Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 155 da Edifícios e Energia (Setembro/Outubro 2024).
Rui Lameiras é o coordenador geral da Aliança para a Transição Energética, uma rede constituída por 91 parceiros que mobiliza, entre outros, um total de 53 empresas e 26 entidades de inovação e desenvolvimento. O objectivo é, afirma o representante, “descentralizar a digitalização do sector da energia, promovendo, em Portugal, um ecossistema nacional competitivo único à escala internacional”.
Descarbonizar a economia obriga a avançar para as cidades e olhar para os edifícios também à escala local. A Aliança para a Transição Energética (ATE) tem como missão ajudar neste caminho?
A ATE nasce de um conjunto de entidades muito alargado, no sentido de responder aos desafios da revitalização da economia com foco no sector energético. Estamos a trabalhar em diversos aspectos da transição energética, desde as redes até à aceleração de novos negócios ou ao desenvolvimento da economia digital. Esta agenda não se esgota no prazo formal do final do ano de 2025, como está apontado. O objectivo é alavancar os resultados da agenda e fazer crescer a Associação Aliança para a Transição Energética (AATE) como um cluster do sector energético, e, nesse sentido, a internacionalização é um factor-chave. Na prática, esta associação tem como primeira missão a gestão operacional da agenda e a promoção e divulgação dos resultados, mas queremos olhar para lá da agenda e transformar o sector energético no nosso país. Para o efeito, contamos com o contributo de diversas entidades, sejam empresas, institutos, academia, laboratórios… E [queremos também] abrir portas para o exterior.
Qual a dimensão desses contributos? A AATE envolve 53 empresas, 26 entidades do Sistema de Investigação, Desenvolvimento & Inovação, outros 12 parceiros estratégicos e um orçamento de quase 300 milhões de euros.
A agenda está estruturada em seis desafios: descarbonização do sistema energético, reindustrialização e uso circular de recursos, digitalização, descentralização e democratização da energia, mobilidade e indústrias sustentáveis, e, por último, capacitação e aceleração de negócios. Daí estarmos organizados numa perspectiva de 16 work packages e, para o efeito, contamos com um mix de entidades – grandes empresas, pequenas e médias empresas, universidades, laboratórios, institutos e centros de I&D, etc. Actuamos desde a área das redes eléctricas até ao sector-coupling (acoplamento entre segmentos da indústria) nas [áreas] verticais. Ao nível das horizontais, temos a resposta à digitalização com uma plataforma para o sector energético. A circularidade é um tema transversal para a agenda e estamos a criar uma rede de laboratórios colaborativos que possa ajudar as várias entidades do sector energético em Portugal, no sentido de validar protótipos e acelerar a entrada no mercado de vários produtos e serviços. Esta rede tem como objectivo dinamizar a competitividade das empresas. Temos ainda uma parte mais ligada à capacitação e formação de activos, também transversal à agenda e com temas relacionados com a descarbonização. O trabalho da ATE está em garantir a operação e a promoção das várias actividades.
Falou em competitividade. Não somos já bastante competitivos internacionalmente no sector da energia?
Temos players muito importantes, mas se olharmos para Espanha vemos que precisamos de mais competitividade. Em Portugal, há que fazer mais, basta ver que não existe nenhum cluster das empresas de energia em Portugal que permita ajudar as empresas a chegar a outro tipo de oportunidades. Queremos trabalhar e apoiar estas empresas numa lógica internacional mais de conjunto e cooperação. Só assim conseguiremos alavancar as suas potencialidades independentemente da dimensão. Temos grandes empresas que actuam no exterior e até algumas pequenas e médias empresas [que também o fazem], mas se houver uma estrutura colaborativa, via um cluster, tudo se torna mais fácil e mais interessante para o sector energético português.
O mote é a transição energética. Quando falamos nessas empresas, que soluções ou serviços inovadores podemos oferecer?
Podemos oferecer inovação e soluções para diversas áreas ou [diversos] sectores, como as comunidades de energias renováveis (CER), a digitalização, as soluções de digital twins [gémeos digitais] para edifícios ou um trabalho mais de democratização do sector na criação de apps para o utilizador comum. Numa perspectiva de escala, pretendemos dar acesso aos cidadãos a mais informação que, até agora, tem estado alocada a sistemas de gestão mais alargados e complexos. Falo de soluções mais robustas que já começam a aparecer e que orientam o utilizador comum para a eficiência dos consumos energéticos, por exemplo. Falo ainda da possibilidade de as pessoas saberem em tempo real os benefícios das soluções que têm disponíveis e que vantagens poderiam estar a ter com opções mais sustentáveis, ou [de saberem] quando podem colocar a sua energia na rede, etc. No fundo, [trata-se de] criar condições para uma boa gestão dos usos de energia, mas agora numa escala mais pequena, ao nível do utilizador final.
A sensação que temos é de que a tecnologia para a gestão dos usos de energia está a avançar a bom ritmo, mas depois falta-nos a agilidade nos modelos dessa mesma gestão. Concorda?
Sim, a tecnologia já existe, mas temos de a disponibilizar de uma forma simples e acessível.
O cidadão é uma peça-chave para que a descarbonização aconteça?
Sem qualquer dúvida. O cidadão é essencial e as suas preocupações nestas matérias são muito importantes como awareness [consciencialização]. O preço da energia já é um [factor de] awareness per si, mas o facto de as pessoas terem soluções interessantes e poderem decidir é muito aliciante.
Existem ainda muitos constrangimentos nos modelos de gestão energética. A operacionalidade no que se refere às autorizações ou licenças, por exemplo, está ainda a causar vários problemas. A ATE tem alguma estratégia neste sentido?
Sim, é um problema. As várias entidades, como o IAPMEI, estão sensíveis a essas questões e, inclusivamente, fizeram um questionário no sentido de apurarem os problemas existentes ao nível dos licenciamentos e de poderem actuar. [Isto] Sempre numa perspectiva de perceber se os atrasos existentes estão a condicionar o trabalho das agendas. Da nossa parte, o que tentamos fazer é apresentar as dificuldades que existem e, em conjunto com o IAPMEI, tentar acelerar os processos, estabelecendo pontes com outras entidades. As agendas estão estruturadas em termos de objectivos, nomeadamente para produtos, processos e serviços. A última parte do trabalho está muito virada para pilotos demonstradores, o que implica a realização de instalações nas ruas, nas cidades ou nos edifícios que obrigam ao diálogo com várias entidades locais. Agora, é importante e natural que a legislação evolua e nós temos uma posição e uma visão que passam por ajudar a fazer com que isso aconteça e que se crie um quadro legal mais favorável ao sector energético.
A legislação e o enquadramento jurídico já existem, por exemplo, para as CER. Sucede que estes modelos não estão a avançar ao ritmo esperado. Porquê?
Tem sido demonstrado que precisamos de trabalhar um pouco melhor os modelos de negócio. Existem algumas CER que funcionam bem. Existe oferta, mas se calhar não temos, neste momento, uma oferta que permita ter uma maior abrangência, o que poderá vir a ser resolvido com mais empresas e empresas mais musculadas que consigam criar as condições necessárias. Há ainda muito [caminho] por onde avançar e, para isso, é necessário que o modelo seja interessante. O caminho vai ser feito de duas formas. Como ponto de partida, temos a própria evolução e a atenção crescente das pessoas para as questões das renováveis e do armazenamento da energia. Depois, temos entidades ou empresas que apresentam o modelo de negócio e que agregam valor e serviços tendo em vista esses utilizadores. Apesar de haver já bons exemplos, o facto de o investimento necessário ainda ser elevado para o utilizador faz com que os resultados não sejam os esperados. Estou convencido de que o caminho se vai fazer naturalmente. O modelo de negócio também tem de evoluir no sentido de serem criadas novas CER que consigam coexistir no mercado.
H2 SIZANDRO
Produção de hidrogénio renovável em Torres Novas, pela Smartenergy e pelo ISQ, para abastecer a rede pública de gás e as indústrias locais.
CAXIAS LIVING LAB
Iniciativa da Galp, em colaboração com o INESC TEC, a DALOOP e a Cleanwatts, para testar tecnologias energéticas inovadoras e promover a descarbonização na comunidade local.
Considera que o modelo de negócio possa passar pelo desempenho energético e que o investimento se faça pelas poupanças obtidas?
Os modelos de negócio têm de ser afinados e terá de haver uma percepção de que existe um ganho evidente nesta lógica de partilha e de gestão de fluxos. Por outro lado, o utilizador vai sempre tentar ver onde estão os seus benefícios em termos de poupança, o que é normal. Se conseguirmos trabalhar na perspectiva de as a service [tudo como serviço], estendemos o modelo a outro tipo de vantagens ou activos que permitam equilibrar o processo para todos os intervenientes, desde o utilizador até ao promotor. Há outro ponto muito importante que tem a ver com o armazenamento, pois podemos ter outras soluções, como a apresentada recentemente pela GALP, como a reutilização de baterias, o que tem toda a lógica e ainda é pouco utilizada. Temos de trabalhar em várias dimensões neste mix de possibilidades e fazer contas.
Temos muitas soluções para o cidadão para chegarmos a poupanças efectivas?
Exactamente. Existe uma série de factores novos e temos ainda o vehicle to grid, que nos permite através dos carros eléctricos ou plug-in transferir a energia para a rede, o que é interessante. A questão está em saber gerir e dominar tecnologicamente este tipo de fluxos. Neste caso concreto, o carro pode ser um armazenador de energia.
Os edifícios vão ter um papel central como hubs na gestão destes fluxos?
O armazenamento é preponderante e os edifícios têm um papel muito importante nesses sistemas.
E as cidades? A gestão dos fluxos deverá ser vista de uma forma integrada também ao nível dos centros urbanos?
Essa é uma realidade inevitável. Durante muitos anos, trabalhei na área dos transportes e uma das coisas que continuo a achar que faz todo o sentido passa por um conceito, a orquestração, neste caso, a orquestração da mobilidade na cidade. Ou seja, a possibilidade de eu perceber que vai haver um evento e saber como redireccionar [fluxos] ou responder a esses casos. A gestão energética acaba por ser feita dessa forma naturalmente. Todos os edifícios com muito fluxo de pessoas têm uma perspectiva de gestão energética diferente e requerem outro tipo de intervenção. Estes edifícios têm condições para desempenharem um papel mais alargado neste mix de soluções no seio de uma cidade. Mas ainda temos de fazer algum caminho para aí chegar.
Sempre com as renováveis. Mas quando falamos em renováveis falamos maioritariamente em electrificação renovável e em fotovoltaico…
Sim, as renováveis dentro da cidade passam pela electrificação. Agora, é possível gerir melhor os edifícios com outras soluções energéticas que vão para além da tecnologia, como a integração da natureza, por exemplo. Esta é já uma tendência utilizada em muitas cidades como estratégia para o arrefecimento dos edifícios. Existem muitas oportunidades e possibilidades que ainda podem ser exploradas neste caminho e estão sempre a aparecer coisas interessantes – e isso é fantástico.
Esta nova dimensão de incluir a construção nesse mix e na contabilidade da gestão dos fluxos é uma boa notícia, nomeadamente com a circularidade e a gestão dos recursos?
É uma área de actuação, tal como na indústria. Vão surgir melhorias ao nível da térmica, [bem como] nas soluções construtivas e na produção de materiais mais amigos do ambiente. A reciclagem dos materiais na construção é muito importante no desenho de soluções e acaba por ser transversal a outras indústrias.
Um dos eixos da ATE tem a ver com a circularidade e o aproveitamento de recursos. Que estratégias têm definidas nessa área?
Estamos a trabalhar a circularidade numa perspectiva transversal e estamos focados na questão do passaporte digital do produto, que vai ser obrigatório em breve. Muitas das empresas já têm requisitos nesse sentido. Criámos um grupo para trabalharmos a temática do passaporte digital, nomeadamente para sabermos como se vai estruturar este instrumento de uma forma transversal, e, para isso, reunimos com vários sectores e agendas de outras indústrias. O passaporte digital permite-nos conhecer o produto de uma forma muito clara. Especificamente, no caso da ATE, vamos trabalhar casos de diferentes produtos, ciclos de vida, e criar processos que permitam melhorar a circularidade inerente à produção do produto.
Plataforma de Optimização Energética
Gerida pela BrighCity, com a SONAE Sierra, a NOS, o INEGI e o CCG em Águeda, integra a gestão de energias renováveis e outros activos urbanos.
Plataforma Living Lab
Liderada pelo SmartEnergyLab, com a EDP Comercial, o INESC-ID, o Instituto Superior Técnico e a WITHUS, foca-se em soluções de smart living e gestão de recursos energéticos em edifícios e pequenas empresas.
O passaporte digital vai ser uma ficha técnica sobre o produto em toda a sua dimensão ambiental…
Vai dar-nos toda a informação sobre os materiais que o compõem – de onde vieram, as emissões agregadas, a percentagem de material reciclado utilizado, tendo em conta a sua desmontagem e até as reparações que possam vir a ser feitas. A ideia é que haja uma arquitectura de interoperabilidade, que pode ou não ser baseada em blockchain, mas [que será baseada] num tipo de tecnologia semelhante. A informação que [o passaporte digital] contém divide-se numa parte mais comum e noutra mais específica.
Esse passaporte não requer um trabalho anterior de normalização?
O IAPMEI tem uma equipa a trabalhar nesse aspecto e, a nível europeu, esse caminho já começou a ser feito há algum tempo. Por essa razão, achamos importante trabalhar esta temática de forma transversal e criar um efeito que permita discutir lá fora e apresentar soluções. Queremos estar preparados.
É necessário existirem standards comuns. As pequenas e médias empresas vão precisar de apoio porque a orientação do negócio vai ser diferente, com outras dimensões.
A ideia da AATE ao criar um cluster é permitir que os novos modelos de negócio [sejam explorados e que] as pequenas ou médias empresas ou start-ups sejam apoiadas e façam essa aceleração na forma como se posicionam a nível nacional e no estrangeiro.
A digitalização de todo este novo ecossistema vai ser crucial. Estou a lembrar-me do BIM para o sector dos edifícios, por exemplo.
Exactamente. A ideia de qualquer cluster é ajudar as empresas a serem competitivas, a trabalharem melhor, a criarem oportunidades, e esse objectivo passa pela também pela digitalização.
Sistema Fotovoltaico Flutuante na Albufeira de Monte Novo
Projecto da Universidade de Évora, com o ISQ, a WavEC e a Capwatt, para energia solar fotovoltaica flutuante.
Rede Colaborativa de Laboratórios
Inclui o INEGI, o INESC-ID, o INESC TEC, o ISQ, o INL, o Smart Energy Lab, a Universidade de Évora e a WavEC, trabalhando no desenvolvimento e na certificação de produtos inovadores.
Nas áreas dos edifícios e da eficiência energética, quer destacar alguns projectos no âmbito da ATE?
Estamos a trabalhar em casos de eficiência energética, através da Brightcity, cujo demonstrador será no Norte Shopping. Ao nível das cidades e do uso de energia, temos projectos em Águeda no âmbito das smart cities, onde estamos a juntar várias [áreas] verticais de gestão da cidade. Temos algumas entidades que estão a trabalhar em programas demonstradores ao nível da gestão dos veículos eléctricos, da melhoria da eficiência do carregamento e da experiência do utilizador para tornar o carregamento mais conveniente e acessível. A nossa ambição é termos cerca de 45 produtos e serviços demonstráveis no próximo ano. É esse o nosso compromisso. A questão da capacitação e o facto de termos começado um ano mais tarde criam uma pressão enorme. Por outro lado, o mercado de trabalho em Portugal, a necessidade de ter recursos qualificados para as necessidades das várias agendas (50) e o apetite internacional da nossa mão-de-obra especializada tornam tudo ainda mais complicado. Já demos nota ao IAPMEI de que podemos ter de alargar o prazo para alguns demonstradores para além de 2025. Depois, na perspectiva do cluster, o trabalho vai continuar porque temos pensado no volume de negócios acumulado de 550 milhões de euros no horizonte de 2020-2027, que, não sendo um objectivo quantitativo da agenda, acaba por ser um objectivo qualitativo.
Vamos conseguir cumprir as metas da descarbonização em 2050?
Acredito que sim, mas tem de haver um equilíbrio entre aquilo que são os objectivos a cumprir e os custos que as entidades e o cidadão têm de suportar para lá chegar. Todos queremos cumprir esses objectivos, mas é necessário haver investimento.
O maior desafio está no investimento?
Sim, no investimento financeiro, mas também no investimento ao nível do conhecimento. A tecnologia está relativamente coberta, mas existem necessidades que passam por novos modelos de negócio atractivos.
ALIANÇA PARA A TRANSIÇÃO ENERGÉTICA
A Aliança para a Transição Energética é uma iniciativa de Agenda Verde para a Inovação Empresarial com um investimento de 274 milhões de euros, dos quais 157 milhões de euros são provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência da União Europeia. Este investimento significativo visa reforçar a competitividade e a resiliência do sector energético em Portugal, promovendo a criação de soluções e produtos inovadores e sustentáveis com potencial exportador.