Nos edifícios públicos, há ainda “muito trabalho por fazer” no que respeita à eficiência energética, considera António Cunha Pereira, CEO da Ecoinside. A empresa especializada em eficiência energética e energias renováveis tem levado a cabo projectos em edifícios de ensino, cujos resultados denunciam um enorme potencial de poupança no parque edificado público do país. Já no privado, com as facturas energéticas a disparar, o gestor teme que as empresas que não aproveitem as medidas lançadas pelo Governo para atenuar os efeitos da subida dos preços da energia para reforçar a sua autonomia energética tenham sérias dificuldades em continuar a funcionar em 2023.  

No que se refere ao desempenho energético, que retrato traça dos edifícios públicos portugueses?

Diria que estamos mal – como estamos há muitos anos – e este é um problema que está identificado. Os dados que existem mostram que, em Portugal, os edifícios, no seu todo, representam 30 % do consumo de energia – mas não sei se existe essa informação desagregada para os edifícios públicos. Tivemos, em 2011, o programa ECO.AP, que estava enquadrado no Código de Contratos Públicos (CCP), porque tinha algumas especificidades, nomeadamente relacionadas com o modelo das empresas de serviços de energia (ESCO/ESE), mas foi algo que não saiu realmente do papel, com excepção de um ou outro projecto piloto.

António Cunha Pereira_Ecoinside

O modelo complicou o avanço dos projectos?

O modelo ESCO é muito usado nos Estados Unidos, em que as empresas privadas fazem investimentos em medidas de eficiência energética ou de energias renováveis para autoconsumo em nome das entidades públicas, que normalmente não têm grande capital para investimento. Em Portugal, esse modelo tem várias barreiras por causa do CCP, que impede que este tipo de contrato seja fácil.

Na altura, as críticas das empresas estavam também relacionadas com o risco assumido, que estava maioritariamente do lado das ESE.

Sim, porque a grande dificuldade de um edifício de serviços, comparativamente a uma indústria ou hotelaria, é que o factor humano tem um impacto muito grande no consumo de energia. Enquanto, numa fábrica, o consumo de energia é previsível, assim como o impacto que determinado investimento vai ter, num edifício de serviços, temos 1001 variáveis – desde os setpoints de cada pessoa para o ar condicionado ao facto de a pessoa abrir ou não a janela ou de o edifício ser utilizado para os fins para os quais foi pensado.

Um bom exemplo é o edifício da Caixa Geral de Depósitos, que agora faz parte dos espaços do Governo: imagine que existe um contrato ESCO para um determinado investimento; com certeza, o espaço, agora, vai ter uma utilização diferente do que se [acolhesse] apenas funcionários da Caixa Geral de Depósitos. A dificuldade tem muito a ver com o impacto da decisão individual de cada utilizador e da utilização do edifício em si no desempenho [energético] e esse foi um grande factor pelo qual as empresas se começaram a desinteressar.

Isso acabou por ser um entrave para melhorar o desempenho energético dos edifícios do Estado?

Sim, porque, sinceramente, olhando para [o estado do edificado em] 2011, e já na altura se sabia o quão ineficiente eram os edifícios públicos, eu diria que 95 % dos edifícios [estão] no mesmo ponto. [Ou pior] Sendo que têm mais dez anos em cima e questões como perdas térmicas por janelas e portas, em alguns edifícios, estarão ainda piores.

Portanto, muito há a fazer, o que não quer dizer que não possa ser feito – é apenas um balanço do programa, que penso que era bem pensado e que tinha caminho para andar; mas ficou um pouco na ideia. Agora, vai ter de ser feito; disso não há dúvidas. Estamos mal, mas não podemos esperar mais uma década para o fazer.

Até porque há imposições europeias e cabe ao Estado dar o exemplo. É importante que assim seja?

Exactamente. Primeiro, e antes de chegar à questão do exemplo, é importante porque, de facto, o Estado tem um património edificado muito relevante e, tomando a decisão de fazer esta renovação dos edifícios numa perspectiva de ganhos e de eficiência energética, isso tem um impacto relevante naquilo que é o consumo de 30 % de energia que os edifícios, como um todo, consomem. Depois, porque, ao dar o exemplo, o Estado pode também cobrar.

Isso não acontece?

Existe a obrigatoriedade da certificação energética, mas o Estado, não dando o exemplo na implementação das medidas que decorrem como sugestões da certificação energética, também não consegue, depois, de alguma forma, ter um papel mais exigente junto do resto do edificado. Dos certificados energéticos que foram emitidos entre 2014 e 2020, só 22 % é que tiveram certificação entre “A+” e “B”. Tudo o resto, e estamos a falar de um volume de 78 % dos edifícios, tiveram C ou menos.  Isto é bastante representativo do trabalho que há para fazer.

“Quem está mais próximo da utilização do espaço está mais sensível e mais disponível para fazer este tipo de alterações. Não é tanto uma questão entre Administração central e local, mas [prende-se com o facto de] que as pessoas que estejam envolvidas desde o momento zero para que o projecto aconteça sejam as pessoas que estão a gerir o edifício ou que haja aí alguma lógica de proximidade.”

Sente que há procura por parte das entidades públicas para fazer essa melhoria da classe energética através da implementação das melhorias?

Sobre isso, posso dar o exemplo de três projectos. Um, com a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que custou cerca de 335 mil euros – co-financiados pelo PO SEUR, Portugal 2020 e União Europeia, através do Fundo de Coesão –, em que fizemos uma auditoria para saber o ponto de situação, qual a classe energética do edifício, e [depois] elaborámos um plano para que se conseguisse subir a classificação em dois níveis. Implementámos as várias medidas, desde a alteração da caixilharia à substituição de mais de 3 000 lâmpadas convencionais por lâmpadas LED, que é uma área que parece óbvia, mas [na qual] ainda há tanto para fazer. Colocámos também uma central fotovoltaica para autoconsumo, com cerca de 400 painéis instalados, o que permitiu que o edifício da Faculdade de Letras ficasse 88 % mais eficiente e a factura anual do edifício fosse reduzida em 50 mil euros.

Outro projecto foi uma escola secundária da Parque Escolar em Vila Nova de Gaia, no qual fizemos uma alteração da iluminação nas salas de aula e nos corredores que permitiu uma poupança anual de 8 600 euros de energia eléctrica. Ou seja, conseguimos poupar a energia equivalente ao que 14 famílias consomem por ano. Neste caso, [o investimento] foi um pouco mais de 70 mil euros e foi com base num concurso da Parque Escolar. Se pensarmos em todas as escolas do país, temos aqui um potencial enorme, e só ao nível da iluminação, que é o factor mais relevante, uma vez que há escolas que não têm climatização.

Outro exemplo é a Escola EB 2/3 Ciclo Dr. João de Barros [na imagem, em destaque], na Figueira da Foz, que juntou em consórcio a Ecoinside, a empresa local CIE Plasfil, o município da Figueira da Foz e a Scales Ocean. Esta escola foi bastante afectada pela tempestade Leslie, e a CIE Plasfil, que é nossa cliente, lançou-nos o desafio para que, na reabilitação do pavilhão gimnodesportivo, que iria necessitar de uma cobertura nova, fosse instalada [também] uma central fotovoltaica. Fizemos esse projecto em 2019 e, até à data, há momentos do dia em que a escola tem quase 90 % de autonomia energética e já permitiu reduzir a emissão de 45 toneladas de CO2. Estamos a falar de 100 painéis fotovoltaicos. Portanto, diria que qualquer escola que tenha um pavilhão gimnodesportivo pode fazer algo semelhante. Se pensarmos nos milhares de escolas que há em Portugal [há um grande potencial de poupança].

Quem está mais sensibilizado para o tema da eficiência energética: o Estado central ou as autarquias?

Diria que quem está mais próximo da utilização do espaço está mais sensível e mais disponível para fazer este tipo de alterações. Não é tanto uma questão entre Administração central ou local, mas [prende-se com o facto de] que as pessoas que estejam envolvidas desde o momento zero para que o projecto aconteça sejam as pessoas que estão a gerir o edifício ou que haja aí alguma lógica de proximidade.

O programa ECO.AP criou o perfil do Gestor Local de Energia (GLE). São esses técnicos que fazem a diferença?

Sim, faz toda a diferença. E essa foi outra das limitações que o programa trouxe inicialmente. As entidades públicas não tinham pessoas com formação para poderem ser esses GLE.

Não pode ser qualquer pessoa, tem de haver um perfil, é isso?

Sim, tem de haver uma formação de engenharia e um curso específico, e há muitas unidades públicas que não têm ninguém nos seus quadros que seja adequado. Imagine um edifício da Segurança Social, à partida, não terá essa competência. Essa foi também uma das barreiras; as entidades tinham interesse, mas não tinham ninguém para ser GLE. Ao longo dos anos, isso foi sendo ultrapassado, porque as entidades, de uma forma ou de outra, foram criando esta figura internamente. E diria que esse é o ponto de contacto certo para que estes projectos possam acontecer; é alguém que percebe do assunto, que tem o problema mais ou menos identificado e até quantificado, logo, é através delas que as coisas podem realmente acontecer.

“Temo que as empresas que não aproveitarem este momento, durante este ano em que a isenção das redes está em vigor, para encontrar soluções para terem uma autonomia energética relevante possam não conseguir continuar a funcionar em 2023.”

O conforto faz parte das prioridades nestes projectos ou a preocupação é apenas com os custos energéticos?

O conforto térmico está salvaguardado pelas questões regulamentares, mas, mesmo noutras questões [isso acontece]. Veja-se o exemplo que dei da escola em Vila Nova de Gaia: um dos parâmetros que tivemos em conta para a alteração da iluminação foi pensar no que é que uma solução tecnológica nova pode trazer, para além de gastar menos energia. No caso da iluminação, há uma questão que é o flicker, que é um parâmetro que não conseguimos percepcionar porque é uma frequência muito rápida e no qual a luz não é constante; as lâmpadas fluorescentes têm esse efeito, que provoca cansaço. Há soluções LED que já eliminam esse efeito flicker, isso foi tido em conta para o projecto. [Em suma] É perfeitamente possível, num projecto de eficiência energética, para além do custo, que é absolutamente decisivo para que o projecto avance, juntar-lhe questões de ganhos de conforto térmico ou visual.

Vivemos uma crise internacional complexa, onde há uma grande pressão para a independência energética. Que efeito esta situação pode ter, no caso dos edifícios públicos e no mercado em geral, para a adopção de soluções de eficiência energética ou de produção renovável?

Quem tem o preço indexado ao mercado sentiu logo. Temos vários clientes cuja factura, de repente, duplicou, triplicou ou quadriplicou. Posso dar o exemplo de um cliente cuja factura passou de 14 mil euros para 18 mil, depois para 23 mil e agora já vai nos 110 mil euros, o que é algo incomportável. Houve este primeiro impacto e estes clientes começaram a tentar perceber como é que seria possível reduzir os custos com a energia para sobreviverem. Depois, temos uma segunda leva, e é aqui que entram os edifícios públicos, que têm contratos de electricidade com uma renovação que irá acontecer ao longo deste ano – e só aí é que irá chegar a factura real.

Qual poderá ser o impacto estimado?

Temos tentado sensibilizar o mercado, e em particular os nossos clientes, que a factura real pode, não só duplicar, mas triplicar. Houve uma decisão do Governo que, de alguma forma, amenizou esta situação – e que foi importante, mas que penso que não deverá continuar além deste ano – que é a questão dos custos das redes estarem a ser suportados pelo Fundo Ambiental. Isto é, cerca de 50 % da factura que pagávamos na electricidade antes da guerra era redes; [com esta medida] na prática, o Estado como que eliminou 50 % da factura anterior e o aumento que houve na energia propriamente dita que fez com que a coisa ficasse ela por ela. Mas a energia continua a subir para valores inimagináveis e tenho a profunda convicção de que dificilmente, mesmo se o período de guerra passar, voltaremos a valores anteriores.

Temos uma situação difícil pela frente, é isso?

Sim, muito difícil, e temo que as empresas que não aproveitarem este momento, durante este ano em que a isenção das redes está em vigor, para encontrar soluções para terem uma autonomia energética relevante possam não conseguir continuar a funcionar em 2023.

Os problemas nas cadeias de fornecimento e no custo dos materiais levaram ao aumento do investimento necessário para os projectos. Ainda assim, continua a compensar que, neste momento, as empresas e o Estado façam opções por soluções que permitam maior eficiência energética ou soluções para autoconsumo?

Houve, de facto, um aumento no preço final – alterou-se [inclusivamente] um paradigma de há já muitos anos, em que uma central fotovoltaica custaria menos daqui a seis meses do que custa hoje. [Mas compensa] Claramente! Qualquer solução de eficiência energética ou de produção de energia para autoconsumo tem um retorno de investimento em tempos relativamente curtos para que se tenha um racional de investimento. Estamos a falar de paybacks que podem ir dos dois anos, para projectos de iluminação, até aos cinco, em elementos como uma central para autoconsumo.

Há uma questão de capital [cuja disponibilidade] é um problema – estima-se que são precisos 70 mil milhões de euros para reabilitar os edifícios em Portugal e não existe essa disponibilidade do Estado. Penso que [a solução] passa por uma comunhão entre o Estado e os privados, e aqui incluo os particulares individualmente, que podem fazê-lo, por exemplo, através das comunidades de energia renovável (CER).

As CER são uma boa proposta quando pensamos nas cidades?

Sim, as CER são [na verdade] um novo enquadramento legal, porque, tecnologicamente, já eram possíveis fazer. Penso que será um dos caminhos importantes para que se consiga encontrar soluções para aumentar a autonomia energética dos edifícios. Isto porque uma das dificuldades dos edifícios de habitação e/ou de serviços é o facto de terem um perfil do consumo muito irregular; [por sua vez,] uma central fotovoltaica tem uma produção mais ou menos constante e previsível, o que faz com que, se não houver consumo em alguns momentos, de alguma forma, esse excedente vai para a rede, sem retorno para a comunidade que faz o investimento. Mas, ao juntarmos vários perfis de consumo irregulares, ficamos com um perfil de consumo mais regular e isso faz com que o investimento nessa solução tenha um retorno na perspectiva do investimento mais interessante e com todos os ganhos que se têm da produção de energia de proximidade, menos perdas na rede e um retorno directo para as pessoas que estão a consumir energia uma vez que têm acesso a energia mais barata.