Artigo publicado originalmente na edição de Março/Abril de 2023 da Edifícios e Energia

Todos nos recordamos das múltiplas ofertas de soluções para todos os males de saúde que nos aparecem na publicidade quase todos os dias, em todas as plataformas, do papel ao digital. Poções mágicas, pílulas ou xaropes que nos curam de todas as maleitas, desde a simples tosse às dores nos ossos, à artrite, às alergias ou a coisas muito piores. O mesmo produto resolve tudo, milagrosamente. Os médicos e farmacêuticos que se cuidem, pois passarão a ser desnecessários e irrelevantes! Também na área da energia nos edifícios se poderiam traçar paralelos a esta situação. Os engenheiros e técnicos do setor de energia que se cuidem… 

1. Bom, agora que a energia está outra vez na atenção pública pelas piores razões (custo elevado), aumentou também a oferta publicitária de soluções milagrosas que, a acreditarmos serem corretas, certamente, acabariam, de um dia para o outro, com a pobreza energética e todas as demais maleitas nacionais nesta temática. Nem se percebe porque é que o nosso Governo não as adota já e ainda trabalha numa mais do que necessária estratégia para minorar a pobreza energética em Portugal! Se a solução já foi encontrada, porquê procurar mais? E o problema é que essa publicidade nos bombardeia em todos os meios digitais ligados a publicações de referência a nível nacional e acaba sempre, certamente, por enganar muita gente.

A título de exemplo, vejamos duas das situações muito comuns em publicidade recente que circula ainda durante este inverno:

  • Uma pequena ventoinha com 500 W de resistência elétrica que se mete numa tomada elétrica e, dizem-nos, permite poupar 80 % de energia! Poupa mesmo? Claro que se ligar um aquecedor a óleo de 2500 W ao máximo da potência no mesmo espaço e ele não desligar nunca, a ventoinha gasta apenas 20 % do que gastará o aquecedor, mas… também só dá 20 % da energia que o espaço necessitará para se manter na temperatura pretendida e, portanto, a ventoinha só vai permitir atingir uma temperatura inferior à pretendida e o nível de conforto não será atingido. Caso contrário, o termóstato do aquecedor vai ligando/desligando e só consome o que for necessário, não poupando, então, a ventoinha nada que se assemelhe aos apregoados 80 %! Isto não é mais do que publicidade enganosa. Se fossem sérios, podiam dizer “para aquecer um espaço pequeno, comprem esta ventoinha, pois chega para as necessidades e é mais barata do que o aquecedor”, mas dizer que este dispositivo permite poupar 80 % da energia é vender banha da cobra. E, certamente, há quem vá acreditar e comprar. E ser enganado.
  • Pequenos dispositivos do tipo “caixa negra” que se colocam numa tomada como se fosse um emissor de wi-fi e que, dizem os anúncios, permitem poupar entre 50 % (os anunciantes menos ambiciosos…) e até uns admiráveis 80 % a 90 % da conta da eletricidade. Mas como? Vão desligar os frigoríficos e as lâmpadas? A bomba de calor para climatização? O televisor? Como podem anular estes consumos efetivos só com um mero sistema (legal) que se mete numa tomada? E anular a quase totalidade da fatura, pois não oferecem menos do que 50 % a 90 % de poupança, e [a promessa de] que o custo do equipamento é recuperado em poucos meses com as poupanças nos consumos faturados de eletricidade?… Mais banha da cobra para o povo acreditar e comprar.

2. Outra campanha com que temos todos sido bombardeados nos últimos tempos, incluindo com telefonemas personalizados de call centers contratados pelas distribuidoras de energia, está ligada à compra de coletores fotovoltaicos. As empresas querem vender, prometendo poupanças significativas na conta da eletricidade, sem sequer se preocuparem em saber se o perfil de consumo de eletricidade do cliente é adequado para permitir poupanças efetivas. 

Tratando-se de situações de autoconsumo, e como só há “sol” de dia, período em que a maioria das habitações está desocupada, a produção de energia fotovoltaica é usada para quê? Para o eventual liga/desliga do frigorífico? Para os consumos parasíticos dos equipamentos em stand-by ou da caixa da televisão por cabo? E, se a energia produzida e não consumida no próprio edifício vai para a rede sem qualquer remuneração, como vai reduzir a fatura da eletricidade sem optar por sistemas mais caros com baterias de acumulação?  

Se se pretende, efetivamente, colocar coletores fotovoltaicos em todas as coberturas de todos os edifícios, como foi anunciado pelas políticas europeias, então há que enveredar por remunerar adequadamente a energia produzida e não consumida sob a forma de autoconsumo, por forma a permitir uma recuperação efetiva do investimento nos painéis. Temos aqui amplo campo para soluções do tipo “comunidades de energia”, mas isto não se resolve com as pressões constantes de chamadas de call centers para consumidores individuais que, geralmente mal informados, acabam por comprar mais banha da cobra, a solução mais barata, e não verão qualquer retorno do seu investimento.

Impõe-se uma política séria, transparente e que venda soluções adequadas a cada perfil de utilizador, sem a massificação de vendas que dão muito lucro às empresas que vendem sem a menor preocupação para a “saúde financeira” do comprador. Muito embora possa ser bom para a saúde do Planeta, aumentando a captação de energia renovável e reduzindo o recurso a combustíveis fósseis, os investimentos devem remunerar quem os faz e não enganar pessoas menos bem informadas que, mais tarde, se vão sentir defraudadas, o que não deixará, a curto prazo, de ter impactos negativos por desacreditar, perante o consumidor, o que poderia ser, efetivamente, uma boa solução para o futuro. Basta recordar a morte do mercado dos coletores solares térmicos para aquecimento de água quando, na década de 1980, foram instalados milhares de coletores solares que não funcionavam bem durante muito tempo, ou partiam mesmo no primeiro inverno, congelados. Demorou depois mais de uma década a reconstruir um mercado que, agora, está mais bem sustentado por normas de qualidade mínima obrigatória (apesar de, como em qualquer atividade, continuarem a ser feitas muitas más instalações para poupar uns euros e que acabam por provocar prejuízos muito maiores a curto ou médio prazo). 

Haja seriedade e boa informação ao consumidor quanto à viabilidade dos sistemas de coletores fotovoltaicos a colocar nas coberturas dos seus edifícios. No longo prazo, funcionará para bem de todos. Não é correto que alguns se aproveitem da ignorância energética da grande maioria da população e enganem quem investe convencido de que vai fazer um bom negócio.  

Para concluir e para que seja correto, não posso deixar de reconhecer que há alguns atores sérios a atuar no mercado. Nem todos andam a vender banha da cobra. Portanto, escolham bem! E procurem sempre validar a solução com outros que não os vendedores que os contactam antes de decidirem investir.

3. Já que falamos de políticas europeias para a descarbonização, com os painéis fotovoltaicos em cada telhado da União Europeia, perguntemo-nos de novo por onde anda a nova EPBD revista, a última peça legislativa importante que falta acordar entre a Comissão Europeia e os Estados-Membros para se poder atingir um setor dos edifícios 100 % descarbonizado em 2050.  

A EPBD começou como nearly-“zero energy” em 2002, foi revista para “zero emissions” em 2018, e agora estava proposto passar para “zero carbon” em 2021. Mas já estamos em 2023 e ainda não saiu nada… porque não há acordo quanto ao grau de reabilitação do parque edificado, cujo custo global seria da ordem de muitas dezenas de milhares de milhões de euros (sim, triliões). Portugal publicou a Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE) em 2021, que estimava, antes do início da inflação, só para Portugal, a necessidade de 143 mil milhões de investimento para reabilitar 100 % do parque nacional construído. Agora, será certamente mais 25 % só por causa da inflação já atingida nos custos da construção, ou seja, vamos passar os 200 mil milhões com a inflação atualizada daqui até 2050. 

Nas últimas notícias que foram tornadas públicas no início de fevereiro de 2023, o governo italiano recusa-se a entrar neste esforço que considera irrealista, com custos de reabilitação de um património histórico das suas cidades que não têm a mínima viabilidade económica. Será que a realidade portuguesa é diferente? Não somos iguais a Itália, mas os nossos edifícios tradicionais não serão muito diferentes e colocam problemas idênticos. Teremos meios técnicos e financiamento suficientes para fazer o mesmo tipo de intervenção tão alargada a nível nacional? 

A ELPRE, tal como publicada, satisfaz as imposições da atual EPBD, mas é poeira para os nossos olhos, ou, como diz o título deste texto, está a vender banha da cobra à Comissão Europeia. Não é realmente de acreditar que seja possível concretizá-la, quer devido a dificuldades técnicas e limitações legais, quer pelos enormes recursos financeiros que exigiria e que, como em Itália, nunca terão qualquer viabilidade económica. Qual é o privado que investe nestas circunstâncias? 

A implementação do programa de reabilitação dos edifícios em Portugal começou pelo mais fácil, a “low-hanging fruit”, como se diz na linguagem de Bruxelas. E há ainda muita fruta fácil de apanhar, e melhorar, assim, um grande número de edifícios do imenso património existente, nomeadamente nas habitações coletivas das cidades. Mas – há sempre um “mas” – os condomínios nem sequer são entidades reconhecidas para pedir apoios e já se imaginou a burocracia necessária para que cada um dos condóminos de um bloco de apartamentos de 20, 30, 40 ou mais frações faça um pedido individual, coordenado com todos os demais, e que todos sejam aprovados? E se um deles for uma segunda habitação, que não é elegível, cai todo o projeto? E se um condómino “Velho do Restelo” implicar e se recusar a alinhar? Ou se outro condómino não tiver os meios necessários para investir e se recusar a ficar ligado a um novo crédito que pode ter dificuldade em pagar? É mesmo impraticável. Os mecanismos de apoio e as prioridades das políticas nacionais para a reabilitação do edificado precisam de um redesenho radical.

O pouco que o Estado ofereceu até agora até pode ser adequado à “low-hanging fruit” e ter havido procura suficiente para esgotar a parca verba disponível, mas, a menos que nos estejam também a tentar vender a banha da cobra, é totalmente desadequado para atingir a descarbonização do setor até 2050, ou até mesmo as metas intermédias previstas para 2030. É preciso haver um programa sério de reabilitação e os respetivos mecanismos de implementação, incluindo apoios financeiros ágeis, eficazes e credíveis, com viabilidade económica para quem investe, para acreditar que a intenção oficial é mesmo de atingir o objetivo anunciado e não, apenas, atirar areia para os olhos de quem não quer ver a crua realidade. 

Entretanto, continuemos a aguardar a saída de uma EPBD revista, que seja realista e que nos permita atingir, efetivamente, a descarbonização do setor dos edifícios até 2050. Pede-se bom senso nas medidas a implementar e no desenho dos programas de apoio. Não nos tentem vender mais banha da cobra, por favor!    

As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.