Estamos a viver momentos únicos. De um lado, a questão da saúde e tudo o que ela implica e, do outro, uma série de circunstâncias, coincidências e fragilidades que nos remetem para uma superação colectiva necessária. A grande questão está em saber se estamos à altura. Este momento será também um bom teste para entendermos onde está o nosso nível de responsabilidade económica e social. Um processo nada fácil.
Comecemos pela pandemia onde já tudo se disse. Aqui espera-se um sistema que dê resposta a vários níveis de prioridades, mas que dê conta deles e rapidamente. E uma das respostas passa pela criteriosa e transparente gestão de recursos logísticos e financeiros.
Depois, temos um bolo financeiro único que vamos receber dos nossos amigos europeus. Não há almoços grátis, mas, antes de nos preocuparmos com eles e pensarmos no que vem mais tarde, devemos concentrar-nos na gestão destes fundos. Sugiro não o fazermos numa lógica de bóia de salvação para resolver apenas os nossos sintomas mais imediatos. Isso seria o descalabro. O nosso país está doente e não é só o vírus da Covid-19 que nos deve atormentar. Temos muitas coisas a fazer antes de recebermos tanto dinheiro.
A Itália com Draghi já nos mostrou que é possível. Em apenas dois meses, um sistema pesado e disfuncional na gestão das contas públicas e dos fundos europeus realinhou as suas prioridades. O ambiente ou a transição digital são fundamentais, sim, mas as pessoas estão primeiro e isso requer uma outra forma de fazer política e de gerir o dinheiro dos cidadãos. A justiça social e a agilidade numa economia criadora de emprego e de progresso exigem reformas. Uma motivação que muda tudo e que nos fique de exemplo.
Neste momento, tudo aponta para uma reconstrução, mas uma reconstrução do Estado que nos últimos anos não fez qualquer investimento público e que continua centrado em si e nos seus processos. Reconstruir não é só reformar o Estado. É preciso tornar a Administração Pública mais forte, sim, e com isso muscular o sistema junto da sociedade e da economia.
As reformas são possíveis também cá. O nosso Plano de Recuperação e Resiliência é bonito, mas não chega. É vago e dá para tudo. Pode funcionar como um bom briefing, mas é curto, muito curto. A bazuca não cura se não formos directamente às nossas feridas estruturais. 2020 ficou marcado pelo ano com mais baixa taxa de execução orçamental. Centeno fugiu para o Banco de Portugal e nós ficámos com menos sete mil milhões de euros para aplicar onde mais precisamos.
Acresce que 43 % é quanto falta executar no actual Portugal 2020 e o próximo quadro comunitário já está quase a arrancar. Tem sido assim em Portugal. Os fundos europeus não se gastam, os programas não se cumprem, as coisas ficam por fazer e ninguém fica indignado. Agora, imaginem se formos obrigados a devolver a Bruxelas dezenas de milhares de milhões de euros porque continuamos incompetentes e irresponsáveis. É que a maior armadilha da democracia pode estar nas instituições, no nosso sistema e na burocracia que sistematicamente criam entropias a tudo e mais alguma coisa. Continuarmos sem visão estratégica para a competitividade e estrangulados na nossa incompetência é uma escolha só nossa. Talvez seja por isso que Kafka continua tão actual. Vivemos neste nosso processo tão português quanto surreal, que resulta, no fim do dia, naquilo que é negação do Estado de Direito e democrático que construímos.
O Estado, a inovação digital, a inteligência… servem os cidadãos e as empresas? Claro que servem, mas não chegam. Provavelmente foi esta a primeira pergunta que Mario Draghi deixou no parlamento quando apresentou a sua “nova reconstrução”. Por cá, devemos fazer estas e outras perguntas. A bazuca vem a caminho e o que queremos?
Neste momento, tudo aponta para uma reconstrução, mas uma reconstrução do Estado que nos últimos anos não fez qualquer investimento público e que continua centrado em si e nos seus processos. Reconstruir não é só reformar o Estado. É preciso tornar a Administração Pública mais forte, sim, e com isso muscular o sistema junto da sociedade e da economia. Ou seja, na base destes processos, temos de agilizar e de dotar a Administração Pública das competências necessárias para servir as pessoas, as comunidades e as empresas. É que são duas motivações que nascem logo separadas à partida. Uma aponta para a manutenção do sistema e a outra para a transformação do país. Qual vamos escolher?
Nota de abertura originalmente publicada na edição nº134 da Edifícios e Energia (Março/Abril 2021)
As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores.