Depois da primeira consulta pública e de 20 meses de silêncio, a Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética emergiu, em Janeiro, para voltar a ser alvo de análise. Já com o período de auscultação terminado, importa perceber o que mudou, quais os pontos fortes, as fragilidades e, acima de tudo, se tem pernas para andar.

Quando o(a) leitor(a) estiver a ler este artigo, já estará encerrado o período de consulta pública relativo à Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2022-2050 (ENLPCPE 2022-2050), que foi apresentada a 19 de Janeiro de 2023. Estaremos para lá do limite do dia 3 de Março, e a expectativa para uma data de publicação provavelmente permanecerá em aberto, apesar de a intenção do Governo, plasmada no seu programa político, ser a de acelerar a implementação desta estratégia. Talvez em Junho, supõe o especialista no tema João Pedro Gouveia, com base na calendarização quer da primeira avaliação da implementação deste plano e dos seus resultados em Junho de 2024 quer de um segundo momento de reflexão e de revisão do documento estratégico em Junho de 2026. Isto “se tudo correr bem”, sublinha o investigador do CENSE – Center for Environmental and Sustainability Research, da Universidade Nova de Lisboa.

No entanto, um período de 20 meses de silêncio depois da primeira auscultação à ENLPCPE 2021-2050, que terminou em 17 de Maio de 2021, dificilmente atesta que tudo tem corrido “bem”. Se o processo se tivesse desenrolado como planeado, em Junho de 2023 não se estaria a antever a publicação, mas, sim, a fazer-se uma primeira análise, em concordância com o que tinha sido previsto no documento anterior. É impossível ignorar este período, mas também não se pode desconsiderar o contexto socioeconómico e político dos últimos meses, que redireccionou a atenção para outros assuntos prementes em matéria de energia e de reestruturação do Governo, acrescendo a isso a complexidade que a elaboração de uma estratégia deste tipo representa. E “nem tudo é mau”: João Pedro Gouveia destaca que a estratégia pode ter ficado na gaveta, mas as acções e os projectos de combate à pobreza energética, ainda que “avulsos”, continuaram a ser desenvolvidos no terreno e houve medidas políticas e avisos para programas de apoio a serem implementados, contribuindo para a mitigação do problema.

Onde estamos? E o que mudou?

Segundo a ENLPCPE 2022-2050, em Portugal, estima-se que haja cerca de 2,3 milhões de pessoas a viverem em pobreza energética moderada e 660 mil em pobreza energética extrema. Isto se se considerar a definição como as situações em que a despesa dos agregados familiares com energia representa 10 % do total de rendimentos. Se, por outro prisma, se olhar para o conceito através do critério “população a viver em agregados sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida”, os números são 1,1 milhões e 680 mil, respectivamente.

O retrato é semelhante ao apresentado anteriormente e passa pela consideração dos mesmos indicadores, ainda que reorganizados. Na versão mais recente, os indicadores relacionados com os agregados familiares que recebem Tarifa Social de Electricidade ou de Gás Natural passam a ser secundários. Já os indicadores relativos à população que vive em habitações com problemas de infiltrações, humidade ou elementos apodrecidos, tanto para o caso de haver uma situação de pobreza energética como para o de não haver, passam a estar no quadro de indicadores principais, junto às habituais métricas ligadas à incapacidade de manter a casa adequadamente aquecida e à sobrecarga da factura energética em face dos rendimentos.

Apesar de a fotografia ser semelhante, João Pedro Gouveia nota que alguns indicadores, por exemplo, aqueles que dizem respeito ao atraso no pagamento de contas ou à incapacidade de aquecer a casa, não foram actualizados para os dados mais recentes disponíveis, podendo desvirtuar a própria forma como a estratégia é desenhada. Este “ponto fraco” é, porém, um aspecto “facilmente corrigível”. De modo positivo, à expressão de “incapacidade” na definição de pobreza energética junta-se a de “dificuldade” para acomodar os indivíduos que se confrontam com a escolha de pagar a factura energética ou a dos medicamentos ou outros bens. Com este “mini ajuste”, a definição culmina em “incapacidade ou dificuldade de obter um nível adequado de serviços energéticos essenciais, devido a uma combinação de vários fatores, tais como rendimentos, desempenho energético da habitação e preços de energia”. Para o investigador do CENSE, também o foco nos serviços energéticos essenciais é benéfico, ainda que suscite algumas questões a nível da caracterização e quantificação deste conceito. “É muito difícil definir o que são consumos de energia referenciais aceitáveis; [porque] depende de muita coisa. (…) Em termos de Governo, não há especialistas para identificar ou quantificar isto, e mesmo os especialistas não conseguem chegar bem a uma ideia [consensual], mas é importante [a referência]”.

Contudo, a designação de “consumidores vulneráveis” passou para “consumidores economicamente vulneráveis” nesta nova versão, criando, no entender de João Pedro Gouveia, o problema de não ser tão inclusiva quanto às variáveis que podem estar subjacentes à vulnerabilidade. Ainda que sugira que a decisão possa ter estado relacionada com o facto de as métricas existentes ainda estarem muito ligadas aos rendimentos, o responsável defende que o ponto de partida – o conceito – deve estar o mais alinhado possível com aquilo que se conhece do problema, até porque desenvolver ou consolidar outras métricas, por exemplo, ligadas à saúde, pode ser um passo seguinte.

Para Helder Gonçalves, director do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), há também pequenas incoerências ou “mistura de conceitos”, principalmente no que toca ao uso generalizado do conceito “consumidor”, apesar de se distinguirem os diferentes níveis de pobreza energética. “Há aqui uma imprecisão porque quem tem pobreza energética extrema é pouco consumidor.” Não obstante estes reparos, para o especialista, a Estratégia “tem um enquadramento da situação bem feito porque identifica os factores que contribuem, de facto, em Portugal, para a pobreza energética”, sem tentar dissimular os problemas existentes.

Islene Façanha, analista de Políticas Públicas e coordenadora de projectos na área do Clima-Energia na ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, partilha desta apreciação positiva do enquadramento, mas denuncia que “o silêncio, por parte do Governo, é lamentável e injustificável”, principalmente quando o documento, como aferem também os outros dois investigadores, acaba por ser similar ao anterior. “Notamos poucas mudanças na proposta actual, algumas referências à guerra na Ucrânia, alguns pequenos ajustes recomendados na consulta anterior, mas recomendações substanciais ainda não foram levadas em consideração”, remata. João Pedro Gouveia, por sua vez, chega mesmo a dizer que foi como “um toque de maquilhagem”, e, embora admita que o outro documento já tinha “vantagens à partida” e que este “está melhor”, critica o facto de não ter sido publicada, de forma transparente, uma resposta aos comentários da primeira consulta pública. Assim, explica, não é claro o que mais poderia ter sido feito na perspectiva dos agentes, nem o porquê de terem sido tomadas determinadas decisões.

Para onde vamos?

Perante o diagnóstico do problema, a ENLPCPE 2022-2050 define quatro princípios orientadores da acção de combate à pobreza energética. Aumentar o desempenho energético das habitações é o primeiro e sublinha as soluções construtivas, a renovação, a substituição e adopção de equipamentos, materiais, tecnologias e processos mais eficientes como o caminho a percorrer para reduzir necessidades ou consumos de energia. O segundo princípio recai no reforço das condições de acesso a serviços energéticos, onde entram em cena as comunidades de energia renovável (CER) e o  autoconsumo colectivo (ACC). Os outros dois pilares referem-se à redução de encargos com o consumo de energia, reconhecendo-se a actual conjuntura de escalada de preços em consequência do conflito armado na Ucrânia e, ainda, da recuperação da crise de Covid-19, e à necessidade de melhorar o acesso à informação e ao aconselhamento, divulgando boas práticas e promovendo a literacia.

Com base nestes princípios e no diagnóstico, a Estratégia delineia quatro áreas de actuação prioritárias, sobre as quais as medidas são traçadas: eficiência energética, com o desenho de intervenções estruturais e integradoras de energias renováveis e com apoios ao consumidores, como sejam o programa Vale Eficiência, a habitação social, a dinamização da certificação energética e de acções locais, a facilitação do acesso a financiamento, através de um quadro de empréstimos, entre outros; redução de encargos, mantendo-se a Tarifa Social Energética; protecção do consumidor, para que este não seja privado de serviços energéticos essenciais, incentivando-se também a partilha de energia; e informação, conhecimento e educação, através de campanhas de sensibilização, por exemplo, junto da comunidade escolar, ou de divulgação dos apoios, e também por via de estruturas de aconselhamento e auxílio.

De acordo com os três profissionais, as áreas de actuação estão num bom caminho, ao demonstrarem uma visão abrangente e multidimensional do problema, da origem e das soluções. A questão da informação, em particular, é algo que consideram crucial, dada a experiência com os programas Edifícios Mais Sustentáveis e Vale Eficiência, nos quais se observou “muita falta de informação”, ilustra João Pedro Gouveia. “As pessoas não sabem o que fazer em termos de medidas. Têm problemas digitalmente e de acesso. Não sabem que existem [os avisos]. Não conseguem perceber determinadas coisas.”

“Misturam-se medidas de consumo com medidas de reabilitação”

Helder Gonçalves é, no entanto, crítico em relação àquilo que diz ser o “principal pacote de medidas”. Salvaguardando que todas as medidas “têm uma razão de ser”, o director do LNEG diz que o foco na eficiência energética é “um bocado chocante” quando se sabe que a qualidade das habitações é um dos principais problemas e que as pessoas em pobreza energética são pouco consumidoras. “Há uma grande percentagem de portugueses que não tem capacidade de ter nem sequer o kilowatt, muito menos o kilowatt hora”, diz, vincando que não se podem misturar medidas de consumo com medidas de reabilitação dos edifícios para melhoria da qualidade da envolvente, do ambiente interior, da ventilação. “As casas [em piores condições] precisam, em primeiro lugar, de ser reabilitadas. Têm infiltrações, têm bolores. Têm um impacto na saúde das pessoas enorme. Isso é o primeiro passo. E não tem que ver imediatamente com a eficiência energética. O passo da energia vem a seguir”, e, quanto a esse último, a primeira perspectiva deve ser substituir os equipamentos que geram consumos energéticos mais substanciais e prioritários nos agregados em pobreza energética – aqueles que estão na cozinha, como fornos, frigoríficos, arcas, ou os relacionados com iluminação ou com aquecimento de águas sanitárias, defende. “Há uns anos, houve um estudo numa ilha açoriana em que [se observou que] a principal medida, e mais eficaz, tinha sido o governo açoriano oferecer uma arca congeladora nova de classe A à população, porque os equipamentos antigos, obsoletos, gastavam o dobro.”

Para Helder Gonçalves, “falta um planeamento mais inteligente ou, pelo menos, mais fino e preciso”, com esta diferenciação e hierarquização das medidas bem “perceptível nos programas de apoio”. Mas ter medidas bem estruturadas e sequenciadas não chega. Nas palavras de Islene Façanha, “a estratégia de actuação peca pela ausência de efectivação das medidas, da descrição dos resultados esperados mais concretamente. Falta delinear a metodologia e cronologia e atribuir responsabilidade ou áreas de actuação às entidades mencionadas em cada medida”. É necessário clarificar como é que cada medida se liga aos objectivos e aos mecanismos de apoio e financiamento; caso contrário, “as políticas e medidas ficam difíceis de aplicar”, comenta Helder Gonçalves, que se mostra céptico em relação à “eficiência da execução” da ENLPCPE. Para a coordenadora de projectos da ZERO, é preciso ainda ligar a proposta da estratégia à Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE), “principalmente nas medidas de formação técnica e de sensibilização da população presentes”.

“Há uma grande percentagem de portugueses que não tem capacidade de ter nem sequer o kilowatt, muito menos o kilowatt hora. (…) As casas [em piores condições] precisam, em primeiro lugar, de ser reabilitadas. (…) Isso é o primeiro passo. E não tem que ver imediatamente com a eficiência energética. O passo da energia vem a seguir.”

Helder Gonçalves

Objectivos e monitorização

Embora a ENLPCPE 2022-2050 seja uma estratégia de longo prazo, João Pedro Gouveia ressalva que não se pode cair na tentação de não se definirem objectivos de curto prazo como “defesa política”, tendo em conta que essas metas traçam um caminho mais objectivo e concreto e facilitam a avaliação das medidas e do progresso. É verdade que a proposta dos ministérios define quatro objectivos nacionais de curto prazo, no entanto, o investigador diz que estes permanecem “soltos” e “vagos”. “Usam-se frases como promover, dinamizar, desenvolver ações, sensibilizar, implementar. Mas implementar quantas? O quê? Onde? Quando? Com quem? Porquê?”, questiona.

Essa “falha” é logo observável nas primeiras linhas desta secção do documento. O primeiro objectivo fala de “atribuir, pelo menos, 300 milhões de euros de fundos europeus até 2025 para a concretização da reabilitação e de acções de eficiência energética nos edifícios residenciais”, o que, diz, “não é um objectivo; é um meio”. Islene Façanha apoia este apontamento, adicionando que isto não assegura uma utilização eficaz “nem garante a produção de impactos positivos”. Ademais, os dois responsáveis denunciam que o próprio valor avançado é criticável por ser insuficiente perante a dimensão do problema, considerando que a ELPRE identifica como sendo necessários 110 mil milhões de euros para renovar o parque edificado português e uma análise do CENSE aponta para 92 mil milhões de euros só para a componente passiva dos edifícios. João Pedro Gouveia sublinha ainda que este montante também não é dirigido unicamente à pobreza energética. “Os 300 milhões de euros dividem-se em três programas. O Edifícios Mais Sustentáveis [pelo modelo de concessão] está longe, mas muito longe, de ser para pessoas em pobreza energética. Logo aí, 135 milhões de euros não deviam estar nesta fotografia. (…) O aviso para as CER [dotado de 30 milhões de euros] pode ter, mas num valor muito minoritário, talvez, alguma ligação a pessoas em pobreza energética mais vulneráveis. (…) O Vale Eficiência [com 162 milhões de euros] é o mais próximo de [estar dirigido à] pobreza energética. Não se pode dizer que 300 milhões de euros tenham sido [alocados] para a pobreza energética.”

O segundo objectivo de curto prazo estabelece como meta atribuir, até 2025, 100 mil vales do programa Vale Eficiência, cada um com o valor de 1 600 euros (IVA incluído), às famílias em situação de pobreza energética de modo a melhorar o desempenho energético das habitações. Quanto a isto, Helder Gonçalves relembra que é importante perceber o que se está a incentivar, a quem se dirige e melhorar a informação e o aconselhamento em torno dos apoios. Neste momento, considera que estes vales podem ser “importantes”, mas, mesmo assim, são para “um conjunto de famílias ou indivíduos que já têm alguma capacidade financeira” porque os mais vulneráveis dificilmente concorrem aos avisos. “Ou os programas são mais generosos ou têm pouca aderência.” Note-se, a este propósito, que, no final de Fevereiro, o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, anunciou a intenção de introduzir várias melhorias no programa Vale Eficiência, permitindo, por exemplo, a atribuição de mais do que um vale na mesma candidatura e dinamizando parcerias com agentes-chave. Esta proposta deverá ser conhecida na totalidade no final de Março.

No terceiro objectivo, lê-se que se pretende “adoptar e disponibilizar um sistema de monitorização da pobreza energética em Portugal, através de recolha, tratamento e disponibilização de informação para promover o desenvolvimento de estruturas locais para o apoio e acompanhamento das famílias em situação de pobreza energética”. A esta questão, prende-se a necessidade de uma clarificação daquilo que se quer atingir especificamente e quando, para que se evite o risco de não se conseguir fazer uma avaliação de impacto e a monitorização nas datas previstas e de se gastarem os recursos a caminhar cegamente, sem se saber se se está melhor ou pior e porquê. “Continua a faltar uma resolução mais fina dos objectivos, mas acho que é um processo de aprendizagem também”, concede João Pedro Gouveia.

Por fim, o documento define como quarto desígnio o estímulo do desenvolvimento de projectos de ACC e CER, através de incentivos aos promotores. Sobre este assunto, João Pedro Gouveia realça que “em teoria” a ideia de não deixar ninguém para trás e de “trazer os consumidores mais vulneráveis para a discussão” é “boa” e “potencialmente relevante”, mas, pela fase inicial em que estas comunidades se encontram, duvida que os primeiros projectos tenham essa vertente. “Acho que não estamos ainda aí, infelizmente. (…) As CER podem ter esse papel, mas não acho que seja no curto prazo para o combate à pobreza energética. É muito ambicioso. Já implementá-las não vai ser fácil… Vamos ver o que vai acontecer neste aviso [para as CER e ACC], mas a parte regulamentar de ter prédios inteiros em acordo não vai ser fácil. Não temos muita experiência em Portugal nesta perspectiva cooperativa e de comunidade.”

O que ainda pode ser melhorado?

Além do que está previsto na estratégia, há algumas sugestões podem contribuir para o sucesso do combate à pobreza energética. Um exemplo mencionado por Islene Façanha e por Helder Gonçalves refere-se à possibilidade de se adoptarem, precisamente, medidas conjuntas. Como diz a analista da ZERO, era importante que o documento reflectisse sobre a “unidade habitacional, cuja unidade mínima é o edifício, e não [se focasse] apenas no cidadão ou agregado familiar, uma vez que a envolvente do edifício é frequentemente apontada como uma das causas para a pobreza energética”. É algo que já se faz no estrangeiro, expõe o dirigente do LNEG, citando as remodelações sistémicas que são feitas na envolvente dos edifícios dos anos 1950 e 1960 na Europa Central. “Temos edifícios comuns que têm dezenas, nalguns casos centenas, de apartamentos, mas os avisos do Fundo Ambiental vêem isto de forma individual ou unifamiliar”, lamenta. Para Helder Gonçalves, encarar este desafio em conjunto podia ser uma medida a adoptar sobretudo no caso dos edifícios de habitação social, “que têm um peso muito grande em Portugal”, e podia ser complementada com outras soluções: “Ao mesmo tempo que se reabilita todo o edifício, pode haver a inclusão de caldeiras comuns ou de um sistema solar comum, por exemplo; e isso, sim, será uma dupla medida não só em termos de melhoria da qualidade de vida dos utentes, mas também nos eventuais consumos energéticos.”

Helder Gonçalves aponta ainda para outra medida que considera ser merecedora de desagregação das restantes. “Nestas medidas todas, devia haver uma que dissesse respeito à água quente solar – da qual já se falou muito (…). O raciocínio é simples: nós gastamos 20 % do consumo energético para aquecer água nas nossas casas; (…) [e] os colectores solares, hoje, têm um preço muito competitivo”, argumenta. Lembrando que Portugal é “dos países com maior radiação [solar] que utiliza menos colectores solares”, ficando atrás “da Grécia, da Espanha, da Itália e até da Áustria”, o especialista defende mesmo que devia haver uma campanha nacional para incentivar a adopção destes equipamentos, cujo impacto é logo sentido. “Aqueles que são identificados com pobreza extrema têm de ser ajudados de modo a terem melhores condições nos seus edifícios, nas suas habitações, e não a comprarem bombas de calor com os Vales Eficiência – isso não diminui o consumo energético porque essas pessoas não podem pagar pela utilização.”

Além disso, Helder Gonçalves acredita que as pessoas não vão mudar substancialmente os seus comportamentos já estabelecidos na forma como reagem ao frio e ao calor nas suas habitações. A propósito da biomassa, que, segundo o inquérito de 2020 ao consumo nos edifícios residenciais em Portugal, é o método mais utilizado, João Pedro Gouveia é apologista de que se deveria abordar, a par das vantagens, as desvantagens, uma vez que podem ter um potencial impacto negativo na qualidade do ar e, por conseguinte, na saúde. Para o investigador do CENSE, este reparo é importante porque “é preciso perceber como é que se vai olhar para a biomassa no futuro”, integrando esta análise nessa visão.

A pensar no futuro, João Pedro Gouveia aborda outra questão central relacionada com a “falta de dados”. “Se queremos ter uma monitorização real das coisas, um dos objectivos da estratégia devia ser mesmo a recolha de dados”, afirma, alertando que os Censos, a cada dez anos, e os inquéritos ao consumo, de cinco em cinco, e sem garantia de representatividade regional, são insuficientes. Nesse sentido, propõe que sejam promovidos inquéritos nas áreas de energia, edifícios, comportamentos e literacia, com a ajuda de agentes da sociedade, e com uma eventual centralização do conhecimento no Instituto Nacional de Estatística ou na Direcção-Geral de Energia e Geologia. “Sendo isto um problema significativo, é preciso [fazer] uma pressão ou promoção perante várias entidades [a propósito] da importância de uma recolha de dados regular”, bem como “alocar dinheiro para isto”. “Conhecimento é a base para se fazerem as coisas e para se perceber o impacto que têm. Portanto, é muito importante para o diagnóstico do problema nas várias escalas, nas várias regiões, e para a monitorização”, realça.

Este ponto de vista desencadeia outro pensamento. Para o investigador, o documento podia também explicitar as “limitações actuais” da estratégia, criando, assim, “directrizes” para que se trabalhe numa resposta a esses condicionalismos cuja resolução é prioritária. “Nos próximos três anos – não há volta a dar –, temos de olhar para as métricas, para os indicadores, para os dados, para as regiões, porque [a pobreza energética] é um problema regional diferenciado, para os diferentes tipos de consumidores vulneráveis – só idosos, só pessoas com problemas de saúde, só pessoas com incapacidade física, migrantes”, elabora. E, para isso, continua, é preciso aprofundar estes temas, ter uma equipa de trabalho, capacitar técnicos e especialistas para se criarem “novos indicadores, novos cálculos” adequados ao contexto português.

“A estratégia de actuação peca pela ausência de efectivação das medidas, da descrição dos resultados esperados mais concretamente. Falta delinear a metodologia e cronologia e atribuir responsabilidade ou áreas de actuação às entidades mencionadas em cada medida.”

Islene Façanha

Islene Façanha replica a mensagem, enfatizando que devem ser concretizados, no curto prazo, estudos mais aprofundados para identificar e criar zonas de acção prioritária, acomodando as variabilidades “fruto de um zonamento climático e de tipologia de construção variados de região para região”, pois “o problema não será resolvido com uma única táctica”. Quanto a isto, João Pedro Gouveia é perentório ao dizer que, para resolver o problema, é preciso também mobilizar uma “rede alargada de vários agentes” a actuar em várias frentes e a contribuir em diferentes escalas. A nomeação maioritária de entidades ligadas ao Estado é, aliás, uma “falha”, na sua opinião, não reconhecendo o papel das universidades, das ONGs, das associações e de outros agentes que “podem ter um papel catalisador”.

Acreditando que, apesar das fragilidades, a estratégia é “um bom primeiro passo para uma reflexão e para começar a actuar no tema”, Islene Façanha apela a que avance urgentemente. João Pedro Gouveia acrescenta que, agora, é “preciso pôr as mãos na massa”, corrigindo o possível e publicando a estratégia rapidamente para, depois, se dar sequência ao trabalho que ainda tem de ser feito. “Não se pode implementar tudo ao mesmo tempo. Vai-se melhorando. Há coisas que podem não vir a funcionar. É preciso ir testando”, refere, mas deixando o alerta que, “numa próxima versão, já é expectável haver a inclusão de outras dimensões.”     

Mecanismos de apoio

Para ditar o sucesso desta estratégia, é também incontornável a questão dos mecanismos de apoio e financiamento para iniciativas que visam a melhoria do desempenho energético das habitações e do acesso a fontes de energia renovável. Quanto ao financiamento, a ENLPCPE 2022-2050 nomeia, a nível nacional, o Fundo Ambiental, pelo financiamento a fundo perdido de projectos seleccionados decorrentes das candidaturas aos vários avisos, o Plano de Promoção de Eficiência no Consumo, pelas acções de apoio à eficiência no consumo energético e pelas medidas de informação e divulgação, e o Banco de Fomento, pelo papel na criação de incentivos financeiros que facilitem investimentos públicos e privados. Já no panorama europeu, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), patente no Next Generation EU, é um aliado na concretização de investimentos e reformas em matéria de reabilitação de edifícios, a que dedica 610 milhões de euros, e de reforço do parque habitacional público e de mitigação de situações indignas em famílias com menores rendimentos, vertente que engloba cerca de 2,7 milhões de euros, incluindo uma componente de empréstimo. Ademais, o documento estratégico menciona o contributo do PRR noutras dimensões que ajudam a combater a pobreza energética, por exemplo, nas questões de vulnerabilidades sociais e de coesão territorial. A estratégia refere ainda o papel do Portugal 2030 enquanto fonte de financiamento durante esta década para a descarbonização, abrangendo a transição energética, e o InvestEU50 por facilitar a mobilização de financiamento público e privado até 2027 oferecendo uma garantia do orçamento da UE. Já os mecanismos de apoio previstos incluem desde programas de empréstimo, desenhados em conjunto com o sector bancário, com foco na eficiência dos recursos e na gestão de resíduos urbanos e na abrangência de diferentes tipos de consumidores, até uma política fiscal verde que favoreça produtos e serviços com melhor desempenho ambiental, incentivando a eficiência energética e as energias renováveis.

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 146 da Edifícios e Energia (Março/Abril 2023).