outras áreas construtivas vão ganhar muita relevância. O foco vai estar na contabilidade das emissões de CO2 em todos os processos.
Daqui a um ano e meio a directiva deverá estar transposta para a regulamentação nacional se Portugal cumprir os prazos de Bruxelas e toda a ambição está centrada nos edifícios zero emissões. Abre-se assim uma nova dimensão ambiental da energia, da eficiência energética e do parque edificado. Hoje já não há dúvidas sobre a importância dos edifícios neste caminho da descarbonização da economia, da indústria e das cidades. Sem uma estratégia eficaz para os edifícios, e sem edifícios zero emissões, a missão da descarbonização não acontece. Os edifícios representam cerca de 50 % desse pacote e, portanto, não há volta a dar. Tudo indica que terá de haver um investimento massivo da União Europeia e, se o compromisso de Bruxelas faltar, esta missão deverá tornar-se impossível: os Estados-Membros não têm a capacidade financeira para a assumir.
Para além do investimento, o que vai ser preciso? A mudança é enorme e estrutural porque vai ligar várias peças que até agora ainda não estavam integradas de uma forma consolidada: a engenharia, a arquitectura, os equipamentos, a construção, os materiais de construção ou todos os processos construtivos.
O impacto desta nova visão da energia nos edifícios é grande. A avaliação do desempenho energético tem estado centrada na operação e utilização dos edifícios e, com estas mudanças, as outras áreas construtivas vão ganhar muita relevância. O foco vai estar na contabilidade das emissões de CO2 em todos os processos, desde a extracção das matérias-primas de qualquer material, ao seu fabrico, transporte, destruição, etc. A pegada carbónica de um edifício passa a centrar-se no seu ciclo de vida e no de todos os seus componentes. Ou seja, o ciclo de vida de todos estes componentes, a energia incorporada ou a circularidade associada passam a contar para a classificação energética de qualquer edifício. Incluir as emissões, o sector da construção e a indústria dos materiais na contabilidade energética dos edifícios é uma ambição enorme. Importa agora perceber se o mercado está preparado e entender de que mercado estamos a falar.

NOVAS EXIGÊNCIAS PARA OS MATERIAIS
“Ao envolvermos não só aquilo que é o desempenho dos edifícios na sua utilização, mas passando agora para o processo da construção e reabilitação e para os próprios materiais e equipamentos, estamos a dar um grande salto”. Quem o afirma é José de Matos, secretário-geral da APCMC – Associação dos Materiais de Construção, a entidade que representa, no nosso país, o sector do comércio de materiais de construção. “Por questões que estão relacionadas com a própria actividade da construção em si e os desenvolvimentos que houve no domínio da digitalização e da sustentabilidade, a construção vai ser o primeiro sector a experienciar esta abordagem e a experienciar a abordagem dos passaportes digitais”.
“Há um novo desafio para a indústria dos materiais e isso afecta a actividade económica porque há empresas mais especializadas numas coisas do que noutras e todas vão ter de se preparar, mas nem todas as indústrias vão ter capacidade de acompanhar, no mesmo ritmo, estas novas exigências” José de Matos, secretário-geral da APMC
Tudo indica que a indústria dos materiais poderá estar no bom caminho e já existe muito trabalho feito quanto à identificação da pegada carbónica e das características de muitos produtos. “Não começamos do zero”, alerta o secretário-geral da APCMC. De facto, daqui a pouco tempo, qualquer tijolo, tinta, cimento, bomba de calor, caldeira… vão passar a ter um passaporte digital com toda a informação técnica e ambiental e parece que o trabalho de harmonização já está numa fase avançada. Ou seja, hoje já é possível calcular a pegada ambiental de qualquer produto desde que o fabricante tenha aderido a esta metodologia. Mas falta muita coisa do lado da sistematização, partilha de informação e uniformização de modelos para estes processos.
Esta urgência deverá ser encarada “mais como uma oportunidade do que como uma ameaça. Trata-se de um factor de diferenciação”. Para José de Matos, “há um novo desafio para a indústria dos materiais e isso afecta a actividade económica porque há empresas mais especializadas numas coisas do que noutras e todas vão ter de se preparar, mas nem todas as indústrias vão ter capacidade de acompanhar, no mesmo ritmo, estas novas exigências”. A maior dificuldade poderá estar na recolha de informação junto de toda a cadeia produtiva relacionada com cada material e na agilidade e rapidez com que a indústria vai responder. Por outro lado, mais exigências a este nível obrigam “os fabricantes a rever todos os processos produtivos, as matérias-primas e, provavelmente, também o design dos produtos. Os produtos com menos emissões de CO2 , durante o seu ciclo de vida, vão passar a ser considerados. Vamos passar a olhar para os produtos importados, para o seu transporte e fazer contas, muitas contas”.
Nem tudo é CO2: Edifícios zero emissões é a maior ambição da nova directiva para os edifícios. Sabemos que, para lá chegar, é preciso encontrar metodologias e financiamento. “Mas não é só o CO2 que vai ser contabilizado nesta avaliação ambiental dos produtos”, alerta José de Matos, secretário-geral da APCMC – Associação dos Materiais de Construção. “Vamos ter de incluir, na informação relativa aos produtos, o respeito pelos valores essenciais da União Europeia, como a não discriminação, a não utilização de trabalho infantil, etc. Os produtos têm vários componentes fabricados em muitas geografias e tudo isso vai ser rastreado e exibido nos ditos passaportes digitais. Estes passaportes digitais vão ter as informações técnicas dos produtos, mas também as características relativas à sustentabilidade ambiental e social”.
Uma aventura que começa no fabricante e continua no projecto. A metodologia, aparentemente complicada, vai ser mais simples do que parece. Tudo indica que as actuais Declarações Ambientais de Produto (DAP) vão ser as peças da engrenagem de qualquer projecto porque vão passar a incluir toda esta nova informação relacionada com as emissões e, por consequência, com a energia incorporada. O principal propósito de uma Declaração Ambiental de Produto “é demonstrar o desempenho ambiental de um produto ou serviço, baseando-se em estudos de Avaliação de Ciclo de Vida (ACV). Um aspecto importante desta ferramenta de comunicação é a possibilidade de se tornar numa base sólida de comparação de produtos e serviços através do desempenho ambiental demonstrado”, lê-se no DAP Habitat, um sistema e um programa de registo para as DAP (produtos e serviços) da fileira do habitat. O principal objectivo desta metodologia está em “identificar e reduzir os impactes ambientais negativos procedentes das actividades produtivas da fileira do habitat”.
Já há muito trabalho feito. “Temos as marcações CE, as declarações de desempenho e muita informação técnica que já está garantida. O que vem de novo é o CO2 e a utilização dos dados daquilo que são as DAP, que já têm uma norma específica”, explica José de Matos. Para o secretário-geral da APCMC, “temos a componente ambiental ligada à energética, porque a energia acaba por se reflectir em emissões de CO2 . É isso que está em causa e é isso que vai ser considerado. Nomeadamente, saber qual o tipo de energia e a quantidade que é utilizada e as emissões que estão associadas aos produtos. O conceito de eficiência energética tem a ver com as emissões de CO2 ”.
O SECTOR DA CONSTRUÇÃO
A área da construção tem enfrentado enormes desafios na última década. A falta de mão-de-obra qualificada ou a subida das matérias-primas estão no topo de uma vasta lista de muitas dificuldades.
Vanessa Tavares, directora de Sustentabilidade do BUILT CoLAB – Laboratório Colaborativo para o Ambiente Construído do Futuro, traça-nos o retrato de um sector muito exposto, também, “ao aumento galopante e exigente do quadro regulamentar que se tem vindo a assistir.” E identifica “3 obstáculos ao nível da transição sustentável: escassez de recursos (financeiros e humanos) que precisam de ser actualizados (upskilled e updated); carência de ferramentas digitais colaborativas, investimento em ID e projectos demonstradores que impulsionem a transição sustentável de toda a cadeia de valor; inexistência de cultura co-design, que permita a partilha de informação e o design participado pelas diversas especialidades inerentes ao projecto, necessário para a construção de (por exemplo) nZEBs ou até positive buildings”.
“O sector da construção, e toda a sua cadeia de valor, não estão preparados, nem ao nível de processos (digitalização, industrialização, processo colaborativo, partilha de informação), nem ao nível de conhecimento (estratégia de economia circular, avaliação de sustentabilidade, redução e reincorporação de resíduos, impactes ambientais, nZEBs, etc)” Vanessa Tavares, directora de Sustentabilidade do BUILT CoLAB
Para além da falta de Recursos Humanos (RH), e segundo Vanessa Tavares, a falta de formação é um problema estrutural no sector, “que não investiu na formação de novos RH (falta de cursos profissionais, pouca atractividade dos cursos que existem e dificuldade de alteração dos currículos das universidades para, por exemplo, o tema da Economia Circular e da Sustentabilidade) e na actualização dos RH existentes. Para além disso, o sector faz um reduzido investimento em inovação, sendo muitas vezes este investimento limitado à aquisição de software. A adopção da digitalização e da industrialização no sector da construção está muito mais atrasada do que noutros sectores (ex. a manufactura), sendo esta uma condição basilar para a implementação de práticas mais sustentáveis e circulares (por exemplo, dependentes da gestão da informação, existência de dados fiáveis, centralizados e partilhados, com processos optimizados”.
Em resumo, para a directora de Sustentabilidade do BUILT CoLAB, “o sector da construção, e toda a sua cadeia de valor, não estão preparados, nem ao nível de processos (digitalização, industrialização, processo colaborativo, partilha de informação), nem ao nível de conhecimento (estratégia de economia circular, avaliação de sustentabilidade, redução e reincorporação de resíduos, impactes ambientais, nZEBs, etc)”.
NOVAS ABORDAGENS PRECISAM-SE!
Nesta nova dimensão da sustentabilidade centrada nas emissões, o significado da eficiência energética e a forma de projectar os edifícios ganham novas abordagens. O mercado tem de corresponder com diferentes formas de trabalhar e o sistema de certificação energética terá de se adaptar rapidamente. A sustentabilidade nos edifícios já não se justifica apenas com a penetração de renováveis ou sistemas e equipamentos eficientes para efeitos de classificação energética. A electrificação continua a ser a grande linha orientadora com o fotovoltaico e as bombas de calor a dominarem as soluções, mas não chega. A sustentabilidade de um edifício é agora muito mais do que isso e há todo um mundo novo que se abre.
Na prática, todas estas peças, para funcionarem, têm de ter um agregador comum: a digitalização com instrumentos eficientes e ágeis. Por outro lado, a integração de novos conceitos, como a circularidade, vão alavancar estes temas para um patamar muito alargado que exige muita comunicação e partilha de informação.
Mais, “a sustentabilidade pressupõe, em paralelo com a dimensão ambiental, a dimensão económica (com a sobrevivência das empresas de diversas dimensões) e a social (não devendo colocar em risco os empregos e o bem-estar da população). Penso que todos concordam que o calendário definido pela nova EPBD é bastante ambicioso”, alerta Vanessa Tavares.
“As pessoas não estão sensibilizadas para esta questão das emissões ou da energia incorporada. Em termos de metas no tempo, sim, este processo é uma utopia. Trata-se de uma realidade futura incontornável, mas as dificuldades na sua execução estão sobretudo do lado do financiamento. Os promotores poderão desinteressar-se e deixarem de investir”. Luís Malheiro, projectista
De facto, é provável que os vários domínios, as empresas ou os profissionais não estejam preparados e tudo indica que, num tão curto espaço, vai ser impossível dar resposta às metas apresentadas. Atingir a neutralidade carbónica de todos os edifícios europeus em 2050, e os novos já em 2030, poderá ser uma verdadeira utopia, defendem muitas vozes. É preciso mais tempo para que as empresas se adaptem. “E se consideramos que, para as grandes empresas, (de projecto ou construção) esta é uma nova realidade com uma difícil adaptação, sabemos que será ainda mais difícil (se não uma “missão impossível”) para as PME´s que compõem a esmagadora maioria deste sector”. Para Vanessa Tavares, apesar de bastante ambiciosas, estas imposições regulamentares “expressam uma urgência ambiental inegável” e essa é a maior virtude de todo este processo de mudança. E explica que “são necessárias medidas exigentes de forma a cumprir os compromissos nacionais e as imposições europeias e, acima de tudo, travar as alterações climáticas para as quais o sector da construção e o ambiente construído têm uma grande responsabilidade (são 40 % do problema e podem, por isso, ser 40 % da solução). Mais, a adaptação do sector a práticas mais sustentáveis pode ser um factor de diferenciação no mercado global, alavancando a sua competitividade na Europa e no Mundo (um claro e forte argumento comercial)”.
O PROJECTO E A ENGENHARIA
Luís Malheiro, engenheiro, é um dos projectistas mais conceituados e, para ele, as preocupações são as mesmas, “as pessoas não estão sensibilizadas para esta questão das emissões ou da energia incorporada. Em termos de metas no tempo, sim, este processo é uma utopia”. Para este especialista, a importância dada ao tema é enorme, “trata-se de uma realidade futura incontornável”. Mas identifica que as dificuldades na sua execução estão sobretudo do lado do financiamento. “Os promotores poderão desinteressar-se e deixarem de investir. Arriscamo-nos a ter edifícios que não cumpram os regulamentos, sobretudo quando entrarem em vigor os edifícios zero emissões”. É que “o panorama não é famoso” e há muito que fazer na base do problema, denuncia Luís Malheiro. “Os promotores, os arquitectos e os engenheiros têm de começar a pensar que o caminho está definido. E essa é a grande dificuldade. O Estado deverá responsabilizar os projectistas, mas tem de dar meios aos promotores. O PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) não está ajustado a estas metas e, portanto, não se conhecem estratégias para o financiamento do lado dos edifícios”.
A linha que divide a arquitectura e a engenharia ainda está muito marcada. E, “ou conseguimos pôr os arquitectos e os engenheiros civis, embora estes últimos em menor escala, a cooperar, ou não chegamos lá.” Para Luís Malheiro, “estas soluções só são possíveis com uma colaboração desde o “very beginning”.
Para além destas dificuldades, Luís Malheiro alerta ainda para outros problemas. “Tirando honrosas excepções, os arquitectos ainda não pensam nestes temas e passam-nos para os engenheiros e projectistas de ar condicionado”.
Circularidade: No âmbito do desenvolvimento do Plano de Acção para a Circularidade da Construção em Portugal (PACCO), no qual o BUILT CoLAB – Laboratório Colaborativo para o Ambiente Construído do Futuro participou, “foi feito um levantamento exaustivo de obstáculos à integração de práticas de economia circular na construção em Portugal”. Numa análise a este estudo, Vanessa Tavares, directora de Sustentabilidade, identifica obstáculos semelhantes a outras exigências regulamentares, como o cumprimento da legislação, a alteração dos processos produtivos e o reporte corporativo de sustentabilidade”. Neste sentido, e para apoiar o sector, “foram definidas no PACCO 30 medidas agrupadas em 4 pilares: político e regulamentar, tecnológico, de mercado e cultural, tendo sido definido para cada uma das medidas: acções, prazo, metas, indicadores, actores e enquadramento. Para além das medidas, identificámos alguns projectos que procuram responder às dificuldades sentidas pelo sector, tendo sido estes apresentados à Secretaria de Estado do Ambiente (no Governo anterior e no actual)”.
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