Há um projecto europeu a querer dar vida ao calor produzido pelo funcionamento normal dos vários serviços das cidades, partindo de sistemas de metropolitano, redes de esgotos ou centros de processamento de dados. O ReUseHeat une parceiros de dez países europeus e tem quatro demonstrações de larga escala a decorrer até 2022. Uma delas procura recuperar e reutilizar o calor gerado por uma estação de metro de Berlim.

Descarbonizar com fontes não convencionais” – é este o mote do projecto europeu ReUseHeat, que quer desenvolver modelos replicáveis para o reaproveitamento do calor residual gerado pela vida das cidades europeias. A ideia subjacente à iniciativa passa por não deixar cair em desperdício o calor gerado a partir do funcionamento da própria cidade e vai procurar, a partir de quatro diferentes palcos de teste, criar soluções “avançadas, modulares e replicáveis” para a recuperação e reutilização do “calor em excesso” presente nos centros urbanos. O reaproveitamento deste calor pode ser aplicado, depois, em redes de aquecimento urbano, reduzindo o consumo de energia e contribuindo para a descarbonização a partir da reutilização de um recurso, até então, subaproveitado.

O foco central da iniciativa europeia é o “excesso de calor”, também conhecido como calor residual – um subproduto da operação de maquinaria, de processos industriais ou da produção de electricidade que não é utilizado e é dissipado no ar ou na água. Nas cidades, resulta do funcionamento de vários sistemas e serviços urbanos que geram calor desperdiçado e é precisamente aqui que o projecto encontra o seu real potencial de aproveitamento. Um centro de processamento de dados e uma estação de metro na Alemanha, um colector de esgotos em França, e um sistema de arrefecimento hospitalar em Espanha: são estas as quatro fontes de calor urbano que integram os testes, com o objectivo declarado de aferir a viabilidade técnica e económica da recuperação e reutilização de calor nas cidades. Os resultados das experiências em desenvolvimento serão, no futuro, vertidos num manual que servirá de guia para investidores e promotores de projectos de utilização de calor residual, incluindo “tecnologias e soluções eficientes e inovadoras”, “modelos de negócio adequados” ou estimativas de risco de investimento.

Com o objectivo de desenvolver e testar soluções para os desafios “técnicos e não técnicos” da recuperação de calor, o ReUseHeat une parceiros de dez países europeus – Áustria, Alemanha, Suécia, Reino Unido, Roménia, Espanha, Dinamarca, Itália, França e Bélgica – e conta com um financiamento total de cerca de 4,9 milhões de euros, dos quais 4 milhões provêm do programa europeu para a investigação e inovação Horizonte 2020. Sob coordenação do instituto sueco para a investigação ambiental IVL Svenska Miljöinstitutet, o projecto iniciou-se em 2017 e, apesar de ter previsto inicialmente o seu término em 2021, a data final foi agora prolongada, decorrendo até Setembro de 2022.

Segundo os parceiros que integram o projecto de acção inovadora, o aproveitamento da energia desperdiçada na União Europeia (UE) seria suficiente para aquecer todo o parque habitacional da UE. Apesar disto, no espaço comunitário, “existem apenas alguns exemplos de recuperação de calor em excesso”, e os que existem são “de pequena escala”. É esta a realidade que a iniciativa pretende alterar, identificando nas cidades europeias “fontes de calor de baixa temperatura” resultantes da actividade urbana. Poderá o reaproveitamento do calor residual das cidades ser uma das peças na luta pela neutralidade carbónica do continente europeu, feito que a Comissão Europeia pretende alcançar até 2050?

Identificação de alguns locais com potencial de aproveitamento de calor residual na Europa, feito pelo projecto. FONTE: ReUseHeat.

Aproveitar o calor de uma estação de metro

As estações de metropolitano são fonte de calor residual em cidades de todo o mundo e o ReUseHeat está a tentar tirar partido disso mesmo, procurando confirmar a viabilidade do seu aproveitamento através de soluções modulares e replicáveis em diferentes contextos urbanos. Os sistemas de ventilação instalados nas carruagens geram calor que acaba por dissipar-se no ar, tal como acontece com o funcionamento dos motores das composições e os movimentos de aceleração e travagem dos comboios – este último é responsável por “cerca de metade do calor presente numa estação de metro”, informa o projecto europeu, que tem como parceiros centros de investigação, universidades, empresas de engenharia e do sector energético e a comunidade intermunicipal Métropole Nice Côte d’Azur.

Em Berlim, a estação de metro da Friedrichstraße é um dos quatro palcos da experiência europeia. Localizada na rua homónima, uma das principais artérias da cidade, a estação está a servir de cobaia para uma solução de aproveitamento do calor residual que resulta do funcionamento do metropolitano. A solução em teste, instalada no próprio túnel ferroviário, pretende recuperar o calor residual existente e transferi-lo para um sistema de aquecimento urbano de baixa temperatura, que operará a 50 graus Celsius.

Ao abrigo do projecto europeu, a rede de aquecimento urbano vai permitir aquecer um edifício de três andares com escritórios e salas de transformadores eléctricos, propriedade do operador do metropolitano da capital alemã. Está igualmente prevista a ligação do sistema de recuperação de calor à rede de aquecimento urbano de Berlim. Com uma extensão de cerca de dois mil quilómetros, esta rede de aquecimento urbano é uma das mais antigas do continente europeu e “opera a altas temperaturas”, pelo que o trabalho desenvolvido ao abrigo do ReUseHeat vai analisar “de que forma pode o calor de baixa temperatura recuperado ser usado na rede convencional de aquecimento urbano”. Tratando-se de uma solução “altamente modular, compacta” e escalável, podendo ser aplicada em “qualquer plataforma ou túnel” de metropolitano, apontam os investigadores.

De acordo com a Associação Internacional de Transporte Público (UITP, na sua sigla original), no final de 2017 existiam redes de metropolitano em 178 cidades de 56 países. O ReUseHeat faz as contas: só na União Europeia, 50 cidades de dimensões média e grande têm actualmente sistema de metropolitano, com uma extensão total de 2800 quilómetros, que servem, diariamente, 31 milhões de passageiros. Com uma distância média entre estações de “apenas um quilómetro na Europa” e considerando o facto de que “todas as estações estão localizadas em áreas urbanas densamente povoadas” e onde a procura por aquecimento “é alta”, “este tipo de calor residual pode ser idealmente utilizado para aquecimento”. A “boa exploração” deste potencial pode resultar na recuperação de entre 6,7 Terawatts-hora (Twh) e 11,2 Twh de calor residual a partir dos sistemas de metropolitano e na sua utilização em redes de aquecimento urbano. A recuperação e reutilização deste calor tem como resultado a geração de “calor de baixo carbono” e pode ainda contribuir para alcançar conforto térmico para os trabalhadores e passageiros das estações em que esta solução seja implementada.

Hospitais, esgotos e data centers

Na cidade alemã de Braunschweig, o calor gerado num centro de processamento de dados vai ganhar uma segunda vida, ao ser reaproveitado na rede de aquecimento urbano de um novo conjunto habitacional com 400 unidades residenciais. Naquela que é a segunda maior cidade do estado federal alemão da Baixa Saxónia, com cerca de 250 mil habitantes, o teste está a ser levado a cabo por uma empresa fornecedora de electricidade, gás, água e aquecimento, responsável pela operação de uma rede local de distribuição de calor que cobre 45 % da cidade.

A “grande necessidade” de arrefecimento do centro de processamento de dados acaba por resultar na geração de calor residual. O projecto europeu pretende, então, aproveitar este excesso de calor, promovendo a sua recuperação e reutilização na nova área residencial, localizada junto a este centro e actualmente em construção.

A solução desenvolvida pelo projecto ReUseHeat para centros de processamento de dados (ou data centers, em inglês), tira partido do potencial de calor residual presente e vai permitir suprir as necessidades de aquecimento das 400 habitações, mesmo em períodos de pico de procura. Para além de satisfazer, na totalidade, as necessidades de aquecimento do conjunto habitacional em construção, o sistema de reutilização de calor residual vai ainda ligar-se à rede de aquecimento urbano de Braunschweig da empresa fornecedora de serviços energéticos, contribuindo para a “flexibilidade no sistema e para a gestão de picos de procura”. Como a fonte de calor residual proveniente do centro de processamento de dados é caracterizada pela “baixa temperatura”, será utilizada uma bomba de calor para “aumentar a temperatura” entregue à rede de aquecimento.

Na capital espanhola, a recuperação de calor vai acontecer a partir do sistema de arrefecimento do hospital universitário Severo Ochoa. Este complexo hospitalar foi o palco escolhido para o teste europeu por representar “um grande potencial de replicação”, já que se trata de um edifício “muito comum”, contando ainda com a sua própria rede de aquecimento e arrefecimento. A solução em testes visa a recuperação de calor com origem no sistema de produção de frio do hospital, realizada a partir de três torres de refrigeração e quatro chillers. Com “necessidades elevadas de arrefecimento durante todo o ano”, nomeadamente em blocos operatórios e outras divisões com “condições de ar especiais”, os hospitais recorrem a chillers para “dissipar o excesso de calor no ar, no chão ou numa fonte de água”. Esse calor é, por sua vez, “desperdiçado e libertado para o ambiente”, ou é aproveitado apenas para o aquecimento de águas. A solução instalada ao abrigo do projecto propõe-se a recuperar este calor “através de uma bomba de calor booster”, o que permitirá aumentar a temperatura de modo a poder ser utilizado para aquecer um edifício ou servir uma rede de aquecimento urbano, “assegurando reduções significativas no consumo de energia primária e nas emissões de gases com efeito de estufa”, aponta a iniciativa.

Em Nice, a descarbonização do aquecimento residencial é testada a partir da rede de esgotos. A comunidade intermunicipal centrada na cidade francesa – Métropole Nice Côte d’Azur – reúne 49 municípios à volta de Nice e tem, de acordo com o projecto europeu, a ambição de se tornar no “laboratório francês da transição energética”. O centro da experiência francesa com a reutilização do calor residual gerado pelo sistema de esgotos situa-se no centro de negócios Grand Arenas, um bairro de usos mistos, composto por um centro de congressos, comércio e habitação e conceptualizado em 2011 a partir do compromisso da cidade com a sustentabilidade. Esta experiência pretende servir o bairro através de uma rede de aquecimento urbano de baixa temperatura alimentada a partir do sistema de esgotos. A primeira fase do projecto permitiu assegurar as necessidades de aquecimento de 20 mil m² de hotel e escritórios, através da recuperação do calor residual com origem num colector de esgotos local. O sistema instalado em Nice pretende demonstrar o potencial das águas residuais, “especialmente das águas residuais quentes”, na alimentação de sistemas de aquecimento de edifícios.

Para além da comunidade intermunicipal de Nice, a participação francesa no ReUseHeat conta com o contributo da energética estatal Électricité de France (EDF) e do Centre Scientifique et Technique du Bâtiment (CSTB) – centro nacional para a investigação e inovação no sector da construção.

 

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