Artigo publicado originalmente na edição de Novembro/Dezembro de 2022 da Edifícios e Energia
A Ordem dos Engenheiros (OE) organizou, como é habitual, as suas Jornadas de Climatização no início de novembro. No anúncio-convite desta edição de 2022, aparecia uma imagem daquilo que, até há bem pouco tempo, era considerado uma má prática, criticável: uma fachada de um edifício cheia de unidades individuais de climatização no exterior, uma por janela (ou fração).
Para um leitor menos atento, sendo a temática das Jornadas a “reabilitação de edifícios existentes”, isto até poderia parecer um apelo à reabilitação deste edifício através de uma solução mais eficiente na rota para a descarbonização do setor dos edifícios, que se pretende concluída até 2050 – a atual grande meta de política pública nacional e europeia para o setor. Mas… não é! A mais recente publicação técnica da REHVA, que a Comissão de Climatização traduziu e apresentou nestas Jornadas técnicas de 2022 (numa prática continuada desde há muitos anos que temos de felicitar), apresenta precisamente este edifício como um bom exemplo de reabilitação de um edifício residencial multifamiliar, em que caldeiras a gás natural para aquecimento ambiente e águas quentes sanitárias (AQS) desaparecem, deixando de queimar um combustível fóssil, e são substituídas por bombas de calor alimentadas por eletricidade, que, supostamente, e desejavelmente, virá a ser 100 % verde no futuro (ou descarbonizada, dependendo de como evoluir a tecnologia nuclear, seja com novas gerações de centrais a fissão, seja com a miragem da fusão prometida, todos os anos, para “daqui a 50 anos”). E, pronto, aqui temos uma solução para reproduzir em números significativos por essa Europa fora.

Figura 1: Anúncio- convite para as Jornadas da Climatização 2022 da OE.
Será esta a imagem que queremos ver nas nossas cidades renovadas e descarbonizadas? Será este assalto visual e estético o preço a pagar para combater as alterações climáticas? Haverá alternativas? Claro que há. Por isso, recomendo vivamente uma leitura cuidada desta publicação da REHVA. Esta solução ilustrada na Fig. 1 é apenas uma das possíveis descritas nessa publicação. A solução mais eficiente é sempre o recurso a um sistema centralizado de aquecimento que sirva todas as frações e contabilize os consumos individuais, informando todos os ocupantes sobre padrões de utilização que possam melhorar o desempenho individual e global, reduzindo custos e consumos. É uma situação muito comum, diria até dominante, com larga experiência adquirida, nos países nórdicos e no centro da Europa ‒ regiões com invernos muito frios e que têm uma longa tradição de aquecimento ambiente eficaz durante todo o inverno, ao contrário do que é a prática nacional, onde prevalece, e bem, a prática de aquecimento intermitente, apenas quando há ocupação efetiva e é necessário aquecer um ou outro espaço para garantir o conforto (ou minimizar o desconforto) dos respetivos ocupantes.
Claro que, nos edifícios existentes, instalar uma solução centralizada nem sempre é tecnicamente fácil. Mas é possível do ponto de vista técnico, nomeadamente no âmbito de uma reabilitação que inclua também a instalação de isolamento exterior na envolvente. As tubagens do aquecimento e das AQS podem ficar dentro da camada de isolamento exterior e derivar, depois, para o interior das frações de forma pouco intrusiva e sem grande incómodo para os ocupantes. Esta solução está também muito bem descrita e discutida na recente publicação da REHVA, que foi agora, e em boa hora, traduzida pela Comissão da Especialização da OE.
Portanto, tecnicamente, é possível evitar o tipo de fachada que motivou este texto, ilustrado na Fig. 1. Será provavelmente mais difícil ultrapassar um conjunto de obstáculos de outra natureza, do qual destacaria os seguintes:
• As reservas dos proprietários dos condomínios, com dúvidas, frequentemente bem justificadas pela experiência passada, sobre condóminos que não pagam a sua parte, o que significaria que alguns condomínios poderiam ter de pagar, ou, pelo menos, adiantar, a sua quota parte de custos com o aquecimento de outras frações;
• A falta de disponibilidade dos condomínios para assunção de custos significativos para avançar com uma reabilitação de grande envergadura, implícita numa solução com colocação de isolamento pelo exterior e instalação de um sistema centralizado de produção e distribuição de aquecimento e de AQS – o atual contexto económico, com juros e inflação a subirem, acrescido da falta de disponibilidade financeira da grande maioria da população e de apoios públicos manifestamente insuficientes, aponta claramente para um número residual de intervenções (privadas) deste tipo;
• A dificuldade de proceder a intervenções pelo exterior de fachadas existentes, porque alteram, por vezes, de forma radical, a aparência do edifício, o que pode ser especialmente crítico em edifícios com algum valor arquitetónico patrimonial (por exemplo, nos centros históricos das cidades);
• A questão dos direitos de autor do arquiteto projetista, cuja anuência prévia, nem sempre fácil e nem sempre sem implicações financeiras (por exemplo, a exigência de ser envolvido na reabilitação, com os respetivos honorários), pode ser necessária em muitos casos;
• A própria legislação da regulamentação urbana coloca sérias restrições, pois, por exemplo, ao isolar pelo exterior um edifício que confine diretamente com um passeio pedonal numa rua urbana, o edifício reabilitado vai “roubar” cerca de 10 cm à largura do passeio, o que pode ser crítico em certos casos e levantar mesmo problemas legais de área máxima de implantação permitida e “invasão” de terreno de propriedade pública.

Figura 2: Fachada de edifício com vários splits.
Como será absolutamente necessário um enorme esforço de reabilitação dos edifícios existentes até 2050, se a meta da descarbonização for para ser atingida (a ELPRE – Estratégia de Longo Prazo para a Reabilitação dos Edifícios prevê a reabilitação de 100 % do parque edificado existente em Portugal até 2050), todos estes problemas terão de ser objeto de ponderação cuidada e de procura das melhores soluções, o que, até agora, ainda não aconteceu. Caso contrário, deixando o tema à livre iniciativa de cada um, e com as ferramentas e os parcos apoios disponíveis, corremos o risco de poder acabar com uma situação omnipresente de muitas fachadas decoradas com uma profusão de equipamentos técnicos exteriores, mais ou menos bem ou mal disfarçados (dependerá também da arquitetura de cada edifício ou fração), ou simplesmente colocados, descarada e agressivamente “in your face”.
Espero que soluções como a ilustrada na Fig. 2 – a que atribuo 5 estrelas no (meu) ranking estético (pessoal) de colocação de splits – não se torne a norma e que haja um pouco mais de cuidado na instalação dos equipamentos. Os projetistas, os instaladores de equipamentos, os legisladores e técnicos das autarquias e o cidadão comum, que todos somos, têm a responsabilidade, individual e comum, de evitar que este possa vir a ser o resultado final indesejado de algo que se pretende que possa contribuir para o bem geral: a descarbonização do setor dos edifícios como componente fundamental para a mitigação das alterações climáticas.
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.