“É fundamental sermos capazes de ver os sistemas energéticos não como silos e vectores, mas [como] um sistema de sistemas” – a afirmação é de Jorge Esteves, director de Infraestruturas e Redes da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), numa intervenção a partir da FIL, no Parque das Nações. O representante integrava um dos painéis do segundo dia do Portugal Smart Cities Summit, que arrancou com uma conferência sobre os desafios económicos e ambientais da transição energética.
A energia foi o grande tema do segundo dia do Portugal Smart Cities Summit, evento nacional dedicado à inteligência e sustentabilidade urbanas, que decorre entre os dias 16 e 18 de Novembro com a organização da FIL – Fundação AIP. Embora a aposta na transição energética seja um dado adquirido quando se fala das metas europeias e do mais recente World Energy Outlook 2021, publicado pela Agência Internacional de Energia, para a meta de descarbonização, há alguns pontos a assentar. Para falar das questões económicas, o Portugal Smart Cities Summit preparou o painel “A descarbonização e os preços da energia”, convidando Jorge Esteves, Pedro Neves Ferreira, director da unidade de Gestão e Energia da EDP, Jorge Mendonça e Costa, director da Associação Portuguesa dos Industriais Grandes Consumidores de Energia Elétrica (APIGCEE) e, como moderador, Vítor Santos, professor do ISEG e antigo presidente da ERSE.
Nesta mesa redonda, o ponto de partida foi a situação “atípica” de preços spot mibel a valores record e muito voláteis, que os oradores justificaram através dos máximos históricos no preço do gás natural e, devido a medidas mais ambiciosas do pacote Fit for 55, no preço da tonelada de CO2. Ainda que seja uma situação sobretudo conjuntural, que se deverá prolongar em 2022, impõe-se a questão de se este aumento é um incentivo à aceleração da transição energética e/ou um potenciador de deslocalização de consumidores industriais para fora da União Europeia, o que obriga à reflexão sobre as regras de funcionamento do mercado energético.
Para Pedro Neves Ferreira, a “transformação profunda do mix de produção de electricidade” e a diminuição de custos variáveis com a penetração das energias renováveis fazem com que se preveja, avançando no horizonte temporal, “uma diminuição e estabilização deste preço [mibel] em torno dos 30 e tal euros por Mwh de electricidade e, em particular, um desacoplamento deste preço de electricidade com o custo do ciclo combinado a gás”.
Para enfrentar a preocupação de se poder ter “um preço spot demasiado baixo para atrair investimento”, o responsável da EDP argumentou que “terão de surgir mecanismos de incentivo ao investimento, nomeadamente pela contratação a prazo” e que o mercado grossista terá de se reorganizar, deixando de estar tão ancorado no modelo marginalista como “sinal de investimento”, focando, sim, na sua “função finalizar um despacho eficiente a curto prazo das centrais térmicas”.

Além da criação de contratos bilaterais de longo prazo, também destacada por Jorge Esteves como forma de cobrir o risco e resolver problemas de abastecimento, existem outras respostas, nomeadamente dimensionar o mercado integrado de energia na Europa. Deste modo, o representante da ERSE explicou que será possível estimular a concorrência, “manter uma lógica de cooperação”, “ter interligações que permitam assegurar fisicamente a possibilidade de fluir energia de um lado para outro” e assegurar regras de mercado mais harmonizadas entre os Estados-Membros, bem maior estabilidade e igualdade de preços.
Este mercado poderá ser ainda uma “boa oportunidade” para os consumidores de “hoje” serem também prestadores de serviços do sistema “amanhã”, obtendo uma nova fonte de receita e diminuindo a factura global de electricidade, declarou Jorge Esteves. Neste cômputo, que integra novos conceitos como economia de proximidade de energia, com o desenvolvimento de autoconsumos em autoconsumos colectivos e comunidades de energia, Jorge Esteves apontou para a tecnologia como “o cerne da questão”. E, assegurou, é algo que terá de ser pensado em várias dimensões, da produção ao armazenamento, e em diferentes sectores, como é o caso da construção, onde o aquecimento dos edifícios é “uma componente importante do nosso consumo através da introdução de bombas de calor”.
Embora a electrificação seja apontada como o caminho mais viável para a descarbonização, Jorge Esteves alertou que “existirão consumos que não serão descarbonizados através da electricidade” e que, para dar resposta a esta questão e atingir a neutralidade carbónica, “é fundamental sermos capazes de ver os sistemas energéticos não como silos e vectores, mas um sistema de sistemas”, até porque, como recordou, “provavelmente os resíduos de uns são os recursos de outros, abrindo a janela para a economia circular”.
Nestas novas lógicas de uso energético, há também questões ambientais que se levantam. Incidindo em particular no caso da geração fotovoltaica, houve também lugar a um segundo painel com a participação de Nuno Brito Jorge, criador da plataforma GoParity, Susana Serôdio, Energy Policy Advisor da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN), de Silvino José da Silva Lúcio, presidente da câmara municipal da Azambuja, e de Júlia Seixas, investigadora da FCT NOVA.
Deste debate, Susana Serôdio salientou que os processos de licenciamento são necessários para garantir a sustentabilidade ambiental, mas morosos – demoram cerca de quatro a cino anos – e pouco claros, o que coloca em causa não só o ritmo da transição, com custos para os investidores que podem acabar por ter pareceres negativos. Assim, a especialista acredita que é “preciso redimensionar as entidades e dar os recursos necessários para tornar o processo ágil, transparente e participativo” e “haver uma actualização de cartas para que se definam logo zonas onde os licenciamentos não serão aceites”. Este procedimento, concordaram os intervenientes, deve ser descentralizado, envolvendo as autarquias, dada a representação local das energias renováveis.
A propósito da aposta nas energias renováveis, Júlia Seixas alertou também para o risco de equacionar este tipo de energias a sustentabilidade automaticamente, pois podem colocar em causa a paisagem como “um activo” em si mesma e, sobretudo, descontinuar os ecossistemas, contribuindo para “o problema gravíssimo de biodiversidade do planeta”. Também por isso, e para se ter uma transição energética mais justa e prática, Nuno Brito Jorge apresentou brevemente o guia prático da Coopérnico sobre Comunidades de Energia, já disponível on-line.