Uma visão e uma estratégia com pouca aderência à realidade e às necessidades das pessoas e dos edifícios têm sido alguns dos principais problemas do país, defende Hélder Gonçalves. Para este Investigador Principal do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), podemos inverter esta situação se houver mais colaboração, definição clara das prioridades e uma mensagem simples: “Temos de fazer políticas para as pessoas”.
O LNEG chegou a ser consultado para colaborar com o Governo no âmbito do novo quadro regulamentar que acompanha a transposição da nova directiva para os edifícios?
Os governos e as diferentes tutelas nem sempre actuam da mesma forma, há os que interagem muito e outros que não. No caso das directivas dos edifícios, esta é uma matéria que foi atribuída à DGEG (Direcção-Geral de Energia e Geologia) e à ADENE (Agência para a Energia). A metodologia que conduziu às primeiras transposições eram mais abrangentes no que se refere ao envolvimento institucional, das associações e de especialistas na matéria, agora a metodologia é mais fugaz e menos continuada. O LNEG é um laboratório de investigação que foca a sua actividade no desenvolvimento tecnológico na inovação e continua a desenvolver actividade que pode contribuir nessas áreas, mas a parte legislativa, neste caso, é da responsabilidade da DGEG.
Mas o LNEG esteve sempre envolvido naquilo que tem sido feito ao nível dos edifícios.
Sim, é verdade, na perspectiva energética da sustentabilidade e da integração de renováveis no edificado urbano.
E há quanto tempo é que essa prática terminou?
Fez-se até 2013, com a transposição da reformulação da Directiva Europeia sobre o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD), publicada em 2010. Com a transposição da Directiva publicada em 2018, os procedimentos e a metodologia é que foram alterados. Passou-se o mesmo com outras instituições. Há, no entanto, outras áreas onde temos uma enorme proximidade com planos estratégicos em desenvolvimento, como, por exemplo, na área dos biocombustíveis, com a criação de um sistema semelhante ao Sistema de Certificação Energética de edifícios (SCE), na área da bioenergia e das energias renováveis, entre outras. Mas, de facto, na área dos edifícios deixámos de participar no processo regulatório de forma consistente. A metodologia agora adoptada difere consideravelmente, não tendo sido criados grupos de trabalho alargados envolvendo instituições nacionais e que, no passado, tiveram um papel da maior relevância, nomeadamente na elaboração dos textos legislativos de 2006 e 2013, conducentes à transposição da EPBD de 2002 e 2010, respectivamente.
Essa ausência traz alguma vantagem?
Face ao papel crucial dos edifícios nas metas para a energia e clima, preconizadas quer pelo PNEC 2030 (Plano Nacional Energia e Clima) quer pelo RNC 2050 (Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050), esta abordagem não é nem positiva, nem benéfica. Pessoalmente, não compreendo a razão, pois só há vantagens em todos continuarmos ligados a estes temas. Começámos antes de 2002, aquando da primeira EPBD, e contribuímos decisivamente para o SCE, numa perspectiva conjunta com muitas instituições de várias áreas científicas e técnicas, incluindo associações e ordens profissionais. De alguma forma, havia uma visão estruturante para a área da energia nos edifícios e que culminou no SCE. Depois, o processo foi evoluindo e os gestores do SCE, a DGEG e ADENE, adoptaram formas de trabalhar diferentes, mais restritas e menos participativas. Esta metodologia é redutora, na minha opinião, e lamento que tal tenha acontecido, porque há muitas outras perspectivas em várias instituições, como a nossa, ou noutros institutos de investigação e na academia. Existem muitos trabalhos e conhecimento que se desenvolvem em projectos e redes de investigação dentro da área dos edifícios, com avanços muito interessantes e que poderiam contribuir para melhorar todos esses processos. O que vemos é que há uma visão “parcial” dos problemas do país e são tomadas decisões que nem sempre são as mais adequadas para a especificidade sectorial.
E qual é essa visão?
É uma visão com pouca ligação à realidade. Fala-se em grandes números, existem grandes planos, mas tudo isto deveria focalizar-se em medidas mais realistas e mais exequíveis. Repare, as estratégias têm de ser priorizadas de alguma forma. Um aspecto são os edifícios residenciais novos, outro são os existentes, e ainda outro os edifícios de serviços. Não basta dizer o que vai ser um NZEB (Nearly Zero Energy Building) porque não se podem apenas debitar intenções com a certeza de que as coisas irão acontecer. Como chegar aos NZEB? É preciso uma estratégia que seja exequível, senão nada acontece e só ficam as boas intenções. Há experiências que vão sendo realizadas, mesmo cá em Portugal, numa pequena escala ao nível do bairro ou das comunidades. Mas também questiono se será isto o mais importante para os edifícios. Por certo, não é. Os grandes edifícios de serviços são os grandes consumidores e o que se fez nesse sector? Muito pouco. E na reabilitação do parque edificado? Estes sectores terão de ser o alvo mais importante.
Falta envolver e integrar o conhecimento na estratégia para os edifícios?
Claro que sim. Existem centros de investigação, empresas, universidades e tudo está a mudar muito rapidamente. As questões da energia têm impactos reais na saúde e na vida das pessoas e não me refiro só à factura energética, que, claro, também é da maior importância. A forma como olhamos para o sector dos edifícios deve ter como objectivo o bem-estar das pessoas no seu dia-a-dia, em termos de qualidade de vida (conforto) e de saúde. Há um déficit muito grande em vários sectores na área dos edifícios, principalmente na qualidade do projecto e nas boas práticas, que conduz, muitas vezes, a resultados muito deficientes no que diz respeito à utilização da energia. Deveríamos olhar para a nossa realidade e actuar de forma mais consentânea. Há especialistas em todas as áreas que têm esta perspectiva e a consideram fundamental. Temos de fazer políticas para as pessoas.
“A DGEG e ADENE adoptaram formas de trabalhar diferentes, mais restritas e menos participativas. Esta metodologia é redutora, na minha opinião, e lamento que tal tenha acontecido, porque há muitas outras perspectivas em várias instituições, como a nossa, ou noutros institutos de investigação e na academia.”
Falou em saúde, a QAI (Qualidade do Ar Interior) está de novo a ser abordada, não corremos o risco de voltar a fazer tudo por reacção e atabalhoadamente?
Corremos, claro! Temos de aprender com os erros do passado. Para não fazermos precipitadamente, importa identificar o que é fundamental. E isso traduz-se em não cair em exageros ou produzir centenas de medidas que só contribuem para uma amálgama de diplomas que a pouco ou nada irão conduzir. Temos de hierarquizar o que é mais importante, e se a pandemia revelou que a QAI não pode ser esquecida e que é necessário promover a ventilação, é também necessário que a regulamentação avance nesse sentido, e que, de uma forma simples, explique “o que é ventilar”. É abrir janelas? Reforçar os sistemas mecânicos? É preciso identificar de uma forma muito concreta aquilo que é necessário fazer e, para isso, há especialistas, engenheiros e indivíduos muito habilitados que podem colaborar. Não vale a pena estarmos a inventar a roda, temos de actuar com mensagens acessíveis. É necessário tirar lições do passado e simplificar. Se as orientações forem muito complexas, nada irá acontecer, à semelhança do que se passou com o Programa de Eficiência Energética na Administração Pública (Eco.AP). Os ministérios iriam implementar o programa e dar o exemplo, mas acabou por se fazer muito pouco. A metodologia tem de ser diferente. Não podemos apontar para os milhões de euros que vamos receber, e que poderão não ser suficientes, sobretudo agora quando as famílias e as empresas estão em grandes dificuldades. Temos de reconhecer as necessidades imediatas existentes.
Provavelmente, temos muito caminho antes dos NZEB. Estes últimos anos foram um retrocesso na qualidade dos edifícios?
Sem dúvida que temos e por isso insisto que é preciso hierarquizar, porque, se não fizermos agora as melhores opções, isso vai reflectir-se mais à frente. Temos de ser capazes de dar a informação correcta aos gestores, aos utilizadores e às empresas de manutenção dos edifícios, para que saibam dar a resposta adequada nas diferentes situações. E estamos a falar da saúde, das questões financeiras e de muitas outras questões. Existem muitos peritos e empresas com conhecimento nestes sectores. Os cenários de decisão que existem hoje ainda são predominantemente reactivos.
Para atacar os problemas, falou na necessidade da multidisciplinariedade, acha que se deveria criar uma comissão, à semelhança do que se fez no passado, que olhasse para todas estas questões de uma forma integrada?
Acho que sim. Esse passo teria sido importante, bem como que fosse assumida uma continuidade e que as comissões acompanhassem e reflectissem o seu conhecimento nas revisões regulamentares futuras. Deveria existir uma perspectiva diferente, aberta, o que não se verifica neste momento.
Não sente que os edifícios são permanentemente mal tratados e que essa realidade se agrava quando há problemas económicos? Não andamos apenas a reboque das obrigações de Bruxelas?
Penso que sim e, mesmo assim, sempre no limite dos prazos ou mesmo excedendo-os. A perspectiva é sempre de última hora. Esse grupo ou comissão existiu em tempos, com todos os sectores envolvidos e no seio do qual eram debatidos estes assuntos. Hoje, teríamos de trazer mais vertentes, tais como a saúde pública, o urbanismo e sectores que pudessem integrar uma perspectiva de futuro, porque os tempos vindouros são complexos. Ao visitar o nosso país este ano, constatei que a miséria no edificado continua a prevalecer. As pessoas no interior das suas habitações passam frio, desenvolvem várias doenças associadas e continuam a manter a mesma atitude e o mesmo comportamento. É preciso conhecer a realidade no terreno e verificar se as pessoas têm condições económicas para ligar o aquecimento, se os equipamentos existem ou se estão em boas condições de funcionamento. Não é suficiente um modelo teórico e reactivo às “Directivas” de Bruxelas para tomar decisões, por melhor que sejam as intenções. As entidades deveriam assumir um protagonismo diferente, em que os edifícios teriam de ser uma prioridade, o que nem sempre é fácil. As prioridades são outras: a electrificação e as renováveis. Aspectos positivos e da maior importância, mas têm de ser contextualizados numa realidade mais fina em termos das regiões e do país real.
O investimento nos edifícios não é visível e é muito caro. Será por isso que os edifícios não são prioritários?
Acho que sim. Os valores apontados para uma estratégia a longo prazo são muito elevados. Estou convencido de que, se conseguíssemos priorizar intervenções numa estratégia mais objectiva para os edifícios, poderíamos sentir o seu impacto, num curto e médio prazo também no país. Quando temos vários ministérios ou tutelas a tratar de aspectos fulcrais para os edifícios, é fundamental um esforço de coordenação entre as partes específicas em função da tipologia de intervenção, o que nem sempre é fácil. Mas isto é apenas um exemplo dos constrangimentos que temos.
Se queremos olhar para o futuro, já não podemos pensar sectorialmente. Esse é um ponto de viragem fundamental para os edifícios. Quando acha que vamos dar esse passo?
Vamos ter de o dar. E a tecnologia vai ajudar, até porque a digitalização já está a acontecer. O sistema energético vai sofrer alterações que poderão ser provocadas mais pelas empresas do que pela regulação. Aliás, as empresas que estão no sistema já estão na dianteira, e a legislação vai aparecer para resolver os problemas como a flexibilização de consumos, a produção local, a gestão da procura, o armazenamento, a disponibilização e comercialização de energia e outras questões que ainda estão pouco desenvolvidas.
Temos um quadro regulamentar a ser afinado para o mercado descentralizado, nomeadamente na lógica do produtor-consumidor-comercializador…
E comunidades mais pequenas que se estão a organizar e isso vai acontecer com escala e muito rapidamente.
Qual a explicação para termos abandonado o solar térmico? Essa não é uma dor muito grande para uma instituição como o LNEG, que, há décadas, ajuda a desenvolver esta solução?
É uma situação incompreensível e inexplicável porque nos remete para o perigo de tudo passar a ser eléctrico em pouco tempo. Até as águas quentes sanitárias correm o risco de não utilizaram o solar térmico e recorrer-se à energia eléctrica de uma forma massiva. Se temos tanta electricidade disponível, para que é que precisamos de solar térmico? Este é um raciocínio que exige cautelas. Já procurei alertar para que esta situação, que, do ponto de vista do mix energético e termodinâmico, é um erro. É um equívoco estarmos a aquecer água com electricidade. Lamentavelmente vamos sendo atropelados por práticas ou decisões que nem sempre servem da melhor maneira o país. A electrificação está a dominar as decisões, mas não nos podemos esquecer de que também temos um potencial enorme no solar térmico. Tudo deve ser aproveitado, sucede que estas questões não são discutidas. Realizámos o 17º Congresso Ibérico e 17ª Congresso Ibero-americano, que fez 40 anos dedicado à energia solar, onde o solar térmico ocupa um papel muito importante. E estamos a falar de solar térmico de baixa e alta temperatura. É claro que, ao nível do país, poderíamos fazer mais. Há uma disseminação de responsabilidades ao nível das tutelas e nem sempre há integração de políticas. Estes são os problemas mais evidentes e paulatinamente vamos continuando. O futuro vai chegar rapidamente e estas questões irão colocar-se.
Ainda em relação à electrificação, o fotovoltaico sozinho não é suficiente?
É fundamental descentralizar e temos quatro milhões de unidades familiares com capacidade para serem produtoras de electricidade renovável via solar fotovoltaico. Há um enorme potencial para as receber, mas aí passamos para uma outra mentalidade, outra hierarquização das prioridades que tem a ver com a proximidade. É uma estratégia mais próxima das famílias e das empresas, na qual é possível criar capacidade própria de produção de energia. Estamos a falar de comunidades, de bairros ou empresas que passam a produzir o que consomem, mas que também podem vender o seu excedente à rede ou a outras comunidades mais próximas. O fotovoltaico é muito importante, mas o solar térmico também, se pensarmos nesta lógica. A um nível macro, é mais fácil lidar com a produção e venda de energia, porque as renováveis já têm um peso enorme no sistema nacional e no sistema espanhol. São dois sistemas que funcionam como que agregados, porque não há armazenamento. Podemos armazenar essa energia em baterias que ainda têm um valor elevado, tal como acontece nos pequenos sistemas fotovoltaicos. Podemos ainda vender esse excedente à nossa vizinha Espanha ou produzir hidrogénio. Pessoalmente não estou contra esta estrutura macro, mas, se pensarmos a um nível local mais familiar, a energia fica mais barata e acessível. Era importante existir essa comissão de acompanhamento de todas estas questões e não falo apenas para debater as questões relacionadas com os edifícios, mas também da complexidade do mix energético, das renováveis, etc. Deveria existir um maior acompanhamento por parte das ordens profissionais e das associações. Esta discussão alargada e transversal é, nesta altura, cada vez mais pertinente. Para tal, podemos dar o exemplo de algumas escolas que, neste momento, estão a funcionar sem sistemas mecânicos de renovação do ar e sem a possibilidade de abrir as janelas.
É um problema antigo.
Sim, mas que durante esta pandemia ganhou maior premência e que tem de ser resolvido no âmbito das necessidades de saúde actuais. Seria fundamental existir um maior dinamismo das várias entidades que abordam este problema.
Essa ausência de integração é um problema só nosso ou também de outros países?
Não é um problema só nosso, é também comum em muitos outros países, os que melhor actuam são aqueles em que a assumpção das responsabilidades está mais próxima do cidadão e das empresas. Nesses países, tudo funciona melhor, há menos regulação e procedimentos, concretiza-se o que tem de ser executado. As “Concerted Actions” são projectos comunitários que envolvem todos os Estados-Membros focados na implementação das directivas europeias, e podemos constatar que há problemas muito similares aos que aqui discutimos. Mas importa encontrar soluções que nos redireccionem noutras perspectivas mais integradoras, apenas isso. Há muitos grupos internacionais organizados que discutem estas questões há anos. E estou a falar de empresas, da academia ou de institutos de investigação. São temas que têm de estar na ordem do dia. Nós somos uns front runners na área da energia e do ambiente. Temos feito desenvolvimentos extraordinários, mas sempre numa lógica sectorial, ao contrário de uma perspectiva global já amplamente adoptada noutros países. Podemos ter esta visão e até tomar decisões de política pública sectorial, só que depois existe um enorme espaço vazio entre a decisão política e a sua implementação.
Adicionalmente, podemos ter o problema de as pessoas saberem como se fazem as coisas bem feitas, mas não as fazerem por razões várias?
Sim, temos também um problema que passa por questões de ética profissional e todos temos consciência disso. Mas há diversos motivos para isso acontecer. A remuneração reduzida é uma das razões para que se caia facilmente numa fraca qualidade, a que acresce uma fiscalização deficiente. Precisamos de recuperar a confiança, mas esse processo tem de ter início no topo. O sistema tem de ser credível e têm de existir mecanismos de controlo e acompanhamento do que é feito. Há uma degradação que gerou desconfiança em todo o sistema. Os grandes planos, tal como são desenhados, não têm tempo para que exista consistência e realismo, e, portanto, esses planos deveriam ser acompanhados numa perspectiva mais alargada. Por seu lado, os profissionais ou os técnicos devem ter uma visão mais evolutiva. A prática clássica não vai persistir muito mais tempo. Vamos ter novos equipamentos, novos sistemas e soluções e esse vai ser um enorme desafio no mercado. Essa evolução tecnológica está já a originar mudanças e as ordens e as associações dos vários sectores terão de adoptar outra abordagem em relação às grandes questões. As nossas entidades governativas, como a DGEG ou a ADENE, só teriam a beneficiar se trabalhassem em rede com especialistas dos diferentes sectores. A multidisciplinariedade é não só fulcral bem como urgente!
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 132 da Edifícios e Energia (Novembro/Dezembro 2020).