Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 157 da Edifícios e Energia (Janeiro/Fevereiro 2025).

Jorge de Brito é professor catedrático no Departamento de Engenharia Civil, Arquitectura e Ambiente do Instituto Superior Técnico (Universidade de Lisboa). Doutorado em Engenharia Civil, a sua área de investigação está relacionada com os materiais, soluções construtivas e ciclo de vida dos edifícios. Para este especialista, “o futuro é brilhante. Vamos continuar a apostar no desenvolvimento de soluções e tenho a certeza de que daqui a 20 anos vamos ter materiais muito aperfeiçoados e que toda a construção será feita com muito menor impacte ambiental”.

A descarbonização da economia e dos edifícios passa por uma intervenção na área dos materiais de construção e uma maior abertura a temas como a circularidade. Como vê estas mudanças?

Na minha investigação, dedico-me especificamente à questão dos materiais e à fase inicial que tem a ver com a sua produção. De facto, a energia incorporada nos materiais é uma percentagem muito significativa da energia total da construção. Dependente do tipo de utilização, pode-se estar a falar em cerca de 30 % ou até 50 % em termos globais. Se se conseguir reduzir esta parcela, pode-se reduzir muitíssimo a energia do processo de construção.

Essa percentagem inclui todo o ciclo de vida dos materiais desde a sua fabricação, colocação em obra, etc.?

Sim, inclui todo o processo construtivo, a fase de utilização e fim de vida dos materiais. Existem cálculos que permitem quantificar a energia que é gasta na produção dos materiais e colocação no local de obra. Há também a questão do transporte. Tudo isso é parte da energia associada aos materiais e essa energia é contabilizável. Por exemplo, para retirar a pedra de um maciço rochoso, é necessária energia e essa é quantificável. Qualquer indústria já tem esses cálculos feitos por uma questão de gestão eficiente do negócio. Do lado do cimento, esse é um ponto muito importante.

O cimento e o betão são materiais muito importantes. Uma cimenteira, hoje, sabe qual é a pegada carbónica dos seus produtos desde o fabrico até ao final do seu ciclo de vida?

Tem necessariamente de saber porque paga impostos sobre o CO2 que emite.

O cimento é um produto central neste caminho que estamos a fazer?

No dia a dia, a percepção daquilo que é o cimento está errada. O cimento armado, por exemplo, não existe. Existe cimento que é um ligante para fazer compósitos como betão ou argamassa, que são os mais comuns. O cimento tem a preponderância que conhecemos porque representa cerca de 90 % da energia incorporada nesses materiais. O betão é constituído por um ligante, que normalmente é o cimento, mas existem outros, e tem uma carga energética elevada. Para além do cimento, o betão tem também água, areia e brita. As argamassas incluem os mesmos materiais do betão, excepto a brita. O cimento é muito importante porque tem uma enorme carga energética associada.

O que se está a fazer para reduzir essa carga energética?

A indústria do cimento tem vindo a tornar-se muito mais eficiente do ponto de vista energético. Vemos que, nos últimos 25 anos, tem havido uma redução significativa na pegada energética. No entanto, esta indústria continua a ser a que tem a maior pegada do sector da construção, comparando com os outros materiais. Isto acontece porque se trata de um material completamente dominante e é preciso que as pessoas entendam isto. Quase tudo o que fazemos em termos de estruturas, actualmente, é feito em betão, porque o betão é de longe o melhor material e esta é a questão fundamental. Tendo em conta todas as funções que se exigem na estrutura de um edifício, o betão é muito mais competitivo do que o aço, a madeira ou outros materiais estruturais alternativos. Quando diabolizamos o cimento ou o betão, fazemo-lo fundamentalmente por ignorância. Tendo em conta a sua função, quando comparamos o betão com o aço ou equivalentes, o betão é o mais eficiente. Não obstante o impacte ambiental das estruturas de betão ser enorme, se essas mesmas estruturas fossem em aço, o impacte seria ainda maior. Se fossem em madeira não haveria já florestas e surgiriam outros problemas sérios. Para o bem e para o mal, o betão é significativamente mais competitivo e preponderante. Apesar disso, o betão, e em concreto o cimento, podem e devem reduzir o seu impacte ambiental e isso pode ser feito por várias vias, nomeadamente pela via da optimização da tecnologia, e estou optimista porque, ao longo dos anos, vamos com certeza continuar a melhorar os processos de fabrico. Nos últimos 15 ou 20 anos, esta indústria conseguiu reduzir em 40 % o impacte do fabrico do clínquer, um material que está na base do cimento.

Falou em várias vias para a redução do impacte ambiental do cimento.

Existem mais duas áreas e aqui no Instituto Superior Técnico estamos a trabalhar nesse sentido, substituindo o cimento por substâncias que têm também capacidades ligantes, com a particularidade de poderem ser resíduos ou produtos secundários resultantes de determinadas indústrias, como por exemplo das centrais energéticas, as cinzas volantes. Quando havia centrais térmicas de energia a carvão, estes produtos eram amplamente utilizados na indústria do cimento. Neste momento, já não temos essa possibilidade. No entanto, existem outros materiais ligantes que podem substituir parte do cimento porque têm um impacte ambiental menor por unidade de peso.

Uma outra área que é mais difícil de implementar é a de tentar reduzir o conteúdo em ligantes, dentro da composição do betão. Isso tem uma repercussão instantânea porque reduz as características mecânicas e a durabilidade desse mesmo betão. O que temos de fazer neste momento é trabalhar no sentido de conseguir ter teores de ligantes menores, mas manter, em simultâneo, as propriedades que pretendemos no betão, que é uma equação de difícil resolução.

Ainda temos uma outra área que é a redução dos impactes dos outros materiais. Temos trabalhado muito na questão da reciclagem dos agregados, um tema importante, mas que tem um nível de eficácia relativamente limitado porque os agregados, como a brita e a areia, representam apenas 10 % do total dos impactes do betão. Por isso, a eficácia é pequena. Os outros 90 % estão nos ligantes e é por isso que a ênfase na redução dos impactes deve ser colocada aí. Publiquei um artigo intitulado “The past and future of sustainable concrete: A critical review and new strategies on cement-based materials”, em que são analisadas as diversas estratégias de redução do impacte ambiental do betão.

Podemos dizer que a indústria do betão está em constante actualização e transformação para dar resposta às novas exigências da descarbonização?

Sim e mais do que em qualquer outra indústria. A evolução do aço nas últimas décadas tem sido mínima se comparada com o desenvolvimento do betão.

E a incorporação de resíduos no betão está a ser um desafio? Há por onde crescer?

Os resíduos de que falámos e que podem entrar como ligantes estão a ser considerados há bastante tempo e temos estado a trabalhar nessa área. Nomeadamente as cinzas provenientes da incineração de resíduos sólidos urbanos (RSU), no caso concreto da Valor Sul, que tem uma produção gigantesca de cinzas que resultam da queima do lixo comum. Estamos a tentar usar esse material, após ter sido moído, como substituto do cimento. Os resultados não têm sido muito promissores, mas há outras hipóteses. Estamos a utilizar as cinzas volantes de vários tipos de queima, incluindo a biomassa, para tentar obter bons resultados. Todas estas experiências que temos vindo a fazer têm sido concretizadas sempre à custa de uma perda significativa de eficácia da função do ligante. Tem de se analisar a relação custo-benefício e entender se as reduções de custos e impactes ambientais são suficientemente interessantes para poder aceitar a redução de eficácia. Por outro lado, os agregados reciclados provenientes dos resíduos de construção e demolição são constituídos por matérias minerais na sua maioria, ou seja, betão, argamassas ou cerâmicos. Estes materiais que aparecem misturados podem ser triturados e utilizados como brita ou areia recicladas. A eficácia desses materiais é também inferior à eficácia dos materiais naturais. Portanto, não é garantido que acabem por ser uma boa solução, tendo em conta os três vectores fundamentais: custo, ambiente e desempenho. O que é evidente é que, em algumas situações, poderão ser a melhor solução e noutras não tanto.

Aquela ideia de que o betão vai ser substituído por outras soluções construtivas é uma falácia?

Em 2024, podemos dizer que não vai acontecer. O betão é um produto extraordinariamente eficaz que tem vindo a ser optimizado desde há 150 anos e é um material que, por alguma razão, é muito mais utilizado do que os outros. Repare que o aço chegou à indústria muito antes do betão. Há estruturas de aço desde o séc. XVIII, ou seja, as estruturas metálicas já estão cá há mais tempo. Claro que estão a evoluir, mas não se verifica uma revolução como a que assistimos na área do betão. Há 50 anos, os 20 edifícios mais altos do mundo eram 19 com estrutura de aço e um com estrutura de betão. Neste momento, há 19 com estrutura de betão e uma de aço.

Fala-se bastante de que este caminho da sustentabilidade e da redução da pegada do carbono na construção vai passar pelas soluções modulares. Uma tendência que pode pôr em causa o betão?

O betão baseia-se em ligações químicas que não são reversíveis. Também há pré-fabricação no betão e nada disto é novo ou foi inventado agora. Desde que se começou a fazer tijolos que existe a pré-fabricação. O tijolo é um produto pré-fabricado porque, antes de aparecerem os tijolos, as casas faziam-se de outra maneira. Actualmente, em todas as áreas e materiais é possível ter elementos pré-fabricados. Há pré-fabricação em madeira. É possível fazer pré-fabricação em pedra, embora não seja muito simples. A pré-fabricação no betão é maciça e corresponde àquilo que é feito no mundo todo em termos de estruturas. Em Portugal não é muito popular porque os nossos custos de mão-de-obra não são tão elevados como em muitos outros países. Nesse sentido, a pré-fabricação tem uma vantagem muito significativa porque permite fazer edifícios de uma forma mais rápida e utilizando menos mão de obra. Em países do Norte da Europa, esta realidade tem um impacte maior. Na Noruega, por exemplo, a pré-fabricação é menos prejudicada pelo clima porque as baixas temperaturas desaconselham a execução do betão no local. Depois, a ideia de que a pré-fabricação é necessariamente mais circular é uma ideia que é contrariada pela realidade, porque a reutilização dos elementos pré-fabricados noutros locais implica a adaptação da arquitectura ao conceito. Ou seja, a reutilização de um material passa a impor um determinado tipo de arquitectura. A pré-fabricação tem algumas questões que a tornam menos atractiva, como o facto de as casas poderem ficar todas iguais. Outra razão que torna a pré-fabricação menos atractiva em Portugal do que na Noruega é o facto de existirem sismos no nosso país. Nos maiores sismos, a componente monolítica do betão é fundamental. Um edifício convencional de betão armado e executado no próprio local resiste aos sismos, na medida em que as ligações se vão partindo, mas sem o conjunto colapsar. Há uma diferença fundamental entre romper uma ligação ou colapsar uma estrutura e essa diferença é muito grande nas estruturas monolíticas. As estruturas pré-fabricadas têm o inconveniente de não serem geralmente monolíticas e também o inconveniente de a estética e a arquitectura serem secundarizadas. É possível fazer arquitectura de pré-fabricação de grande qualidade sim, mas isso aumenta bastante o custo. Aquela pré-fabricação pura e dura para fazer muita obra, muito rapidamente e por baixo custos, não conduz a edificações de elevado valor arquitectónico. Posto tudo isto, dá para perceber a razão pela qual, mesmo assim, a construção feita pelos métodos tradicionais, monolítica, ainda é preponderante. Quando se vai para os países do Norte da Europa, os edifícios são todos lineares, têm todos o mesmo aspecto, existem bairros inteiros com as casas todas iguais e aqui em Portugal isso não acontece. Temos uma enorme riqueza de cores, formas ou relevos que, com a pré-fabricação, é mais difícil de obter.

A reabilitação vai ter de avançar em força nos próximos anos em linha com a transição energética e descarbonização dos edifícios.

A questão está em perceber o que é a reabilitação. Reabilitação estrutural é muito importante, mas a reabilitação que se faz em 98 % dos casos não é estrutural. O que é que isto tem a ver com a transição energética? Muito pouco. A reabilitação energética tem uma implicação muito grande na própria construção e pode e deve passar pela substituição de soluções construtivas. Pretende-se obter um determinado conforto térmico que é condicente com o actual tipo de utilização do edifício. Se se tiver, por exemplo, paredes de tijolo perfurado, pode-se colocar ETICS (External Thermal Insulation Composite System) do lado de fora ou então pode-se demolir aquelas paredes e criar outras com melhores características. A questão deve ser colocada ao contrário, perceber o que se pretende e se estamos disponíveis para gastar muito dinheiro para substituir as paredes exteriores. Devíamos estar, mas a realidade é por vezes diferente.

Qual o balanço que faz do nosso parque edificado desse ponto de vista?

É péssimo. A minha casa é de 1974, era um escritório e reformulei-a totalmente, mas não mudei a envolvente opaca. O meu trabalho académico e de especialização está ligado ao betão estrutural dos edifícios, mas as paredes do meu piso, feitas de betão, são uma má solução porque essas paredes são uma megaponte térmica. A solução poderia passar por deitar as paredes abaixo, mas isso tornava a construção muito distinta e cara. A reabilitação energética é algo que por vezes é contrariado pela realidade porque, ou é excessivamente onerosa, ou implica incómodos e consequências ao nível da própria traça dos edifícios, que são incompatíveis com as possibilidades que temos.

Os edifícios da Baixa em Lisboa são todos inadequados do ponto de vista energético. Não podemos considerar deitar abaixo todas as paredes daqueles edifícios, até porque a maioria delas são a própria estrutura do edifício. A reabilitação energética neste tipo de edifícios vai passar por soluções muito pouco eficientes com um reduzido impacte no edifício. Mesmo quando se coloca uma caixilharia tripla, o conforto térmico não é garantido porque a troca de calor e de frio é feita sobretudo através das paredes. Os ETICS que são colocados pelo exterior têm outros constrangimentos na sua colocação. Existem, nas fachadas, ombreiras e vergas das janelas que dificultam a sua colocação. Os ETICS têm uma espessura determinada e, em muitos casos, as cantarias ou outros pormenores com grande significado que temos nas nossas fachadas desaparecem.

Há um conjunto de questões que tornam a reabilitação energética muito complicada nos edifícios antigos. Nos edifícios modernos já é mais fácil porque é possível colocar soluções de impermeabilização pelo interior, entre outras. Há um conjunto de soluções interessantes e eu diria que é fundamental definir o que se pretende obter do ponto de vista energético e depois aplicar os materiais necessários. As soluções de isolamento térmico, de que às vezes se fala e que se consideram ecológicas, como por exemplo as fibras de coco, são más escolhas se estivermos em Oslo ou noutras regiões longe dos coqueiros. Os coqueiros existem por exemplo em S. Tomé e Príncipe e, portanto, as fibras daí obtidas são muito menos ecológicas do que à partida se poderia pensar, em função dos impactes do seu transporte.
Fala-se muito das fibras vegetais como forma de substituir as fibras de vidro ou as próprias armaduras de aço, mas depois não funciona tão bem quanto se gostaria porque têm uma capacidade de resistência muito baixa e problemas de composição. Apesar de muitos colegas continuarem a investir nesta área para encontrar soluções, percebemos que há muitas soluções a serem promovidas cujas vantagens são propagandeadas de forma exagerada.

E como vê os próximos anos?

O futuro é brilhante. Vamos continuar a apostar no desenvolvimento de soluções e tenho a certeza de que daqui a 20 anos vamos ter materiais muito aperfeiçoados e que toda a construção será feita com muito menor impacte ambiental. Estamos a ir nessa direcção, mas é preciso sermos sensatos. Sou um especialista mundial em agregados reciclados para betão, mas o meu entendimento sobre estes materiais é mais restritivo do que era há 10 anos. Os agregados reciclados nem sempre são a melhor solução até do ponto de vista ambiental e económico. Até podem ser uma solução aceitável do ponto de vista tecnológico, mas se os outros dois vectores (ambiental e social) não melhorarem, não vale a pena ser considerada a sua utilização. Temos de encontrar soluções para os resíduos com os quais estávamos a equacionar fazer agregados reciclados para betão e utilizá-los noutras aplicações que não têm o mesmo nível de exigência do betão.