Artigo publicado originalmente na edição de Julho/Agosto de 2024 da Edifícios e Energia

Temos finalmente a versão número quatro da Diretiva sobre o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD)! Demorou bastante tempo a sair, por razões ligadas à renovação dos edifícios existentes, já aqui discutidas no último ano. Por óbvia curiosidade, fui comparar esta versão com a proposta da Comissão publicada em dezembro de 2021 e ver o que foi alterado, isto é, o que os Estados-Membros (EM) não aceitaram da proposta da Comissão e quais os compromissos que foram feitos. Após relatos de comentadores especializados de que os EM tinham destruído a proposta da Comissão e de que a nova EPBD tinha perdido toda a sua força queria ver bem os detalhes.

Primeiro, uma apreciação global. A EPBD foi, e ainda é, um documento legal importantíssimo, que faz inveja a colegas que gostariam de ter algo semelhante nos seus países fora da União Europeia (UE). Americanos ficam tristes com a falta de uma política semelhante no outro lado do Atlântico; ingleses, até agora com legislação que segue a terceira versão da EPBD (ainda estavam na UE então), pedem ao seu governo para avançar com uma revisão de acordo com esta nova EPBD; outras geografias têm legislação inspirada nas anteriores versões da EPBD e, provavelmente, evoluirão na mesma direção num futuro mais ou menos próximo. A grande evolução desta quarta versão da EPBD é a introdução dos aspetos ligados à sustentabilidade e aos materiais usados na construção, o carbono embebido, se bem que ainda
de forma algo ligeira e muito embrionária.

Queria que o que digo a seguir não fosse entendido como uma crítica à EPBD no global, pois ela é um excelente instrumento e tem mesmo que existir. Como diz o título deste texto, quero focar-me apenas no que a EPBD estabelece como metas para a renovação dos edifícios existentes, sem a qual nunca teremos um setor dos edifícios totalmente descarbonizado em 2050. Com efeito, a EPBD teve efeitos muito significativos desde o início deste século, de que se destacam os seguintes:

• Os EM passaram a ter regulamentos vinculativos que impuseram grandes melhorias na eficiência energética dos edifícios. Por exemplo, em Portugal, os regulamentos exigem agora níveis de isolamento térmico e de qualidade dos envidraçados, entre outros, que, quando comparados com os do primeiro RCCTE [Regulamento das Características de Comportamento Térmico dos Edifícios], nos deixam muito envergonhados com o que era exigido há 20 anos… Mais de cinco centímetros de isolamento era então só ilusão utópica para “doidos”; nem isso foi possível impor então, mas hoje já é uma coisa normal. Vidro duplo? Isso era luxo totalmente desnecessário. A EPBD mudou drasticamente – para melhor – a regulamentação nacional, por muitas críticas que ainda lhe possamos tecer (uns por acharem os requisitos exagerados, outros por acharem que pecam por defeito).

• Os edifícios passaram a ter certificados energéticos. Bem, podemos duvidar da sua qualidade, pode ser apenas um papel para cumprir uma burocracia (que qualidade pode ter um certificado que custa cento e poucos euros para um apartamento, incluindo a taxa de registo que a ADENE cobra?), mas não deixa de ser um instrumento útil como indicador da qualidade térmica do edifício ou da fração. E, embora muitos não queiram saber do certificado, com a nova EPBD, espera-se que venha a haver mais uniformização entre certificados a nível europeu (até agora, não se conseguem comparar dois certificados emitidos em dois países diferentes – aliás, nem se conseguem sequer distinguir os certificados nacionais emitidos segundo modelos de cálculo diferentes, em função da data da emissão do certificado…) e que os certificados sejam a base para estabelecer metas e prioridades para a reabilitação (se houver reabilitação, claro), nomeadamente para definir quais são os piores edifícios (os prioritários para renovação).

• Nos sistemas de AVAC de maior dimensão, passou a ser obrigatório instalar equipamentos eficazes de controlo e realizar inspeções regulares para assegurar um funcionamento eficiente – pelo menos, em teoria. Entre nós, para usar uma expressão simpática, temos uma versão light deste requisito, pelo menos, em termos de implementação prática.

• Deu-se início à renovação dos edifícios para se atingir um setor dos edifícios totalmente descarbonizado até 2050. Foram estabelecidos objetivos muito ambiciosos, mas, até agora, com resultados muito limitados, face aos elevados montantes necessários e à falta de mobilização da população. Só uma pequena percentagem (da ordem dos 1-2 %) dos edifícios existentes já foi reabilitada, a grande maioria à custa de apoios públicos a projetos de quem já estava sensibilizado para esta temática, que tinha meios para investir e que, provavelmente, até já pretendia recuperar o seu edifício, e que obviamente aproveitou, e bem, os apoios.

A grande evolução desta quarta versão da EPBD é a introdução dos aspetos ligados à sustentabilidade e aos materiais usados na construção, o carbono embebido, se bem que ainda de forma algo ligeira e muito embrionária.

Estes grandes objetivos, presentes desde a primeira versão da EPBD, foram evoluindo em ambição e qualidade com as sucessivas revisões da diretiva, em particular o [desígnio] da renovação do setor dos edifícios e o da total descarbonização do setor, plano que foi consolidado com o lançamento da Renovation Wave [Vaga de Renovação], do Fit for 55 [Objetivo 55], e do Green Deal [Pacto Ecológico Europeu], que a Comissão Europeia lançou no período de 2019-21.

E esta quarta nova versão da EPBD (Diretiva 2024/1275, de 24 de abril, publicada em 8 de maio de 2024 no Jornal Oficial da UE) vai ter algum impacto adicional neste esforço de renovação? À primeira vista, o artigo 9.º da nova diretiva implica obrigações para os EM atingirem objetivos de renovação aparentemente ambiciosos. Mas, depois de ter sido noticiado que o texto final da EPBD, versão de 2024, era um desapontamento, vale a pena ir aos detalhes e ver a versão original da proposta da Comissão – COM(2021) 802 final; 2021/0426 (COD) – e comparar os dois documentos. A conclusão só pode ser uma: não há qualquer semelhança entre a proposta inicial da Comissão para o artigo 9.º e a versão que foi aprovada na nova EPBD. Há umas palavras-chave comuns, como renovação, objetivos para 2030, 2040 e 2050, financiamento, viabilidade económica, etc., mas a semelhança acaba aqui. O contraste é como do preto para o branco. Explorando um pouco mais em detalhe, deteta-se o que descrevo em seguida.

A proposta inicial da Comissão pretendia que os EM promovessem a renovação de todos os edifícios públicos e não residenciais para classe F até janeiro de 2027 e classe E até janeiro de 2030. Os edifícios residenciais (públicos e privados!) teriam os mesmos objetivos para janeiro de 2030 e de 2033, respetivamente. Claro que os EM disseram que estes objetivos eram utópicos, que isto seria um pesadelo para a população, que não havia fundos disponíveis, nem no setor público, nem no privado! E, em minha opinião, tinham totalmente razão. Seria, portanto, de esperar uma solução de compromisso mais realista, e o que saiu publicado na nova EPBD foi um impor quase nada.

Passou-se de oito a 80, ou melhor, do 80 pretendido pela Comissão para o oito (sejamos otimistas, pois acho que nem ao oito se chegou) que os EM aceitaram como meta para 2030/2040. E o que foi que aceitaram?

Vejamos bem a distribuição no tempo: 16 % até 2030 (compreende-se, é já “amanhã”!), mais 10 % até 2033 (3 % por ano? Depois de se ter conseguido 1-2 % em quatro anos, de 2020 a 2023?). E os restantes 74 %? Em dezassete anos, até 2050, 4,5 % por ano? Se a meta é renovar TODOS os edifícios até 2050, temos como metas 16 % até 2030, 26 % até 2033, e 100 % até 2050… Esta quarta versão da EPBD nada fixa para 2033-2050.

Para edifícios não residenciais, os EM devem fixar um valor máximo de necessidades (kWh/ano.m2) com base num levantamento estatístico do parque construído em 2020. Nada se diz sobre como esse valor é fixado, se pela base ou pela média ou pelo topo. Fica à vontade do freguês. Pode ser um valor próximo da base ou do topo da distribuição das necessidades. Cada EM decidirá o que mais lhe convém! Uns serão mais ambiciosos, outros ficar-se-ão pelo mínimo que não seja tão ridículo que a Comissão não aceite. E, depois, os EM devem garantir que 16 % (note-se bem: apenas 16 %!) dos edifícios estão acima desse limiar até 2030 e 26 % até 2033. Trocando por miúdos: com a distribuição de consumos de energia de 2020, fixa-se o valor máximo de consumo que essa tipologia não deve exceder e lança-se a meta de garantir que 16 % do parque construído fica melhor do que esse valor em 2030. Bastar fixar um valor máximo que já abranja 16 % dos edifícios existentes com melhor desempenho e nada haverá que fazer. Ou, mais pragmaticamente, o valor fica nos 12-14 % e incentiva-se meia dúzia de edifícios a renovar (há sempre edifícios que se vão renovar todos os anos) para, assim, se atingir facilmente os 16 % e cumprir a diretiva.

Pior ainda. Vejamos bem a distribuição no tempo: 16 % até 2030 (compreende-se, é já “amanhã”!), mais 10 % até 2033 (3 % por ano? Depois de se ter conseguido 1-2 % em quatro anos, de 2020 a 2023?). E os restantes 74 %? Em dezassete anos, até 2050, 4,5 % por ano? Se a meta é renovar TODOS os edifícios até 2050, temos como metas 16 % até 2030, 26 % até 2033, e 100 % até 2050… Esta quarta versão da EPBD nada fixa para 2033-2050. Teremos de esperar pela sua próxima quinta versão, daqui a meia dúzia de anos, imagino. Será que vai cair a meta de renovar 100 % dos edifícios e fixar-se um objetivo mais realista?

E, claro, ficam isentas todas as intervenções sem viabilidade económica, obviamente. Que se saiba, hoje, instalar uma bomba de calor para substituir uma caldeira a gás não tem viabilidade económica. Vai ser facílimo isentar qualquer edifício de uma renovação não desejada pelos seus proprietários, com um estudo fácil feito por um qualquer engenheiro minimamente competente. Muitos edifícios existentes vão escapar por este crivo.

Para os edifícios residenciais, a meta é ainda mais global. Trata-se de reduzir o consumo de energia primária de todo o setor em 16 % até 2030 (relativamente ao valor de 2020), 20-22 % até 2035 e depois gradualmente, até garantir a descarbonização total até 2050. Mais uma vez, 16 % de redução em dez anos, mais 4-6 % nos cinco anos seguintes (ainda menos, proporcionalmente, que 16 % em dez anos) e os outros 80 % nos 15 anos seguintes? É mesmo para acreditar nisto? Ou vai mesmo cair aqui a meta dos 100 %?

A EPBD especifica ainda que pelo menos 55 % destas reduções devem corresponder aos 43 % dos edifícios com pior desempenho a nível nacional. Num contexto tão vago, em que os valores estatísticos têm sempre grande incerteza, acho muita piada a números não redondos e tão precisos como 16 %, 26 %, 43 % e 55 %… Mais ou menos quanto % de erro estatístico? Os 16 % cheiram mesmo a um compromisso entre quem queria menos do que 15 % e os que queriam valores mais altos –16 % é mais do que 15 %, mas muito pouco mais, e todos salvam as aparências.

Tirando conclusões deste cenário, é mesmo para acreditar que será com esta EPBD que vamos descarbonizar o setor dos edifícios até 2050? Traçam-se metas (algumas algo vagas, que vão permitir aos EM cumprirem as metas sem grande esforço, se assim o entenderem) que cobrem até cerca de 25 % dos edifícios existentes até 2033-2035, e empurra-se a renovação de 75 % do parque para os últimos 15 anos!

Como tudo isto será difícil de conseguir, a nova EPBD, ainda no mesmo artigo 9.º, diz que os EM têm de criar e oferecer apoios financeiros adequados. Imprimindo notas? Endividando-se? Como vai aparecer tanto dinheiro para as renovações? Vai ser interessante ver a nova estimativa da Estratégia Nacional para a Reabilitação dos Edifícios que os EM terão de completar até 2025. Em Portugal, a anterior dizia que eram necessários apenas 143 mil milhões de euros, uma mera bagatela. Qual será a estimativa atualizada no final de 2025, após a clara inflação que a todos nos afetou e à qual o setor da construção não escapou?

Bom, o artigo 9.º ainda continua com mais especificações (são mais de três páginas de jornal oficial em letra pequena), mas são detalhes que nada adiantam a esta análise.

Tirando conclusões deste cenário, é mesmo para acreditar que será com esta EPBD que vamos descarbonizar o setor dos edifícios até 2050? Traçam-se metas (algumas algo vagas, que vão permitir aos EM cumprirem as metas sem grande esforço, se assim o entenderem) que cobrem até cerca de 25 % dos edifícios existentes até 2033-2035, e empurra-se a renovação de 75 % do parque para os últimos 15 anos! Chama-se a isto empurrar o problema com a barriga. Como nenhum político (democrático…) agora no poder conta estar ainda no governo daqui a dez anos, os líderes atuais lavam as mãos do problema atual e deixam a resolução do problema para os que vierem a ser os líderes no futuro. E estes, depois, dirão que herdaram um caos, que os anteriores governos foram incompetentes, e negociarão de novo prazos mais alargados…

Ficarei muito satisfeito se a realidade me desmentir até ao fim de 2025, data-limite para a transposição (pelo historial nacional, e por todo o trabalho que vai ser necessário fazer, dificilmente teremos transposição em Portugal antes do fim do prazo), e/ou até 2030, 2033 e 2035, as datas em que, supostamente, vamos ter de cumprir todos os objetivos traçados, se estes forem verdadeiramente ambiciosos. Em 2025 começaremos logo por ver qual o valor-limite fixado para os edifícios não residenciais. Vai ser ou não ambicioso, ou vai ser um valor para inglês ver (ou, neste caso, para a Comissão Europeia engolir) que permita a Portugal cumprir facilmente as metas dos tais números “redondos” dos 16 % ou 26 %?

Já pouco me espanta. Produziu-se um texto complexo para o artigo 9.º da EPBD que satisfaz toda a gente:

• A Comissão diz que tem uma EPBD melhor, mais exigente, e que, se bem aplicada, vai acelerar a descarbonização dos edifícios;

• Os Estados-Membros mais ambiciosos dispõem de um texto que lhes permite fazerem progressos concretos no sentido da descarbonização dos edifícios;

• E os Estados-Membros mais resistentes podem usar a linguagem do artigo 9.º para encontrarem soluções para fixarem valores que exijam muito pouco e que os deixem cumprir a EPBD sem realmente obrigar a uma melhoria significativa dos edifícios existentes, mantendo o statu quo quase inalterado.

Esta EPBD, em termos da renovação dos edifícios, é um belíssimo exercício de como chegar a um compromisso que permite tantas escapatórias que cada EM a poderá aplicar a seu bel-prazer. A Comissão Europeia fez uma proposta inicial totalmente inviável e os EM devolveram a gentileza impondo um conjunto potencialmente quase vazio para os EM que assim o desejem. Que grande vingança! Se calhar, merecida.

Onde ficará Portugal? No grupo dos países exigentes ou no grupo que vai impor qualquer coisa pouco significativa? Eu tenho algumas suspeitas, mas há que esperar até 2025 para ver o que vai acontecer. Espero que o esforço de renovação dos edifícios existentes em Portugal nos próximos anos venha a ter um futuro mais “risonho” do que tem no presente, mas será? A nova EPBD será um progresso ou um embuste?

Espero que a realidade me venha a desmentir. Nada me deixaria mais satisfeito.

As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.