Pensar na ligação entre edifícios e cidades, e em formas de alavancar a sustentabilidade, é um exercício que traz à mente termos como descarbonização, consumo de energia, eficiência energética, energias renováveis, conforto térmico, reabilitação energética e comunidades de energia. Na consecução deste exercício e em busca de encontrar estratégias que aportem valor, as ferramentas digitais podem ter um contributo a dar.

“As vantagens da utilização das ferramentas digitais para promover a sustentabilidade do parque edificado, em particular, no que respeita à eficiência energética e à descarbonização são inúmeras”, sublinham Paulo Ferrão, engenheiro mecânico, e Ricardo Gomes, engenheiro ambiental, ambos investigadores do Instituto Superior Técnico (IST), que participaram num projecto que equaciona esta dimensão dos edifícios, além de outras relacionadas com a vida das cidades.

Chamado C-TECH, na forma abreviada de Climate Driven Technologies for Low Carbon Cities, o projecto, liderado pela NOS, surge como uma plataforma digital smart city que representa a cidade de Lisboa de forma tridimensional e combina dados de diferentes fontes, desde domínios como energia e meteorologia, até aspectos relacionados com o consumo de água e a mobilidade, por exemplo, e permite a modelação, a simulação e o planeamento a nível urbano. O objectivo é integrar um conjunto de ferramentas que permitam informar a tomada de decisões sobre novas políticas e medidas que fomentem o desenvolvimento de uma cidade com baixas emissões de carbono.

Na vertente dos edifícios, e com a ambição de diminuir a pegada carbónica urbana por esta via, o C-TECH contempla formas de “mimetizar o comportamento energético e térmico de edifícios e bairros” e, através dessa modelação, “analisar, à escala horária, variáveis como a temperatura interior, a energia consumida para diferentes usos e o potencial de produção solar de electricidade, entre outras variáveis”, ilustram os investigadores do IST.

Mas não só, a plataforma também permite ir além do estado actual do parque edificado de Lisboa e “quantificar e analisar cenários de intervenção” com diferentes objectivos, sejam eles a redução das emissões de gases com efeito de estufa ou a diminuição dos custos de operação dos edifícios, sejam a melhoria do conforto térmico dos utilizadores ou ainda a utilização de fontes de energia renovável.

Para isso, o projecto recolheu e associou um conjunto de dados ligados tendo actualizado, por exemplo, uma cartografia da capital proveniente do projecto Cartografia de Vulnerabilidade Térmica – Mapeamento dos efeitos das ondas de calor em Lisboa, face às projeções climáticas, dinamizado pela câmara municipal Lisboa no âmbito de uma candidatura ao Programa Operacional da Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR).

O resultado foi ter um documento “com todos os edifícios”, a que se adicionaram também dados de outras origens (como o INE ou a plataforma Solis) para se terem informações sobre os usos de energia nos edifícios, as épocas construtivas, o potencial das coberturas de Lisboa para a produção de energia solar, por exemplo, refere Sara Freitas, engenheira do Ambiente e de Energia e gestora de projectos na Lisboa E-NOVA – Agência de Energia e Ambiente de Lisboa, entidade-membro do C-TECH com um papel “agregador e facilitador”.

Além do IST, da Lisboa E-Nova e da NOS, o consórcio reuniu também o CEiiA – Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto, a IST-ID, associação do IST para a investigação e desenvolvimento, o Massachusetts Institute of Technology e a NOVA IMS – Information Management School.

PROMOVER A REABILITAÇÃO ENERGÉTICA

Procurando formas de assegurar o conforto térmico, combatendo a pobreza energética, e promover a reabilitação dos edifícios, ambições que andam de mãos dadas, o projecto C-TECH desenvolveu uma função na plataforma que visa aconselhar, de forma mais personalizada, sobre quais as melhores estratégias de reabilitação. Para isso, teve por base uma aplicação web que consegue prever o certificado de desempenho das habitações e indicadores de energia na cidade de Lisboa.

“Esta aplicação foi desenvolvida durante o projecto por um dos alunos de doutoramento do IST, o Gonçalo Araújo”, referem Paulo Ferrão e Ricardo Gomes, explicando que o processo envolveu a análise de uma base de dados de certificados energéticos do sector residencial que foi providenciada pela ADENE – Agência para a Energia, e, a partir dela, a criação de modelos de inteligência artificial.

Essa base de dados, além de conter “centenas de milhares de certificados” criados por peritos na certificação energética de edifícios, incluía ainda a “caracterização detalhada dos edifícios e dos alojamentos certificados”, identificando, por exemplo, soluções construtivas da envolvente, bem como sistemas de climatização e aquecimento de águas, entre outros elementos.

“O que foi feito no âmbito do C-TECH foi utilizar essa base de dados extensa para a criação de modelos de inteligência artificial” que, através da introdução de informações como a área de pavimento, o período construtivo ou a tipologia de construção, estimam a classe e o desempenho energéticos da habitação. “Fá-lo com muito menos dados que o certificado energético, mas, ainda assim, com uma precisão considerável”, sublinham os investigadores.

Por sua vez, estes modelos suportam uma plataforma desenvolvida com o intuito de promover a reabilitação das habitações, na qual se inserem também os desenhos tridimensionais dos edifícios e os dashboards de todos os outros modelos desenvolvidos. No fundo, a ambição desta plataforma, para já apenas disponível internamente, é vir a conseguir “apoiar o cidadão na tomada de decisão sobre as melhores soluções de reabilitação para a sua habitação em concreto”, esclarecem. Esse aconselhamento será prestado no sentido de sugerir as melhores medidas de promoção da eficiência energética, como também de estimar “um orçamento comparado de algumas soluções alternativas, apresentando poupanças e períodos de retorno [dessas medidas]”.

 

ESCALAR SOLUÇÕES NOS EDIFÍCIOS

Para Sara Freitas, a componente da plataforma dedicada à promoção da reabilitação energética dos edifícios é importante não só porque o edificado lisboeta “tem muitos desafios”, exigindo diferentes medidas técnicas de melhoria de isolamento, substituição de janelas, electrificação de equipamentos nas habitações, entre outras, mas também porque a intervenção em escala pode ser uma oportunidade. “Quando a intervenção é feita em conjunto, é mais barato para todos e é muito mais consequente. Uma estratégia viria muito neste sentido, porque o que quer que se faça vai sempre depender de edifício para edifício e as épocas construtivas diferentes também têm desafios um pouco distintos.”

“Felizmente, tem havido apoios do Fundo Ambiental, que têm trazido alguma alavanca para estas coisas; no entanto, falta ainda um bocadinho a visão de que não é só a operação individual, mas, sim, a operação à escala do edifício e da cidade. Encarar tanto os apoios criados como as próprias estratégias dos privados ou também do município em massa impacta mais pessoas de uma forma muito mais acessível financeiramente”, reitera a engenheira do Ambiente e da Energia.

É nesta linha de pensamento, de escalar soluções para os edifícios, que Paulo Ferrão e Ricardo Gomes apontam também para um outro estudo que considerou, ainda dentro da esfera da renovação energética, a reabilitação de edifícios devolutos na área de estudo do projecto C-TECH. Segundo os professores do IST, este trabalho investigou um enquadramento para quantificar o impacto deste processo na poupança de emissões de gases com efeito de estufa para diferentes soluções construtivas e sistemas de climatização e aquecimento de águas.

E mais ainda. O mesmo estudo investigou igualmente “qual o impacto que daí resultaria se esses edifícios fossem habitados por pessoas e famílias que trabalham na proximidade e que vivem, actualmente, na periferia de Lisboa”, explicam. Os resultados, lê-se no estudo, dizem que “no melhor cenário possível, correspondente à reabilitação considerando o isolamento do envelope [dos edifícios devolutos], a instalação de janelas eficientes, e adopção de uma bomba de calor em conjunto com um padrão de mobilidade que visa a cidade dos 15 minutos, foram alcançadas reduções de 76 % na energia primária e de 84 % nas emissões de CO2”.

Em paralelo, e já pensando na questão da possibilidade de criar comunidades de energia, o projecto C-TECH deu vida a outro artigo científico. “[O artigo] Discute o desenvolvimento de uma metodologia, que, com base nas ferramentas digitais, avalia o potencial e a eficiência de comunidades de energia”, referem os parceiros do IST. Deste trabalho, alimentado pela análise de curvas de procura e curvas de produção de energia eléctrica solar para diferentes tipologias de edifícios, decorre também a quantificação dos benefícios destas comunidades – “incluindo a poupança de energia consumida da rede, a auto-suficiência energética, entre outros” –, tanto a nível individual, para diferentes participantes, como a nível colectivo.

“Este tipo de soluções pode ajudar a alavancar a reabilitação energética de edifícios, uma das acções essenciais para descarbonizar o parque edificado e ajudar a cumprir as metas propostas de redução de emissões e ainda aliviar o problema de pobreza energética em Portugal”, lembram os membros do consórcio por parte do IST.

Ao abordar os edifícios à escala urbana, o projecto C-TECH pode contribuir para que se identifiquem e escalem soluções de reabilitação energética, eficiência energética e conforto térmico, mas há ainda outras formas de pensar os edifícios à escala urbana. “Ao pensarmos em cada edifício como se fosse um organismo vivo, percebemos que está sempre a interagir com o seu meio exterior, com a cidade”, e vice-versa, sublinha Sara Freitas. O que pode resultar dessa interacção?

SINERGIAS ENTRE EDIFÍCIOS E A SMART CITY

Assente na representação física da cidade, abrangendo tanto edifícios como ruas e estradas, a plataforma digital C-TECH apresenta-se como uma iniciativa smart city que visa ser integradora na forma como investiga, modela e ajuda a planear diferentes cenários para a sustentabilidade urbana. Assim, nesta vertente holística, pensar no parque edificado à escala urbana pode também significar uma nova função de este servir como uma plataforma ou uma ponte para a implementação de políticas e/ou medidas que visam a sustentabilidade da cidade como um todo.

“As ferramentas digitais permitem também promover análises multi-sectoriais de intervenção à escala urbana, para além do domínio da energia, ajudando o decisor a quebrar os silos que normalmente existem nas áreas de edifícios, mobilidade e geração de energia renovável ou mesmo a alimentação e a saúde”, realçam Paulo Ferrão e Ricardo Gomes.

Exemplos dessas sinergias que podem ser impulsionadas com esta abordagem são o aproveitamento do excedente de energia solar gerada nos edifícios para carregamento de veículos eléctricos ou o aproveita- mento das coberturas dos edifícios para a produção de alimentos.

“No projecto C-TECH, vários estudos, alguns publicados em artigos científicos, provaram isso mesmo”, indicam os parceiros do IST, explicando como o primeiro exemplo foi analisado por um estudo “considerando a existência de estacionamento privado para carregamento individual e distinguindo que edifícios e bairros são mais indicados para este tipo de solução de mobilidade”. Trata-se, pois, de uma sinergia com impacto, tendo em conta que, adiciona Sara Freitas, a “mobilidade é uma grande fatia dos consumos energéticos e das emissões carbónicas da cidade”. “Juntar cada vez mais a produção de electricidade solar local às soluções de mobilidade eléctrica é uma estratégia muito interessante”, realça.

Quanto ao segundo exemplo, relacionado com a produção de alimentos em coberturas de edifícios, neste caso, através da prática de hidroponia, uma técnica de cultivo que utiliza uma solução nutritiva que contém água em vez de solo, os especialistas explicam que é possível, neste projecto, “quantificar a produtividade estimada para as culturas, como o tomate ou a alface, e quanto podem representar relativamente ao consumo dos ocupantes do edifícios”, considerando também variáveis como o consumo de água e a criação de postos de trabalho.

“A hidroponia nos edifícios residenciais ainda não é uma solução comum de produção de alimentos em Portugal”, salientam. No entanto, continuam, “pode constituir uma solução de produção de alimentos com baixas emissões de carbono associadas, especialmente se em comparação com os meios de distribuição de alimentos existentes, que se centram muito no transporte rodoviário”.

A par desse benefício à escala urbana, os parceiros do IST apontam também para “outra grande vantagem” da prática de hidroponia a nível das coberturas dos edifícios: a promoção, numa componente social, da “cooperação entre os ocupantes do edifício para gerir a produção de alimentos”.

LIMITAÇÕES NA APLICAÇÃO

Na ambição inicial da plataforma C-TECH constava também um objectivo de, a partir da utilização de dados móveis, “melhorar a caracterização dos padrões de ocupação do edifício e, com isso, melhorar a representatividade dos modelos energéticos”, mencionam Paulo Ferrão e Ricardo Gomes. Contudo, e não obstante a utilidade dos dados móveis na avaliação de padrões de mobilidade na cidade, na parte dos edifícios, a análise efectuada resultou na conclusão de que não havia resolução espacial e temporal “suficientemente detalhada” neste tipo de dados para avaliar a ocupação dos edifícios. “Por exemplo, a maioria das pessoas quando chega a casa ou ao local de trabalho deixa de utilizar dados móveis e passa a usar wi-fi nos seus equipamentos”, explicam.

Além disso, adoptando uma metodologia de investigação que “combina a investigação industrial com o desenvolvimento experimental, garantindo uma validação contínua e a integração de feedback”, a plataforma C-TECH tem como objectivo demonstrar, no terreno, a aplicação das suas várias funcionalidades. Nesse sentido, além dos testes já efectuados, o consórcio do C-TECH demonstrou, no evento final de apresentação do projecto, no dia 21 de Setembro, em Lisboa, o inte- resse em implementar, de forma piloto, estes modelos em três freguesias lisboetas, nomeadamente Marvila, Beato e Parque das Nações. Até à data, esse processo não avançou, mas, de acordo com Sara Freitas, para quem “o trabalho nunca é desperdiçado”, os parceiros “têm a ambição de poder encontrar outras maneiras de dar continuidade ao projecto”, em Lisboa e, eventual- mente, como afirmou Pedro Machado, head of B2B new business da NOS, noutros municípios.

O C-TECH contou com o apoio do COMPETE 2020 no âmbito do Sistema de Incentivos à I&DT, na vertente em co-promoção – parcerias internacionais, inserido no Portugal 2020, e envolveu um investimento elegível de cerca de 2,9 milhões de euros, correspondendo a um incentivo FEDER de 1,5 milhões de euros.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 150 da Edifícios e Energia (Novembro/Dezembro 2023).