De uma conversa informal com o Eduardo de Oliveira Fernandes nasce uma retrospectiva e uma reflexão tão próprias e tão marcantes de uma pessoa que dispensa apresentações. O momento obriga-nos a pensar a energia, particularmente, os seus usos, isto é, a suficiência e a eficiência energéticas. Onde se perdeu a estratégia e como emendar a mão?
Em certa medida, Bruxelas aponta estratégias desadequadas ao nosso país que nos têm prejudicado?
Bruxelas não tem ajudado – e digo isto com toda a autoridade moral e convicção científica e ética. A Comissão Europeia (CE) tem exercido um evidente ´colonialismo` tecnológico sobre países como Portugal lamentavelmente assumido (consentido) pelas nossas autoridades e especialistas. O nosso clima não tem nada a ver com o clima da maioria do território da União Europeia (UE). E, portanto, a abordagem tem nuances no que respeita à climatização. Isto é, tem ‘nuances’ não só de números, mas também de estratégias. Por exemplo, alguém que haja feito Termodinâmica com nota positiva saberá explicar o que é um net zero energy building? Isso não existe. É uma aberração física… Pois há muita gente com responsabilidade em Portugal que usa essa expressão sem hesitar, porque foi introduzido pelo CEN e vulgarizado pela CE. A energia na CE teve sempre à sua frente pessoas conotadas com a energia nuclear. Os Directores-Gerais de Energia foram durante muito tempo nuclearistas espanhóis, por exemplo. O próprio director do departamento de energias renováveis da Direcção-Geral (DG) de Energia foi, por um certo período, um português, que era e, creio que ainda é, um nuclearista. Há aqui toda esta contaminação que leva a que depois as políticas sejam afectadas. Agora, a electricidade poderá vir a ser mais barata e os cidadãos portugueses poderão instalar mais ar condicionado, quando nem a saúde nem o conforto o determinam no clima de Portugal. Só a incompetência política e o desmando técnico vão criar mais uma falácia, como a dos edifícios ‘net zero’. Ou como as ‘smart cities’ com a inteligência da tecnologia, mas não a dos autarcas, infelizmente. Precisamos das duas inteligências (sabedorias) mas a segunda, ‘first’. Recentemente, ouvi um membro do Governo falar em ‘produção de energias renováveis’. Como é possível? Ninguém produz energias renováveis! Quando usamos esta linguagem ao nível do topo nada poderá correr bem. Em termos de terminologia energética, tão relevante para o ambiente, os actores do sector não têm ajudado nada. Isto, sem nunca esquecer essa chaga da Parque Escolar, sobre a qual uma ex-ministra da Educação teve o deslize de dizer que a Parque Escolar foi uma “festa” para os arquitectos. Uma festa? Francamente!
E o que se passou a seguir?
Depois de 2002, a DG Energia tem atravessado um deserto de competências e de estaturas para o lugar. Se fizéssemos uma monografia sobre os Directores-Gerais de Energia entre 2002-2018, teríamos um panorama confrangedor em termos técnicos e, até, sem querer generalizar, éticos. Tem persistido o domínio cultural da electricidade vs. energia; da energia-produção vs. conversão energética. Tem-se alimentado a imbecilidade de dizer que ‘se produz energia’ quando a ‘energia’ não se produz: transforma-se de A em B. E, muito menos, se produzem renováveis. Produz-se electricidade (ou energia eléctrica) a partir de recursos naturais, que também são energia, mas se chamam vento, petróleo, gás natural, Sol, etc. Estamos, agora, a celebrar os 20 anos da Expo. Era interessante saber se alguém está preocupado com o que ali se fez em termos de energia e perceber o que mudou em relação ao que estava programado para aquela zona. Quando falamos em smart cities, repare-se que, em Portugal, não houve ainda outra experiência que o fosse tão consistente e prometedora como a Expo 98. Se o não foi em execução ao longo do tempo, que ao menos não se despreze o que foi planeado ou lançado para os edifícios, na distribuição de calor e de frio, etc. E a que importância deu a CM de Lisboa ao assunto?
Como justifica que isso aconteça?
Nós temos o conhecimento e a tecnologia, mas, no fundo, vivemos no novo riquismo e no exibicionismo em banho de ignorância petulante. Quando apareceram os colectores solares, nos anos 80, quem os instalava eram as pessoas com capacidade financeira. Havia casos em que os colectores solares eram colocados em cima dos telhados como ‘bailarinas’. Se essas pessoas soubessem que uma variação de 25 graus em relação à perpendicular ao Sol ou à orientação Sul tem uma redução de eficiência na ordem dos 10 %, talvez, “colassem” os colectores à inclinação do telhado porque isso não arruinava o rendimento e ajudava à estética e, consequentemente, à sua aceitação socio-cultural. Tudo isso é confrangedor. Devemos atacar as rendas excessivas ligadas à energia, sim, mas temos muitas outras coisas igualmente prioritárias em termos conceptuais que deviam ser resolvidas e que são muito mais estruturantes e promissoras no futuro. Mas acaba por ser a política baixa a retardar a política moderna, culta e transparente. As rendas amanhã mudam independentemente de quem lutar contra elas. Esse é o desígnio da generalização das renováveis. Mas, se é assim, temos também, e em paralelo, a obrigação de só utilizar a energia de que precisamos. E é aqui que surge a tripla mágica: suficiência energética, eficiência energética e, ‘overhall’, racionalidade energética. O mais doloroso é que haja problemas de natureza estratégica que a nossa comunidade política no domínio da energia parece ainda não ter percebido. E tanto é assim que uns até foram à procura de soluções em Marrocos e outros insistem em ‘produzir energias renováveis’. ‘Perdoai-lhes, senhor’, que não sabem que a energia não se produz. Converte-se. Ela pré-existe para o que é preciso. Não é droga nem remédio que crie habituação. O limite deverá estar na ética do uso dos recursos e não no oportunismo bacoco de políticos ignorantes e de profissionais no âmbito do edificado tão amorais como os ‘macro-produtores’ de electricidade.
“Dizer-se que se produz energia, como diz a generalidade da comunidade mais sofisticada (?) da sociedade portuguesa, como engenheiros, economistas, juristas, jornalistas, etc., recorda a ‘boutade’ dos tempos da assistência alimentar americana a Portugal dos anos 50: ‘quem dá o leite é a vaquinha, a ovelhinha e o senhor Abade da Mata Mourisca mas, é em pó…’ Ou seja, produz-se energia eléctrica, como se produz energia-calor quando se acende o fogão e energia motriz quando se arranca o carro. Nada disso é produzir energia!“.
O que temos de fazer já para amanhã?
Temos de produzir urgentemente o Livro Branco da Energia para Portugal que conduza 1) a uma carta magna da energia do quotidiano, isto é, partindo da procura para a oferta. A da procura em apoio à produção de bens e serviços, incluindo a gestão de todo o edificado e da mobilidade com os respectivos confortos e impactes ambientais ‘at large’; 2) a identificação do desígnio colectivo: aumentar a riqueza do país e o bem-estar dos cidadãos valorizando os nossos recursos naturais e humanos; e, nesse quadro, 3) identificar o padrão do conforto-saúde incluindo o espaço edificado como extensão do nosso clima e não contra ele… 4) e passar a ter uma estratégia de conforto nos edifícios, tendo em conta o clima e a suficiência energética antes da eficiência energética.
Quando fala em carta magna, num desígnio, fala de uma estratégia transversal a todos os edifícios também?
Estou a falar, sobretudo, ao nível do construído. Mas do que precisamos verdadeiramente é de qualquer coisa próxima a uma ‘declaração de valores’ no que diz respeito à utilização da energia. Temos de ser claros: a energia é precisa, para quê e como? E, então, essa que é precisa vem de onde? É sempre prejudicial ao ambiente e ao país e, por vezes, será crime andar à procura da energia eléctrica para climatizar espaços que, na maioria dos casos, não precisam ou não deveriam precisar de ser climatizados porque o nosso clima é tal que, se não houver sobre-ocupação humana, a temperatura elevada do ar não é acompanhada de simultânea elevada humidade relativa. Por isso, uma sombra fresca basta. Não é que a climatização e o ar condicionado não façam falta ou não devam ser usados em condições de grande ocupação humana. Devem, claro, mas a sua utilização é muitas vezes desnecessária e, em qualquer caso, nunca na intensidade do equipamento que já vemos neste nosso ‘pobre’ Portugal. Depois de compreendermos isso, temos a outra vertente a corrigir que é a da ‘não embricação’ do urbanismo e do projectos dos edifícios em atenção ao ciclo solar durante o dia e no computo anual. Os arquitectos são agnósticos em relação ao Sol! Ou será que é o Sol que os cega? Nos anos 60, apareceu em Lisboa uma revista, creio que promovida por arquitectos que trazia nas páginas centrais a fotografia do Monumento aos Descobrimentos. Sem fazer qualquer juízo sobre a justeza do comentário, retomo o grande título em parangonas sobre a imagem: ´eis um monumento para dizer aos vindouros que os portugueses do séc. XX também não sabiam fazer estátuas’. Eu, no que diz respeito à energia e à climatização, subscrevo o desabafo, agora e aqui!
Temos uma cultura energética que despreza o conhecimento e ignora a ética?
Há cerca de 20 anos, sugeri à Ordem dos Engenheiros que se criasse um grupo interespecialidades sobre ‘conservação de energia’. E foi proposto. Apareceu a notícia na capa do Boletim. Naquela altura, ainda se falava em conservação de energia, o que está correcto, mas a palavra ‘conservação’, tal como ‘produção’, induz em erro porque não se trata de guardá-la como quem conserva algo no ‘frigo’ em casa. A conservação tem um objectivo climático de soma constante (se houver alterações climáticas, é porque não houve conservação algures…). Mas o tal grupo não foi aprovado com base no argumento de que não era estatutário. É a marca do percurso normal da engenharia dominante na Ordem. Estruturas sim, para que não caiam. Betão? Perfeito. Mas e os outros valores? Quem combate o crime do pladur como revestimento das paredes interiores num clima como o português? Se fosse em Cantão, na China, agora, em Portugal…! Trata-se de um crime, provavelmente, sem culpa, por ignorância e, seguramente, algures, por falta de ética. ‘Pladur’ só por fora ou em edifícios que assumem ar condicionado por necessidade (escritórios, estabelecimentos comerciais, etc.). Em habitações, a parede em contacto com o interior deve, isto é, não pode deixar de ser maciça para ‘armazenar’ o calor por inércia térmica na alternância dia/noite.
Refere-se ao papel da Engenharia Civil?
Quando falávamos em Engenharia, a Civil teve uma presença quase hegemónica em Portugal e, por isso, uma enorme responsabilidade nos erros de construção em vigor… Como se sofre ao ver as imagens de edifícios a serem reconstruídos em Pedrógão Grande! Se um pequeno piquete de técnicos ‘arejados’ superintendesse ‘aquilo’. Ainda não somos suficientemente evoluídos. As fotografias publicadas nos jornais disso dão conta! Pobre Portugal, que parece que tens horror em escrever direito por linhas tortas. Também na gestão da coisa técnica… Entretanto, as coisas mudaram com a energia e, hoje, a Engenharia Electrotécnica tem muita força e ocupa-se inclusivamente da Eng. Eléctrica, a que chama, numa abordagem também de vistas curtas, a ‘energia’, presumindo que o adjectivo ‘eléctrica’ seria aqui dispensável. Não é assim. E não deve ser assim, porque nem a energia é toda eléctrica nem a energia que mais nos interessa, que é a do conforto e da saúde, é necessariamente eléctrica…. É que a energia não se produz. Apenas se converte, em geral com grandes perdas, com a honrosa excepção da energia hidráulica que se consegue converter em electricidade com rendimentos de quase 100 %. O património de energia do planeta mantém-se. Foi herdado e é constante.
Eduardo de Oliveira Fernandes, Professor Emérito do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), ex-secretário de Estado (Ministro da Economia para a Energia e Inovação) e ex-secretário de Estado do Ambiente.
Há falta de rigor nestas matérias. Que outros conceitos é preciso clarificar?
Aproveito para reforçar o conceito fundamental da suficiência energética. Vale-me que este já foi assumido pela Agência Internacional da Energia. Quando temos uma pequena horta no nosso quintal, existe uma certa autossuficiência alimentar. Não consideremos aqui a faceta económica, mas estritamente a ambiental. Quando falamos de ‘produção de energias renováveis’ e quando falamos de ‘eficiência nos edifícios’, esquecemo-nos de que os edifícios têm um potencial enorme para eles próprios gerirem a energia-calor do Sol que entra. Isto, mesmo antes de terem sistemas de climatização. Se orientarmos as janelas nas direcções desaconselháveis e instalarmos orgulhosamente ‘pladur’ nos revestimentos interiores, o ambiente passa a ser nosso inimigo; no Inverno com as primeiras e no Inverno e no Verão com o segundo. O edifício do futuro exige uma arquitectura ciente e consciente e um construtor esclarecido e ético, aí, e as potências eléctricas/mecânicas podem descer. O benefício está no aproveitamento do aquecimento do Sol no Inverno e da frescura das paredes interiores da sala e dos quartos no Verão, mantidos sombreados face à eventual incidência do Sol. É toda uma revolução cultural que se impõe. Isto, tendo a certeza de que ninguém parece entender. Mas o mundo é muito grande. Desde logo, temos a China. Num relatório para o governo chinês que tive a honra de coordenar em nome da CE, foi introduzida esta terminologia. A alegria dos interlocutores da Agência da Energia da China quando viram a sugestão da suficiência energética foi exuberante. Diziam eles: “nós aplicamos a suficiência: no Inverno, não aceitamos que a temperatura em casa seja mais de 20ºC e, desta forma, sugerimos que as pessoas usem implicitamente pulôveres ou agasalhos equivalentes. Assim, ganhamos uns graus de aquecimento. E, no Verão, o ar condicionado serve para retirar a humidade, mas a temperatura em casa não vem abaixo dos 24/26ºC”. Parece um assunto “chinês” para muita gente, mas é o caminho. Em Portugal, não é preciso retirar a humidade já que a humidade relativa baixa drasticamente com a subida da temperatura. E, por isso, como acontece em alguns cantões suíços (coitados!), a instalação de ar condicionado deveria precisar de uma licença própria. Rigorosamente! Não, porque não seja adequado mas, ao ser um sinal exterior de riqueza, é necessário que se pague como extra. Agora, instalar ar condicionado num quarto a poente numa construção sem qualquer isolamento é como ir buscar água à fonte com uma balde furado. Isso não! E com isto não estou a falar só de energia, estou a falar de saúde, de conforto e de bem-estar. O dever do Estado é assegurar água potável em quantidade e qualidade suficientes. O mesmo se aplica ou deveria aplicar para energia. O ar condicionado privado deve pagar imposto! Não porque o Estado precise desses impostos, mas porque quem usa o ar condicionado deve receber um sinal da comunidade. Isto, claro, quando o Estado tiver a ética de sombrear os seus edifícios para reduzira as cargas de ar condicionado. Voltamos à Parque Escolar. Há bons exemplos com mais de 40 anos (Hospital Universitário de Coimbra, na altura por iniciativa da Direcção-Geral das Construções Hospitalares), mas há, sobretudo, maus exemplos em edifícios públicos e privados.
Vê, então, o quadro dos usos da energia nos edifícios como um retrocesso?
Vejo como um descalabro resultante de três factores nefastos: o complexo miserabilista dos cidadãos; a pouca universalidade cultural das profissões em Portugal, cujos agentes são, em geral, ambiciosos, incompetentes e com falta de ética; e a ausência de uma entidade de gestão moderna, lúcida e competente! Estamos a usar energia e a investir em equipamentos de uma forma totalmente irresponsável. Veja esta loucura das smart cities. No âmbito da Agência de Energia do Porto, fiz um plano de racionalidade energética para Câmara e quando esse relatório chegou a Bruxelas, o Comissário Europeu convidou-me para falar na conferência anual seguinte relacionada com estes temas. Depois, mudaram as equipas na Câmara, que chegaram reféns da ‘tecnologia’. Começaram por colocar ‘wi-fi’ nos autocarros, o que é espectacular, mas não substitui nada. A eficiência agora vai atrás das smart cities e da mobilidade eléctrica. Coitados, não sabem o que fazem. Não é que a azeitona não seja boa. Mas não é seguramente a refeição… Acontece que temos de pensar na energia numa outra lógica, que é a lógica das pessoas. Vivi algum tempo na Suíça, onde os autocarros, depois do pôr do sol, “mirravam”. Eram mantidas as mesmas linhas, mas com autocarros mais pequenos. Mas mais: há os cantões onde a instalação do ar condicionado carece de uma licença. E não é para ‘chatear’. É porque, não sendo precisa, tal passa a ser sinalizada em termos ambientais.