Funcionalidade, rentabilidade e inovação são, na opinião da arquitecta Susan Cabeceiras, CEO e directora comercial da Konceptness, as chaves para qualquer projecto. Uma forma de fazer arquitectura que também privilegia a sustentabilidade económica como factor de evolução na concepção e manutenção dos edifícios.

 

Temos uma arquitectura diferente? Mudou muita coisa com a pandemia?

Como aconteceu em vários sectores, também o arranque de novos projectos de arquitectura abrandou durante vários meses assim que surgiu o primeiro confinamento, porque mudou o paradigma da urgência no arranque dos projectos. Os clientes ficaram a aguardar [para] perceberem como o mercado se iria comportar. Foi uma situação nova e desconhecida para todos e a prudência impôs-se em todos os negócios. Mas, a partir de Outubro do ano passado, o mercado voltou a arrancar num ritmo mais acelerado. Desde Maio deste ano que estamos numa fase de grande ebulição com a contratação de mais pessoas e o trabalho não pára. Todos querem desenvolver projectos e há uma grande procura na aprovação de planos de pormenor, pedidos para alterar a utilização dos terrenos perante os planos directores municipais (PDM) em actualização. As pessoas têm imóveis e querem vender. Há também um mercado ligado aos fundos de investimento que está muito activo. Está a surgir uma grande procura neste momento e posso garantir que é maior do que aquela que existia antes da pandemia, em 2019. É também uma procura diferente da que tínhamos nessa altura e que se caracteriza pela redução do tempo entre a apresentação de uma proposta e o seu fecho, porque o cliente quer concretizar rapidamente.

As necessidades são diferentes daquelas que existiam antes da pandemia? Onde está o foco neste momento?

O foco está na rentabilidade dos edifícios e nas suas características energéticas e de sustentabilidade. O cliente procura qualidade. As pessoas limitavam-se a pedir um projecto e agora são muito específicas naquilo que querem e no mercado que pretendem. A sustentabilidade começou por ser um conceito difuso e com pouca expressão porque as pessoas não sabiam o que queriam desse ponto de vista. Agora, há mais conhecimento e a procura de um selo de sustentabilidade. No nosso caso, temos uma área de engenharia do ambiente que apoia a integração do projecto naquilo que são os factores de sustentabilidade. Ou seja, os clientes, neste momento, procuram outras competências, querem projectos que assegurem a continuidade dos edifícios no mercado e a manutenção do seu valor económico.

A motivação pela procura pela sustentabilidade tem a ver com a criação de mais valor económico ou com preocupações concretas?

A sustentabilidade não abrange apenas as questões energéticas e as preocupações com o ambiente. A sustentabilidade também é económica e social, os clientes já começam a ter esta noção e tiram partido da sustentabilidade como bom instrumento de marketing que é. Se eu tiver um edifício sustentável, vou aumentar o seu valor e atrair mais mercado. A pandemia de Covid-19 reforçou esta necessidade.

Esse mercado já existia com alguma expressão nos edifícios de serviços. Grande parte tem já selos de sustentabilidade.

É um facto. Existem muitos edifícios certificados com selos de qualidade, o que não quer dizer que sejam sustentáveis nesta dimensão de que hoje falamos. Ou seja, a sustentabilidade pode ser vista de vários prismas. Quando questiono um cliente, pergunto “quer ter um edifício onde terá menos custos de consumos energéticos ao longo da sua vida?”. A resposta é sempre “sim”, mas quer perceber quanto [isso] custa em fase de construção e projecto. A perspectiva “quero que o meu edifício tenha só materiais portugueses e reciclados” voltou a ser um pedido frequente de cliente. Como arquitecta, defendemos sempre estas situações, mas é o investidor quem decide o caminho.

E o que é diferente hoje?

Um edifício que se considera sustentável, que tem selos de qualidade, mas que não consegue dar resposta a outros níveis e é inoperante não encaixa naquilo que hoje entendemos como sustentabilidade económica. A sustentabilidade também passa por estas questões porque estas inoperâncias reflectem-se nos custos de manutenção dos imóveis. Há muitas outras frentes. As pessoas procuram a sustentabilidade ambiental, mas também económica. Os fundos de investimento vendem os projectos dos edifícios com quotas de rentabilidade na ordem dos 6 %. Para quem está a comprar, estes temas são essenciais. Quando pensa em investir, pensa no que gasta hoje ou avalia o que pode poupar em 10/20/30 ou 40 anos, e a projecção que o edifício tem de durabilidade conforme está a ser concebido.

Estamos a falar de duas coisas diferentes, embora sejam complementares. Uma coisa é o valor económico do edifício, outra inclui as questões ambientais como as tecnologias, os aspectos construtivos, a eficiência energética, etc. Os investidores procuram este tipo de sustentabilidade?

Neste momento, sim. Até porque ter em conta essas características de sustentabilidade ajuda à durabilidade e minimiza os custos. Quando temos um edifício em betão, pensamos nele para 100 anos. As pessoas querem voltar a investir o menos possível. E aqui a questão da reciclagem é muito importante. As pessoas já começam a querer que os materiais sejam de origem portuguesa e recicláveis, o que é uma novidade. Temos clientes que nos pedem concretamente projectos Passivhaus. Esta situação era impossível há uns anos. Há muito mais sensibilidade para as questões da sustentabilidade. Já não precisamos de insistir nesses aspectos.

“A pandemia ajudou [à mudança], porque deu mais tempo de reflexão e aumentou, talvez, essa consciência para a procura da qualidade, e isso reflecte-se em 20 % a 30 % dos projectos que hoje fazemos.”

O que provocou essa mudança?

A pandemia ajudou, porque deu mais tempo de reflexão e aumentou, talvez, essa consciência para a procura da qualidade, e isso reflecte-se em 20 % a 30 % dos projectos que hoje fazemos, o que é bastante considerável. Para estas pessoas os custos já não são o único factor de decisão. Trabalhamos muito a componente BIM, e, quando trabalhamos num modelo, já o fazemos para que o edifício seja gerido no futuro por via do Facility Management. Para isso acontecer, temos de pensar no edifício de uma forma sustentável em todas as componentes do seu ciclo de vida. Por outro lado, há uma nova procura na concepção de espaços que tem a ver com a flexibilidade, a possibilidade de os espaços serem modelados às necessidades. Podemos ter hoje uma sala e, amanhã, essa zona ser transformada e ter outra função. A questão da reciclagem já é tão forte em toda a Europa e começa agora a ver-se por cá. Os clientes começam a exigir que os materiais, que um dia vão ser retirados dos espaços, sejam reciclados. Sugerimos muito aos clientes a gestão dos resíduos, mas alguns ainda fogem a este custo.

Existe a sensibilidade para a questão da energia incorporada nos materiais?

Ainda não existe essa preocupação. Temos de ser nós, os arquitectos, os engenheiros e as equipas de projectos, a dar esse salto.

Continuamos a construir edifícios com quatro fachadas de envidraçados. Será falta de conhecimento ou de formação?

Eu posso falar da minha arquitectura, que já tem quase 20 anos. Trabalhamos com profissionais mais jovens, mas eu aprendi arquitectura com planos brancos na minha formação. Infelizmente, nunca se falou em energia ou sustentabilidade. Só tínhamos painéis brancos e vidros.

Muita coisa mudou e o novo conhecimento sobre esses temas faz parte das boas práticas?

A tecnologia permitiu-nos dar esse salto. No caso do BIM, as perdas energéticas são imediatamente detectáveis, por exemplo. Com esta ferramenta, conseguimos perceber se o edifício cumpre os propósitos da exposição solar e outros requisitos. Há 20 anos, não tínhamos o BIM disponível em Portugal, mas hoje temos mais informação para dar aos clientes porque já existe conhecimento desta tecnologia. Os arquitectos estão hoje muito mais abertos às questões energéticas porque é isso que vai dar valor económico e ambiental ao edifício durante muitos anos. Se a fachada for de vidro, mas conseguirmos sistemas de ensombramento que impeçam a entrada directa do sol… O edifício tem arquitectura e direitos de autor, mas tem muito mais do que isso. Todos estes aspectos da funcionalidade ligados à rentabilidade são extremamente importantes e as pessoas já estão abertas a esta forma de trabalhar.

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De repente, uma série de outras disciplinas entra nos edifícios. Os engenheiros passaram a perceber de saúde, os arquitectos de tratamento de resíduos e de qualidade do ar…

Temos de perceber também de vírus e da sua transmissibilidade… Num edifício, temos de prever a sua polivalência e adaptabilidade a vários cenários.

A formação já poderá ser insuficiente e não será, porventura, o ímpeto pela qualidade o factor essencial no projecto?

Há sempre alguma confusão no mercado. Já aconteceu ir a reuniões específicas sobre segurança contra incêndios e sou arquitecta. Quando começo a falar em BIM ou em simulações, parece que estou a anos luz do meu interlocutor e a verdade é que até podemos trabalhar ao lado um do outro, ser da mesma geração e ter acesso à mesma informação, só que há quem esteja aberto e quem não esteja.

As questões da qualidade do ar interior estão a condicionar os projectos de arquitectura?

O que está a acontecer é a procura de informação sobre o melhor filtro ou qual o melhor sistema de ventilação de forma a garantir que aquele espaço tenha a melhor qualidade do ar. [Este tema] Raramente era uma preocupação antes da pandemia.

Nessa altura, entra a engenharia.

O arquitecto tem de se juntar com as outras especialidades. Somos 16 pessoas no gabinete porque não é possível projectar sozinho. Um arquitecto sozinho nunca vai conseguir fazer um bom trabalho. Precisamos da engenharia, claro!

Essa tendência acentuou-se mais agora?

Aprendemos na faculdade que o arquitecto é o artista e o engenheiro é quem concretiza, e eu sou o oposto dessa teoria. Sou arquitecta da função e interessa-me se o edifício responde ao que o seu uso seja inicialmente definido. Este tema já não é assunto e já é consensual que o arquitecto tem de dar função, qualidade e continuidade ao edifício. Hoje, o arquitecto – claro, salvo algumas excepções – já não é um arquitecto de autor. O meu conhecimento é direccionado para o cliente e para aquilo que o cliente quer e de que precisa agora e no futuro. E é isso que faz um bom arquitecto. Eventualmente, posso ir contra o mercado, mas é a minha forma de estar. Essa tendência é inevitável. Um bom projecto tem de ter todas essas mais-valias de conhecimento a que se juntam muitos outros aspectos, como um conhecimento profundo sobre os materiais, sobre as ferramentas tecnológicas, as várias soluções técnicas, etc. Depois, é preciso entender o cliente, conhecer o terreno, os problemas ambientais que influenciam o edifício ou as questões energéticas. Importantíssimo é saber o que legalmente é possível ou não de ser realizado para o local. Um edifício tem de funcionar para as pessoas que o vão utilizar.

Pode dizer-se, então, que a relação entre a arquitectura e a engenharia está mais pacificada?

Eu sou suspeita, porque tenho arquitectos e engenheiros na equipa desde sempre. O nosso engenheiro director de projecto diz que eu sou mais engenheira do que arquitecta. Acho que temos de estar juntos. Não se faz um bom projecto se isso não acontecer. É impossível pensar numa boa solução de ventilação para um edifício se não tiver um engenheiro mecânico comigo. Não se faz!

“Não vejo a Ordem dos Arquitectos (OA) como uma aliada da nossa profissão. O BIM começou a ser falado na OA apenas em 2019. Nunca ouvi nada sobre a Passivhaus.”

Que outros aspectos são agora tidos em conta pelo cliente ao nível da salubridade do ar e ventilação? Qual a abordagem?

As pessoas ainda perguntam se entra ar da rua e como se controlam esses fluxos. Aquilo que procuramos sensibilizar é para a necessidade de alguma ventilação natural, porque o edifício não pode ser completamente estanque. Como arquitectos e engenheiros, temos de criar esse equilíbrio.

A intervenção pelo lado da arquitectura tem outras preocupações em conta neste momento?

Nos edifícios de escritórios, a maior preocupação do lado do cliente está em criar espaços comuns onde as pessoas possam estar a trabalhar com qualidade. A preocupação já não está na quantidade de pessoas que se pode alocar a cada espaço. Estão a acontecer grandes conversões para novos escritórios muito mais humanizados.

Essa humanização reflecte-se apenas na reorganização de novos espaços?

O espaço é todo pensado de forma diferente. Um espaço de 1000 m² que era preenchido com mesas corridas é substituído por secretárias que podem ser partilhadas por colaboradores diferentes, que alternam entre eles. Se o espaço é reduzido para metade, os outros 500 m² disponíveis podem ser aproveitados para zonas sociais, zonas criativas ou zonas de partilha de informação que antes não existiam. A pandemia veio mudar esta forma de definir os espaços. Locais que aliam o trabalho e o lazer, onde as pessoas possam sentir-se bem e motivadas para estar. Outra característica é a polivalência e versatilidade – agora é uma zona de lounge, onde tecnologicamente se pode estar a fazer uma conferência com um cliente ou colega que está noutro país ou em isolamento.

E na habitação, o que é que muda?

Nos edifícios habitacionais, existe é uma grande preocupação com as salas de estar, as zonas de trabalho e os espaços verdes, que passaram a ser mandatários. Neste momento, as pessoas querem um local onde possam estar em teletrabalho, perto da família, mas com silêncio para trabalhar algumas horas on-line. Antes da pandemia, as pessoas não queriam saber se as casas tinham ou não varanda e, agora, preocupam-se [com isso].

O Sistema de Certificação Energética é um tema que ainda continua a ser visto como uma burocracia?

O certificado energético é uma imposição legal e as pessoas já entendem que é um processo que tem de existir. Mas é um indicador que o investidor e cliente analisa e se preocupa, mas ainda não existe o investimento para que este edifício ou o próximo tenha um resultado melhor.

E é útil, do seu ponto de vista?

Essa é uma boa pergunta. Um certificado energético ainda não é reflexo do projecto. O cliente não vê o certificado dessa forma. E nós, técnicos, também não sentimos isso. Gostaria que fosse usado como um ponto de partida para uma revisão de projecto, para uma nova implementação de melhoria do edifício. Espero que cheguemos brevemente a este ponto. Para mim, um relatório deste género deve dar origem a futuras acções.

Não é uma oportunidade que se perde?

É uma oportunidade de melhoria para um outro projecto que venha a seguir. Se eu disser a um cliente com um edifício com categoria B ou C para mudar as caixilharias e colocar um sistema de capoto, ele vai achar uma boa ideia na expectativa de passar para uma classe A. O problema é quando souber quanto vai custar essa mudança. Os custos ainda são muito elevados para esta rentabilidade. Se fizermos um estudo e a verificação entre o que se investe e o que se poupa energeticamente, o cliente pode investir e vai achar bem, mas, para já, ainda não existe este conhecimento integrado entre todas as partes envolvidas.

Os grandes edifícios caminham para a autossuficiência energética até pela imposição da Lei. Estas mudanças estão a condicionar a forma como se desenham os edifícios?

Se não formos inovadores, vamos morrer na praia. Temos situações de clientes que vêm ter connosco porque não têm resposta do arquitecto com quem trabalham. Os clientes precisam de quem explique o processo, quer ao nível energético quer de licenciamento e outros. O cliente quer fazer parte do projecto e de todo o processo. E, se tivermos a equipa certa, conseguimos dar resposta às necessidades desses edifícios. Nem todos os arquitectos ou engenheiros saem da faculdade com o conhecimento necessário ao nível da sustentabilidade. Num edifício pensado de uma forma sustentável, as fachadas são fachadas duplas onde a água circula, onde existem plantas que fazem sombreamento… Se não houver um conjunto de aspectos e cuidados, o projecto seria outro. Temos de pensar assim e isso muda tudo.

Falámos já dos materiais, mas, muitas vezes, os aspectos construtivos não são tidos em conta.

Com as pessoas a passarem mais tempo em casa, há uma maior preocupação com os aspectos construtivos. As soluções passivas passaram a ter uma maior importância. A questão da pegada ecológica e da sustentabilidade ganhou força, como já falámos. O negócio das fachadas de capoto aumentou imenso. Tenho um cliente que fez desta unidade um negócio que disparou no último ano. No geral, as pessoas estão mais exigentes e isso é algo que experiencio muito no meu círculo profissional e pessoal.

Essa é uma boa notícia e uma responsabilidade acrescida também para os arquitectos…

Sim, sem dúvida. Temos de conhecer todas as soluções.

Em termos de formação, o que é que mudava?

Todos os arquitectos deviam aprender a utilizar o BIM nos seus edifícios, para poderem estudar soluções para as suas fachadas e coberturas. O BIM é uma forma de trabalho que nos permite optimizar o nosso projecto e integrar as soluções da sustentabilidade no edifício. Não há outra hipótese. A tecnologia tem de estar ao serviço da arquitectura, e não ao contrário. Os currículos das faculdades são muito teóricos. Repare, no Canadá ou no Brasil, cada ano teórico é seguido de um semestre prático, no terreno, num gabinete a aplicar o que aprendemos.

Não corremos o risco de a tecnologia resolver tudo?

Não há ferramentas tecnológicas ou selos de sustentabilidade que resolvam o problema de uma parede a verter água porque não foi termicamente bem construída. A tecnologia é uma coisa, a escolha das soluções técnicas é outra. Temos sempre de tomar as melhores opções.

As ordens profissionais são um bom aliado?

Não vejo a Ordem dos Arquitectos (OA) como uma aliada da nossa profissão. O BIM começou a ser falado na OA apenas em 2019. Nunca ouvi nada sobre a Passivhaus. Não tenho conhecimento de nenhuma conferência sobre estes temas. Somente a Associação Passivhaus em Portugal divulga, e muito bem, o tema.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 137 da Edifícios e Energia (Setembro/Outubro 2021).