Edifícios residenciais, entidades municipais ou empresas podem trabalhar em rede para produzirem energia renovável eléctrica ou térmica que chegue para todos. A União Europeia está a investir nestes modelos de autossuficiência e partilha de excedentes energéticos à escala do bairro e das cidades para se aproximar da neutralidade carbónica. Mas os resultados demoram, as metas aproximam-se e as conclusões, ainda reduzidas, tornam o investimento e a implementação de novos projectos mais difíceis.

Neste desígnio que é a descarbonização, as cidades assumem um papel central. Basta pensarmos que mais de 50 % das emissões de gases com efeito de estufa resultam da actividade dos centros ur­banos. É por esta razão que todas as estratégias de mitigação do problema têm no centro os edifícios e, agora, os bairros. A visão holística que sempre se im­pôs em qualquer intervenção ganha, agora, outra di­mensão com a necessidade da partilha da energia. Ou seja, podemos começar pelas fracções isoladas, por reabilitações energéticas mais ou menos profundas, pela manutenção dos aspectos construtivos ou pelos sistemas de eficiência energética, mas, no final do dia, o balanço energético de uma cidade tem de ser nulo do ponto de vista das emissões. Uma utopia? Pelo menos, a ambição está em cima da mesa, os projec­tos multiplicam-se, criam-se redes colaborativas de conhecimento e partilha de informações, e as metas já existem. Não, já não é uma utopia e a pergunta está em como lá chegar.

Imaginemos um mundo perfeito no qual temos to­das as condições in house, via renováveis e tecnologia, para responder às nossas necessidades energéticas. Mais, para além da autossuficiência energética, temos ainda a possibilidade de partilhar o nosso excedente com a vizinhança (que pode não conseguir ser total­mente autónoma, pelas mais variadas razões). A boa notícia é que já estamos a caminhar nesse sentido. Os bairros de energia positiva existem e estão a espa­lhar-se pela Europa, incluindo Portugal. A electrifica­ção das cidades e dos edifícios já está a consolidar-se, como sabemos, e os edifícios interligados permitem a partilha de energia eléctrica uns com os outros, quase como vizinhos que trocam açúcar ou ovos. Ao junta­rem-se, permitem a existência daquilo a que se chama um Positive Energy District (PED). Com os objectivos ambiciosos da União Europeia relativos à transição energética a situarem-se na neutralidade carbónica até 2050, adaptar zonas já existentes ou criar bairros de energia positiva de raiz são uma resposta à racio­nalidade e eficiência energética dos edifícios, já que o edificado é responsável pelo consumo de 40 % da energia (mais do que os sectores da indústria e dos transportes).

Em teoria tudo parece perfeito, mas estaremos em condições de implementar soluções com este nível de ambição num tão curto espaço de tempo? Até 2025, a União Europeia tem a meta de dinamizar 100 PED através do SET [Strategic Energy Technology] Plan – Action 3.2, cujos dados servirão, depois, para di­namizar a replicação noutras geografias — e um dos entraves é o financiamento. Estamos a falar de pro­gramas que precisam de um investimento avultado e de planos de negócio detalhados e avançados. As re­gras e a legislação não são iguais em todos os casos, não há interligação suficiente entre administrações locais e todos esses factores fazem deste caminho um processo difícil, mais lento do que o desejável e, em muitos casos, desmotivador.

Mas, afinal, o que são os bairros de energia positiva e que casos de sucesso existem? A um ano do objecti­vo da concretização dos 100 PED, em que ponto estão os projectos?

Numa área definida e delimitada, apontam-se es­tratégias e desenvolvem-se e implementam-se so­luções urbanas inteligentes. O objectivo, como sa­bemos, é a autossuficiência energética num primeiro momento e a produção de excedente de energia com recurso a fontes renováveis, sempre que possível, num segundo momento. Nas fachadas ou nos telha­dos, os painéis solares fotovoltaicos ou térmicos são soluções adequadas para a produção de energia eléc­trica ou térmica para a alimentação de equipamentos de climatização ou para aquecimento de águas. As bombas de calor ou o recurso à geotermia são ou­tras opções renováveis com os mesmos objectivos. E, feitas as escolhas, o que se passa num edifício pode replicar-se no que está ao lado. E no outro a seguir. E assim sucessivamente. Todos interligados, partilham energia entre si, suprindo, deste modo, as necessida­des uns dos outros em cada momento.

Em teoria tudo parece perfeito, mas estaremos em condições de implementar soluções com este nível de ambição num tão curto espaço de tempo? Até 2025, a União Europeia tem a meta de dinamizar 100 PED através do SET [Strategic Energy Technology] Plan – Action 3.2, cujos dados servirão, depois, para dinamizar a replicação noutras geografias — e um dos entraves
é o financiamento.

Questões técnicas quanto à distribuição ultrapas­sadas, o importante é que a balança esteja sempre equilibrada. A rede pode ser apoiada por baterias para armazenamento, que assumem o comando quando a procura é maior do que a produção. É uma lógica de central que inclui no sistema outras dimen­sões como a mobilidade eléctrica ou a gestão dos re­síduos. As tecnologias, cada vez mais avançadas, são a base de toda uma rede monitorizada por um sistema inteligente capaz de prever as necessidades, gerir os processos e garantir a máxima optimização e eficiên­cia dos sistemas. “As soluções passam por tecnologias disruptivas, de digitalização, para a interacção entre edifícios e entre a microrrede dos edifícios e a rede urbana”, explica à Edifícios e Energia Laura Aelenei, responsável pela área de investigação “Energia no Ambiente Construído” do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG) e co-presidente do pro­jecto PED-EU-NET (Positive Energy Districts Euro­pean Network).

Numa só cidade podem conviver vários PED. Quan­do a energia eléctrica ou térmica produzida ultrapas­sa as necessidades daquele bairro em concreto, pode haver uma oferta direccionada para o exterior, e esta é a maior virtude destas soluções com a criação me­canismos de compensação numa escala superior e idealmente para toda a cidade e em vários domínios. “Um PED junta o ambiente construído, a produção energética, as necessidades energéticas, a sustenta­bilidade e a mobilidade, com vista à redução do uso de energia e das emissões de gases com efeito de es­tufa. Um PED ajuda a criar valor acrescentado e incen­tivos para os utilizadores. Para além disso, a sua im­plementação deve resultar num padrão de qualidade de vida elevado e acessível para os seus habitantes”, explicam-nos os responsáveis de comunicação da JPI Urban Europe, que coordena a iniciativa da União Europeia.

Desafios e dificuldades

Um dos objectivos da União Europeia é a multiplica­ção destas comunidades um pouco por todas as áreas urbanas. Sucede que estamos a um ano de cumprir uma meta emblemática e a dúvida está em saber se conseguimos lá chegar. “Nesta fase, não sei se esta­mos perto dos 100 PED projectados em toda a Europa, mas acho que é fazível”, revela Laura Aelenei, embora reconheça que “se calhar a meta foi um pouco ambi­ciosa em termos temporais”.

Um bairro de energia positiva construído de raiz e pronto a estrear seria sempre o cenário ideal, mas ir­realista dada a morfologia das cidades existente. Nas grandes cidades pode não haver espaço físico para desenvolver estes bairros e a capacidade financeira é variável. A segunda opção passa por adaptar as áreas urbanas já existentes, o que, para Laura Aelenei, “é mais difícil, em particular nos centros históricos, onde há uma série de constrangimentos, como as li­mitações arquitectónicas para a integração de reno­váveis”. Localmente, é necessário planear, financiar e regulamentar e, segundo a investigadora, “existem três factores essenciais para que se possa passar à prática: investigação aplicada das tecnologias, do planeamento e da inovação; criação de living labs [laboratórios vivos]; e capacitação local, juntando os principais interessados, desde municípios, empresas, [até] agências de energia e moradores”.

Para ajudar a atingir o objectivo dos 100 PED, foram criados os conceitos de cidade farol [projecto-mãe que serve de guia para localidades sucessoras] e cida­des seguidoras [que implementam metodologias da primeira]”, conta Laura Aelenei. Nesta fase, ainda não há conclusões para apresentar. “De modo mais efec­tivo, começamos a analisar e a criar uma base de da­dos para agregar a informação. No entanto, a base de dados ainda é escassa. É preciso chegarem os formu­lários com as informações e têm de estar completos. Neste momento, devemos ter à volta de 50 [cidades], mas esperamos ter os dados até ao final do ano.”

100 PED
Um dos passos para atingir as metas do Plano Estratégico Europeu para as Tecnologias Energéticas passa pelo programa Distritos e Bairros de Energia Positiva para um Desenvolvimento Urbano Sustentável, que engloba o planeamento, a monitorização e a clonagem de 100 bairros europeus de energia positiva até 2025. Com a participação de 20 Estados-Membros da União Europeia (entre eles Portugal), a iniciativa é conduzida pela JPI Urban Europe e foi apresentada em 2018 no SET Plan Action 3.2. A este projecto, juntam-se redes de financiamento, indústria, unidades de investigação e organizações de cidadãos, todos focados numa transição energética conjunta.

Segundo a investigadora do LNEG, também tem sido necessário reajustar o foco dos objectivos, por­que, para além da componente ambiental, estas questões precisam também de ser analisadas numa vertente económica e social ampla. “O programa Horizonte Europa [projecto da União Europeia de 2021-2017 que quer materializar prioridades políti­cas, nomeadamente na transição ecológica] mudou um pouco e, à luz das definições, um PED tem de ter um balanço energético positivo, mas também pon­derar questões sociais ou financeiras. Inicialmente, o desenho estava concentrado nos edifícios e na rede e era difícil incluir estas últimas características, me­nos quantificáveis. Só que percebemos que a questão da interacção com as pessoas e o cidadão são funda­mentais nestes processos de transição energética.” A incorporação de variáveis subjectivas, que não pas­sam por fórmulas matemáticas, estará a dificultar um pouco a progressão dos trabalhos e, segundo Laura Aelenei, a atrasar os resultados positivos do projecto.

O que está a ser feito em Portugal

A grande novidade do início de 2024 está na cidade do Porto. É lá que está a ser implementado o projecto As­cend – Accelerating poSitive Clean ENergy Districts in Europe, que arrancou no final de Janeiro. Financiado pela União Europeia, tem Lyon (França) e Munique (Alemanha) como cidades-farol. O Porto é uma das cidades seguidoras e a área abrangida vai da zona da Foz do Douro a casas de habitação social em Massa­relos e Lordelo do Ouro.

“O PED do Porto fica numa zona que inclui edifícios municipais, a Fundação Serralves e habitação social. O objectivo é aproveitar alguns projectos que o muni­cípio já tem, nomeadamente a integração de soluções renováveis em edifícios municipais e [em edifícios de] habitação social, para criar uma comunidade de energia já com grande dimensão”, explica à Edifícios e Energia Inês Reis, gestora do projecto por parte da AdEPorto – Agência de Energia do Porto, entida­de que divide as responsabilidades da iniciativa com a Associação Porto Digital, a Fundação Serralves e a Águas do Porto. Será também criado um digital twin [gémeo digital] para aquela zona da cidade. “O objec­tivo é fornecer ferramentas às entidades municipais que lhes permitam antever quando será necessário fazer intervenções nos edifícios, manutenção nas ins­talações fotovoltaicas e por aí fora.”

“Estamos a criar comunidades de energia usando vários edifícios municipais. O objectivo é evoluir para um conceito de bairro positivo, mas com base em edifícios municipais. Neste momento, estão a ser implementadas intervenções em habitações sociais.” – Ricardo Barbosa

Neste bairro de energia positiva, há cinco factores que trabalham em conjunto, nomeadamente edifí­cios com zero emissões de carbono, redes energé­ticas inteligentes, espaços públicos e de mobilidade descarbonizados, ferramentas digitais e cidadania activa. Segundo Inês Reis, esta última vertente é uma das mais importantes. “Queremos criar uma ligação muito forte com a comunidade, entre escolas e mo­radores das habitações sociais. A participação activa dos habitantes, alunos e funcionários municipais é fundamental para obtermos resultados.”

O projecto deverá durar cinco anos e tem um orça­mento de 20 milhões de euros, com meio milhão alo­cado ao Porto. “Para implementação de algumas me­didas, haverá investimento do município que ainda não conseguimos antever”, explica Inês Reis. “Estamos a criar comunidades de energia usan­do vários edifícios municipais. O objectivo é evoluir para um conceito de bairro positivo, mas com base em edifícios municipais. Neste momento, estão a ser implementadas intervenções em habitações sociais”, diz Ricardo Barbosa, da AdEPorto, à Edifícios e Ener­gia. O processo é demorado e “adaptar soluções de outros países à realidade portuguesa nem sempre é fácil. Não é o mesmo contexto, até em termos de con­sumo de energia”.

“Seguimos exemplos de soluções e metodologias, mas é um work in progress. As definições regula­mentares do que é um PED não são claras e só isso já dá discussões interessantes”, admite Ricardo Bar­bosa, que refere dificuldades idênticas na iniciativa SPARCS, que na Maia segue um modelo semelhan­te, inserida no projecto finlandês VTT – Research Center.

La Fleuriaye, um caso de sucesso

“Criar distritos e bairros de energia positiva muda o foco dos edifícios individuais de energia positiva para blocos, tendo em mente bairros, o que significa um novo nível de impacto no desenvolvimento susten­tável urbano e no processo da transição energética”, revela-nos a JPI Urban Europe. O maior número de projectos está localizado na Noruega, em Itália e na Suécia. O Este e o Sudeste europeus estão na cauda da fila. De acordo com o programa, há dois factores que podem explicar essa realidade: diferentes priori­dades legislativas e implementação de políticas para a transição energética que variam de país para país.

Para Laura Aelenei, a discrepância é fácil de expli­car. “Nos países nórdicos ou nos Países Baixos, por exemplo, há um interesse político. Os projectos ga­nham dimensão quando a implementação está ao nível legislativo nacional. Quando há interesse a esse nível, aparecem os fundos. Aqui, em Portugal, isso não acontece.”

Temos de recuar até 2011 e parar em Carquefou (Nantes, França) para descobrir La Fleuriaye. Nesse ano, o plano era claro (mas ambicioso): construir um bairro com base na produção de energia fotovoltaica que respeitasse a biodiversidade e não tivesse im­pacto negativo no meio ambiente. Das 24 habitações individuais, 60 % foram construídas com madeira, tanto na estrutura, como no isolamento, e com recur­so a equipamentos renováveis, painéis fotovoltaicos instalados em todos os telhados.

13 anos depois, “a produção de energia chega a 80 % das necessidades de consumo dos habitantes”, con­firma Olivier Bessin, director geral da Loire-Atlanti­que Développement, responsável pela implementa­ção do projecto. Os números são impressionantes – “37 hectares, com 600 habitações previstas, das quais 393 já foram construídas. Temos 6 000 m2 de painéis fotovoltaicos, 30 habitações unifamiliares de energia positiva, 1 660 m2 de edifícios comerciais e 162 habi­tações sociais.”

Na Suíça também há casos de projectos com balan­ço positivo bem-sucedidos. Hunziker Areal, que fica no Norte de Zurique, tem cerca de 1 200 moradores divididos por 13 edifícios energeticamente eficien­tes, serve de escritório para 150 pessoas, tem lojas e uma creche. A maioria dos edifícios tem uma cons­trução sólida com isolamento térmico. É um espaço que serve de centro de investigação para métodos de construção alternativos e optimizados. Nos telhados, existem painéis solares fotovoltaicos e o calor resi­dual de um data center [centro de dados] municipal é aproveitado para o aquecimento das águas. O Hun­ziker Areal segue o conceito da Sociedade dos 2 000 watts, uma visão na qual cada pessoa não precisa de utilizar mais do que 2 000 watts por hora (na Suíça, um cidadão comum chega aos 6 500 watts). O projecto foi concebido por cinco ateliers de arquitectura e o seu design único vale visitas guiadas ao local.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 152 da Edifícios e Energia (Março/Abril 2024).