Produzir, consumir, armazenar e vender eletricidade renovável. De acordo com a Diretiva das Energias Renováveis (RED II), os quadros regulamentares em vigor nos vários Estados-Membros devem assegurar estes quatro direitos aos autoconsumidores de energia renovável sem que estes sejam confrontados com encargos desproporcionados, e podem ser exercidos pelo cidadão comum, quer individualmente, quer coletivamente, no seio de uma comunidade de energia renovável (CER).

Esta visão europeia, introduzida pelo Pacote de Energia Limpa para todos os Europeus (PEL), veio colocar o cidadão no centro da transição energética, permitindo e incentivando a que este seja um agente ativo no setor elétrico. Soluções como as CER, ao trazerem a transição energética para junto dos cidadãos, contribuem para uma maior consciência ambiental e para o combate à pobreza energética. Para além disso, promovem uma melhor aceitação pública dos projetos de energia renovável, já que criam oportunidades e benefícios para os participantes por promoverem uma crescente eficiência energética nas habitações, e consequente redução da fatura da eletricidade por diminuição dos consumos diretos da rede elétrica de serviço público (RESP).

Uma visão que tem vindo a ser reforçada com a nova ambição climática europeia e com a criação do novo pacote legislativo Fit for 55, que abrange a reformulação e revisão de parte significativa das peças legislativas que integram o PEL para permitir o alcance da nova ambição climática de redução de emissões de gases com efeito de estufa (GEE) de 55% face a 1990. Um dos indícios deste reforço, e com especial impacto ao nível do autoconsumo e CER, assenta na atual revisão da Diretiva de Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD), para a qual a Comissão Europeia (CE) está a avaliar a integração e promoção de edifícios de zero emissões (ZEB), que vão para além dos edifícios de emissões quase-nulas (NZEB), no que à emissão de GEE diz respeito.

Para além disso, a CE está a revisitar os requisitos mínimos obrigatórios de desempenho energético dos edifícios, por vista a que os edifícios tenham uma maior contribuição ao combate às alterações climáticas, uma vez que estes são responsáveis por 36 % das emissões totais de GEE e por 40 % dos consumos energéticos da União Europeia. Medidas como estas serão, certamente, essenciais na promoção das CER, uma vez que, quer para alcance de um ZEB quer para alcance de requisitos de desempenho energético cada vez mais ambiciosos, é necessária uma forte aposta no autoconsumo de energia renovável, e em particular na disseminação das CER.

Toda esta mudança de paradigma que assistimos não constitui apenas uma oportunidade para o consumidor final, mas também para todo o sistema elétrico, por abrir portas à participação de vários agentes nos diversos mercados, incluindo o mercado de serviços de sistema, e à adoção de soluções de flexibilidade, como é o caso da gestão do lado da procura. Todos estes desenvolvimentos ao nível europeu vieram introduzir necessárias reformulações aos atuais mercados de eletricidade e aos regimes jurídicos e regulamentares em aplicação nos vários Estados-Membros.

Portugal, apesar de já ter em implementação um regime específico para o autoconsumo desde 2014, carecia de enquadramento para as CER e para o autoconsumo coletivo (ACC), e foi neste sentido, e com o objetivo de transpor a RED II para legislação nacional, que em 2019 foi introduzido um novo regime jurídico para o autoconsumo. Foi a partir daí, que passou a ser possível a implementação de CERs em Portugal. A definição de CER hoje em vigor caracteriza-a como uma pessoa coletiva, cujos membros ou participantes estejam localizados na proximidade de projetos de energia renovável (FER) ou desenvolvam atividades relacionadas com projetos FER, e cujos projetos sejam detidos e desenvolvidos pela CER.

Uma CER, enquanto entidade detentora de projetos FER, pode transacionar a energia excedente do autoconsumo, podendo esta ser efetuada, quer através de mercado organizado ou bilateral, quer por participação no mercado através de um comercializador por recebimento de um preço acordado entre as partes, quer através do facilitador de mercado.

A forma como as receitas da injeção na rede e venda em mercado, os encargos e a energia produzida são repartidos é identificada pelo regulamento para o autoconsumo de energia elétrica, que vem complementar e permitir a implementação do regime jurídico do autoconsumo. Esta repartição é feita por aplicação de um coeficiente de partilha, que pode ser ou proporcional ao consumo medido a cada 15 minutos no ponto de ligação à rede, ou fixo, sendo a tipologia e determinação/comunicação (estes dois últimos quando fixos) dos coeficientes realizada pela Entidade Gestora do Autoconsumo Coletivo (EGAC).

O novo regulamento para o autoconsumo tornou possível a integração de sistemas de armazenamento em ACC e clarificou o papel de um autoconsumidor no seio de uma CER, podendo este participar enquanto consumidor e/ou enquanto produtor, dependendo do sentido do fluxo de eletricidade medido a cada 15 minutos.

Outra novidade importante do regulamento é a possibilidade da criação de projetos piloto, que visam testar a viabilidade técnica e económica de inovações tecnológicas a enquadrar no setor do autoconsumo ou CER, e que serão alvo de tratamento regulamentar diferenciado nos termos definidos e acordados com a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE).

Contudo, apesar dos positivos avanços e boas práticas já em implementação em Portugal, há que salientar os pontos de melhoria. Nisto, é importante sublinhar que a atual metodologia de partilha proporcional, por incidir de igual forma nos sistemas de armazenamento, impõe uma repartição rígida da eletricidade passível de ser armazenada ou consumida nas várias instalações de consumo e/ou armazenamento, criando limitações aos autoconsumidores na gestão otimizada dos sistemas de armazenamento, impedindo-os de participar livremente nos mercados de eletricidade.

Para além disso, atualmente está prevista a isenção, por um período de sete anos, do pagamento da parcela dos custos de interesse económico e geral na tarifa de acesso às redes a aplicar nas CER, que é um outro importante mecanismo de incentivo à participação. Contudo, a aplicação desta isenção a novos participantes depende da publicação anual de um Despacho por membro do Governo responsável pela área da energia, o que pode gerar incerteza e imprevisibilidade aos modelos de negócio.

Acrescenta-se ainda que para promover a integral participação ativa dos consumidores é importante colmatar barreiras ao nível da adequação e regulamentação do mercado de serviços de sistema, nos quais deve ser dada abertura para a implementação de novos modelos de negócio, e promovido o papel dos serviços de agregação para prestarem serviços de sistema essenciais para a estabilidade, adequação e adaptação da rede elétrica ao novo paradigma energético, de forma custo-eficaz, desbloqueando assim a sua total potencialidade no que será o papel da geração distribuída no futuro.

Estes desenvolvimentos colocam Portugal um passo mais próximo da transposição da RED II no que ao autoconsumo diz respeito, continuando o país num bom caminho e constituindo hoje um exemplo a seguir, adotando um conjunto de boas práticas que estimulam a participação do cidadão e consumidor final na descarbonização da Economia.

 

Artigo actualizado, a pedido do autor, a 27 de Outubro de 2021, 10h00

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