Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 153 da Edifícios e Energia (Maio/Junho 2024).
Mais de 50 % das emissões de gases com efeito de estufa (GEE) resultam da actividade dos centros urbanos e a ambição da descarbonização só é possível com um contributo firme por parte das cidades e das suas estratégias para os edifícios. Priorizar o autoconsumo renovável, promover incentivos fiscais ou a partilha de excedente de energia pelos bairros das cidades são alguns dos factores em cima da mesa.
“Uma cidade comprometida com o futuro” é o ponto de partida do Plano de Acção Climática Lisboa 2030 (PAC 2030), que, em 2021, estabeleceu o compromisso de atingir a neutralidade carbónica até 2040, começando com uma redução de 70 % das emissões já em 2030. Uma ambição que vem em linha com a actividade do município na última década e que em 2020 lhe valeu o galardão de Lisboa Capital Verde 2020.
“Neutralidade climática, resiliência e inclusão” são as palavras fortes de um instrumento, o PAC 2030, que pretende estruturar uma linha de acção em matéria de integração e gestão das políticas para erradicar a pobreza energética, promover o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos no caminho da descarbonização. Na prática, o tema das alterações climáticas, que já tem vindo a ser colocado no centro da agenda política da cidade, assume com este compromisso uma nova dimensão. Um desafio a que se junta a ameaça do aumento da temperatura média anual da cidade e a diminuição da precipitação anual, segundo as projecções do PAC 2030.
Portugal assumiu o objectivo de descarbonização em 2050, no âmbito do Roteiro para a Neutralidade Carbónica, aprovado em 2019. Um compromisso que surge a par das metas definidas pela Comissão Europeia com a apresentação, nessa altura, do Pacto Ecológico Europeu, uma estratégia de longo prazo para os países europeus. No ano seguinte, o Plano Nacional de Energia e Clima 2030 avançou no mesmo sentido, permitindo reunirem-se, assim, as condições e o enquadramento para os programas e planos regionais ganharem músculo. São definidos vários eixos no âmbito das Grandes Opções do Plano ou através do Plano de Acção Climática orientados para a cidade de Lisboa, uma cidade com quase três milhões de habitantes e que emprega cerca deum milhão e meio de pessoas e uma das mais seguras da Europa “que vê diariamente o seu número de utilizadores a crescer”, lê-se no PAC 2030.
É neste contexto que o sector dos edifícios é visto como uma das peças-chave para o sucesso de qualquer plano para as cidades europeias e, neste caso, para a cidade de Lisboa. Acresce que, segundo o PAC 2030, “o crescente perfil da cidade como destino turístico foi apoiado por uma estratégia orientada pela reabilitação de edifícios, espaços públicos e bairro”.
ACÇÃO CLIMÁTICA: Lisboa tem hoje uma posição clara em matéria de combate às alterações climáticas. Subscreveu o Pacto dos Autarcas para o Clima e Energia em 2016, desenvolveu e aprovou o Plano de Acção Local para a Biodiversidade (2016), a Estratégia Municipal de Adaptação às Alterações Climáticas (2017) e o Plano de Acção de Energia Sustentável e Clima (2018). Em 2019, o município aderiu
à rede C40 Cities, reafirmando a responsabilidade de cumprir os objectivos do Acordo de Paris, através da implementação do presente Plano de Acção Climática.
Resta, por isso, perceber qual a situação da cidade de Lisboa no que toca aos edifícios. “Lisboa tem, na sua maioria, um parque edificado anterior à existência da actual consciência colectiva quanto à importância do conforto térmico ou à possibilidade de os edifícios incluírem soluções de produção local de energia ou de baixo consumo energético”, explicam à Edifícios e Energia os responsáveis pelo pelouro do Urbanismo da câmara municipal de Lisboa (CML). À data dos Censos 2021, o parque edificado de Lisboa era composto por pouco mais de 49 mil edifícios. De acordo com a Carta Municipal de Habitação 2023-2032, instrumento que estabelece as metas da próxima década para a habitação, “mais de metade dos edifícios foram construídos antes de 1960, tendo já ultrapassado o seu período de vida útil”. Os Censos de 2021 revelaram que cerca de 1 700 edifícios clássicos carecem de reparações profundas e que cerca de 4 400 têm necessidades médias de reparação. Perto de 13 mil precisam de pequenas reparações e cerca de 30 mil não evidenciam necessidades de reparação.
Actualmente, Lisboa tem à volta de 324 mil fogos, somando 300 mil fogos privados e 24 mil fogos municipais. Segundo o PAC 2030, os primeiros representam habitações privadas construídas, na sua maioria, antes de 2006, data em que foi lançado o Sistema de Certificação Energética. A falta de informação detalhada sobre os edifícios não certificados é, desde já, um dos entraves ao traçado de uma fotografia pormenorizada do parque edificado na capital e das suas necessidades energéticas. Eduardo Silva, director técnico e financeiro da Lisboa E-Nova – Agência de Energia e Ambiente de Lisboa, reforça essa dificuldade. “Sempre que existe informação nova tentamos avançar, mas, de momento, face aos dados actuais, não é possível termos uma caracterização exacta daquilo que é o edificado em Lisboa”, afirma.
De acordo com as estatísticas do Sistema de Certificação Energética dos Edifícios, mais de 190 mil edifícios (o somatório de fracções habitacionais e de serviços) no concelho de Lisboa têm certificado energético e 70 % das habitações têm certificado com classe igual ou inferior a C, o que significa que têm média ou grande necessidade de reabilitação. Ainda assim, Nuno Clímaco, engenheiro e técnico na agência Lisboa E-Nova, compara os valores dos Censos de 2011 com os dos Censos de 2021 e refere que “há cada vez menos edifícios devolutos na cidade e [que] houve uma melhoria considerável [em termos] do número de edifícios com grandes necessidades de reparação”.
Seja como for, a reabilitação energética está no centro de todas as estratégias e sem ela não se chega às metas definidas. Importa, por isso, acompanhar o PAC 2030 e perceber onde estamos neste momento.
A VISÃO PARA A CIDADE DE LISBOA
Segundo os responsáveis pelo Urbanismo do município de Lisboa, “para além das intervenções que estão a ser realizadas no âmbito da reabilitação dos edifícios municipais de habitação, melhorando, por exemplo, o isolamento térmico e a estanquidade de vãos e paredes exteriores, ou da inclusão de sistemas de produção local de energia, como o que já existe na cobertura do Edifício dos Paços do Concelho, a câmara municipal de Lisboa quer promover a construção e/ou reabilitação de edifícios de elevada performance energética ambiental, através de incentivos urbanísticos ou de reduções em taxas municipais”.
Mas será o PAC 2030 para cumprir? A estratégia solar para Lisboa é uma das bandeiras para a neutralidade carbónica da cidade em 2050 e as razões são evidentes. Segundo este plano de acção, “a radiação solar total que incide nos telhados da cidade representa uma quantidade de energia equivalente a sete vezes o consumo de electricidade da cidade, 44 % dos telhados têm boa e muito boa exposição solar e o potencial de geração de electricidade solar é igual a 95 % do consumo de electricidade em Lisboa em 2016”. A plataforma SOLIS assume um papel muito importante na promoção da tecnologia solar e na sensibilização para a sua incorporação. Mas já lá vamos, porque são vários os constrangimentos que se colocam a este PAC 2030.
Segundo a vereação do Urbanismo da CML, muito do edificado da cidade “foi recentemente objecto de intervenções de reabilitação ao abrigo do regime de excepção quanto ao cumprimento dos standards energéticos da actualidade, sendo pouco provável vir a ter, a curto prazo, obras gerais que venham a integrar, por exemplo, isolamento térmico na envolvente externa (paredes e coberturas) ou sistemas de aproveitamento do nosso imenso potencial solar térmico”.
“Por outro lado, na grande maioria, os edifícios encontram-se fraccionados em propriedade horizontal, os condomínios dispõem de fundos de reserva apenas para fazer face a operações de manutenção corrente e os proprietários provavelmente não têm folga financeira para suportarem obras de fundo porque adquiriram as suas fracções recorrendo a empréstimos bancários”, continua a mesma fonte.
Posto isto, a vereação do Urbanismo da CML comenta ainda o seguinte: “Este quadro, que encontramos em Lisboa [tal] como nas demais zonas do país, remete as adaptações do edificado após a construção e sua consequente descarbonização para um prazo indeterminado e a um ritmo que não se compatibiliza com as metas municipais e até nacionais, pelo que estamos a estudar o modo como outros países se têm estruturado para apoiar financeiramente a antecipação das obras necessárias, mas ainda não temos soluções concretas para apresentar”.
Os regimes de excepção vigoraram durante muito tempo e coincidiram com grande parte da vaga de renovações da cidade de Lisboa. Estes documentos desoneravam os promotores a aplicarem a regulamentação energética nacional e a investirem em soluções renováveis. Uma herança difícil de recuperar. A esta dificuldade junta-se a falta de capacidade financeira das famílias e de investimento público. Uma realidade transversal a toda a Europa e identificada na recente revisão da Directiva sobre o Desempenho Energético dos Edifícios como prioritária e essencial para o cumprimento do Fit for 55, um pacote legislativo referente à energia e ao clima cujo objectivo é atingir a meta da União Europeia de redução das emissões líquidas em 55 % até 2030, traçando o caminho para se atingir a neutralidade carbónica até 2050.
Para que os cidadãos sejam parte da transição climática em Lisboa, como aponta o PAC 2030, é necessário tornar mais acessível a informação sobre os incentivos fiscais e dar a conhecer a forma como funcionam e como se processam as candidaturas. “Às vezes, as pessoas fazem obras e não têm noção de que se fizerem uma melhoria de eficiência energética podem ter acesso a mais benefícios fiscais”, refere Nuno Clímaco.
A pensar no edificado já existente, o PAC Lisboa 2030 pretende actuar em três frentes, nomeadamente em mecanismos de incentivo, incluindo instrumentos fiscais, na implementação da Loja do Clima como local de apoio para cidadãos e empresas, e na difusão de campanhas de sensibilização em massa e junto de associações de moradores e juntas de freguesia, por exemplo.
MEDIDAS, PRECISAM-SE!
Para a mudança acontecer são precisas medidas nacionais e locais concretas e muita vontade política porque há margem para que sejam criadas medidas locais que vão ao encontro das ambições dos municípios. De acordo com a vereação do Urbanismo da cidade lisboeta, “está a ser revisto o Regulamento Municipal que aprova o Sistema de Incentivos a Operações Urbanísticas com Interesse Municipal, no sentido de serem atribuídos créditos de construção às operações urbanísticas de edificação ou de urbanização que integrem soluções cuja performance energética ambiental vai para além das actuais exigências da regulamentação geral”.
“O nosso Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Lisboa (RMUEL) já tem um conjunto de artigos dedicados à melhoria do desempenho energético dos edifícios e à racionalização de recursos naturais e energéticos nos quais a cidade concretiza as opções de projecto a privilegiar. Preconiza-se, por exemplo, que o projecto de novos edifícios ou de alteração profunda de edifícios existentes deve promover o bom desempenho energético, através, designadamente, da instalação de um sistema central de climatização, da utilização de sistemas ou técnicas construtivas de climatização passiva, do isolamento da cobertura e das fachadas, da estanquidade e do corte térmico dos vãos e da instalação de coberturas verdes”, referem os responsáveis.
O SOL DE LISBOA
“O sol de Lisboa é uma oportunidade” e quem o diz é o PAC Lisboa 2030, com base em dados da plataforma SOLIS. Apesar de todo o potencial que existe, a verdade é que a maioria dos telhados tem pouco espaço para módulos de energia solar que transformem os raios de sol em energia eléctrica ou térmica. “Estamos a falar de uma cidade com prédios e edifícios multi-familiares com uma área útil de ocupação muito significativa face à área de telhado disponível para produzir energia”, salienta Nuno Clímaco. “O solar é só uma pequena parte de toda a transição que tem que acontecer”, reitera, acrescentando que “a estratégia da cidade para a descarbonização dos edifícios terá de passar, em primeiro lugar, pela aposta em intervenções passivas. Colocar isolamento, substituir janelas e instalar sombreamentos são algumas das reabilitações possíveis. O passo seguinte são os sistemas activos, como a instalação de ar condicionado e de bombas de calor”.
A transição energética implica adaptação e não se concretiza sem a colaboração e o envolvimento dos cidadãos. O PAC Lisboa 2030 prevê a electrificação dos consumos com uma previsão da taxa de impacto na cidade na ordem dos 62 % para 2030. E mesmo que o cidadão esteja aberto a soluções mais sustentáveis, como os equipamentos renováveis, a verdade é que esta escolha pode ser um processo complicado: “por exemplo, quando as famílias fazem uma remodelação de uma cozinha ou o esquentador se avaria, normalmente, as soluções para substituição acarretam dificuldades de integração”, salienta Nuno Clímaco. Isto porque, muitas vezes, uma bomba de calor, por exemplo, não cabe no espaço do esquentador e precisa de uma ligação ao exterior. Perante estas condicionantes, o consumidor acaba por ser obrigado a pensar duas vezes antes de optar por sistemas mais eficientes.
Para que os cidadãos sejam parte da transição climática em Lisboa, como aponta o PAC 2030, é necessário tornar mais acessível a informação sobre os incentivos fiscais e dar a conhecer a forma como funcionam e como se processam as candidaturas.
CENTRO HISTÓRICO: UM CASO POR SI SÓ
Nem todos os edifícios são iguais na cidade de Lisboa. E o centro histórico? Que entraves existem nesta zona da capital? O facto de um edifício ser antigo ou classificado enquanto património cultural por parte do instituto público Património Cultural (antiga Direcção-Geral do Património Cultural – DGPC) pode dificultar a sua reabilitação energética.
Existe, portanto, uma necessidade de entendimento entre aquilo que é a preservação do património e aquilo que tem de ser a transição energética. “É óbvio que existem edifícios que são classificados [assim] e, por um lado, percebe-se a reticência, nomeadamente pelo facto de se querer manter aquilo que é o valor patrimonial ou da paisagem, mas, face àquilo que tem sido a evolução na área da produção de renováveis, [o Património Cultural] também se tem adaptado a todas estas condicionantes”, explica Eduardo Silva.
Na baixa lisboeta, os entraves administrativos são também uma realidade. Por vezes, existem regulamentos que colidem uns com os outros e que dificultam – ou impedem – a implementação de melhorias nos edifícios. É por isso que Nuno Clímaco reitera que “tem de haver muito trabalho de conciliação entre património, eficiência energética e regulamentos, que ainda não se adaptaram a esta transição energética que é necessária”. Existem ainda estratégias nacionais que “chocam” com a regulamentação local do centro histórico de Lisboa. “Estamos a falar de objectivos do Plano Nacional de Energia e Clima e do Roteiro para a Neutralidade Carbónica, que, por exemplo, prevêem a instalação massiva de isolamentos térmicos e de bombas de calor, o que, na prática, colide com a regulamentação local”, clarifica o engenheiro.
O IMPACTO NA ESTÉTICA
A instalação de soluções de isolamento na parte exterior de um edifício pode ser, segundo Nuno Clímaco, uma questão problemática. Existem soluções construtivas que “em muitas zonas chocam com o espaço público, porque podemos estar a falar de acrescentar cerca de dez centímetros a uma fachada”. Esta intervenção pode desalinhar o edifício em relação às restantes fachadas e “roubar” espaço público, algo especialmente indesejável em ruas do centro histórico que são estreitas por natureza. Embora [isto] seja uma solução que traz conforto e qualidade de vida para os ocupantes, “os regulamentos a nível nacional e municipal não permitem este tipo de intervenções”.
Quando a certificação energética ainda dava os seus primeiros passos, os grandes vãos envidraçados com pouco sombreamento eram o “go to” nos apartamentos que então estavam em construção. Actualmente, com o aumento dos períodos de ondas de calor, já foram registados casos de sobreaquecimento nessas habitações, uma situação que naturalmente causa desconforto aos ocupantes, explicam-nos os responsáveis da Lisboa E-Nova. A procura de soluções para colmatar o problema – como a instalação de sombreamento na zona exterior da habitação – pode tornar-se numa batalha com o autor do projecto de arquitectura, uma vez que altera a estética do edifício.
Segundo estes responsáveis, outra situação com impacto estético é a substituição, por exemplo, de uma caldeira por um sistema de bomba de calor porque estes últimos sistemas têm de comunicar com o exterior. Em sentido contrário, uma intervenção para a qual já existe solução é a alteração para janelas com um maior isolamento térmico. Apesar de também terem de estar em harmonia com as restantes janelas do edifício, actualmente, essa já é uma questão mais fácil de contornar pela possibilidade de personalização em termos de materiais e cores, por exemplo.
REGULAMENTOS ENQUANTO FACILITADORES DA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA
“Qualquer um dos projectos que está em fase de licenciamento neste momento junto da câmara [municipal] poderá ser uma oportunidade perdida, face àquilo que é a ambição da cidade em tornar-se climaticamente neutra”, menciona Eduardo Silva. Nos últimos anos, “um conjunto muito significativo de fracções que foram reabilitadas, e uma boa parte delas no centro histórico da cidade, acabou por não ter em consideração estas questões que se podem traduzir em conforto térmico e que contribuem para a ambição da neutralidade climática”.
PROJECTO LOJA DE ENERGIA DA LISBOA E-NOVA
No sentido de ajudar os lisboetas a tornarem as suas casas mais eficientes do ponto de vista energético, a Lisboa E-Nova – Agência de Energia e Ambiente de Lisboa está a desenvolver a criação de um balcão único (one-stop-shop). A ideia é concentrar nesta loja todos os temas relacionados com a eficiência energética, a descarbonização da cidade e a electrificação e, assim, servir como apoio para que “os cidadãos que estão a fazer obras em casa, e que podem não ter muita literacia energética ou que não estão a ter um grande acompanhamento do projecto, possam ser encaminhados pela Direcção de Licenciamento da câmara [municipal] para a Loja de Energia para darem um valor acrescentado à sua obra de reabilitação em termos de eficiência energética”, explica Nuno Clímaco.
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