Artigo publicado originalmente na edição de Março/Abril de 2024 da Edifícios e Energia

Os políticos são ótimos a inventar burocracias e conceitos desnecessários que só complicam a vida dos cidadãos… E as comunidades de energia são um exemplo perfeito para ilustrar esta premissa. Para conseguir atingir um ótimo objetivo – a total descarbonização do setor dos edifícios –, que é, no entanto, muito difícil de implementar, vão-se inventando ideias soltas com soluções pontuais para ajudar a ultrapassar as dificuldades que surgem quando se passa da teoria à prática, e criando remendos para tapar esses buracos. No final, fica-se com uma manta mal-amanhada, cheia de remendos, que se rasga facilmente quando alguém puxa por um lado, mesmo que involuntariamente, e a costura cede num dos remendos. E a manta fica rota.

Era muito melhor produzir logo no início uma manta sem remendos, que funcionasse bem no fim do processo, que permitisse atingir o objetivo em vista dentro de um regime de previsibilidade, mesmo que tivesse um custo inicial maior e demorasse mais tempo a conseguir produzir resultados, numa perspetiva semelhante à desejável decisão com base no critério do custo global do ciclo de vida mínimo de uma instalação, que todos devemos aplicar no projeto dos edifícios e dos sistemas AVAC. Tapar os buracos dos remendos vai acabar por sair mais caro e demorar ainda mais tempo a chegar ao desejado resultado final.

Façamos uma pequena retrospetiva histórica até ao presente, concluindo no futuro.

1. OS EDIFÍCIOS DE NECESSIDADES ENERGÉTICAS QUASE NULAS (NZEB)

A solução óbvia para descarbonizar os edifícios é fazer com que cada edifício seja um Zero Energy Building (ZEB). Mas quando a primeira versão da Diretiva sobre o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD) foi concebida, em 2002, era óbvio que seria muito caro e impossível impor esta exigência. Assim, como primeiro passo, surgiram os nZEB ou edifícios com necessidades energéticas quase nulas, no âmbito dos quais a pouca energia de que necessitavam seria coberta por energias renováveis. Só que a definição de nZEB foi trabalhada politicamente para dar muita margem de manobra a cada Estado-Membro (EM) e a definição do que era “quase nulas” foi também remetida para cada EM – e, em muitos casos, como em Portugal, o “quase” foi (e ainda é) bastante generoso.

Acresce que, na definição de nZEB da EPBD, as energias renováveis necessárias deveriam ter a sua base local no edifício ou na sua vizinhança. E o conceito de vizinhança (nearby…) foi também deixado ao critério de cada EM, tendo-se visto que, na UE28 (agora UE27), o conceito variou e ainda varia entre “o próprio edifício” (pode ser no quintal do edifício, mas não fora do terreno onde o edifício está implantado) e “em todo o mundo”. Neste caso, Portugal foi bastante pouco generoso, limitando o conceito de vizinhança ao edifício propriamente dito ou pouco mais.

2. AS CIDADES (ONDE É IMPOSSÍVEL QUE A GRANDE MAIORIA DOS EDIFÍCIOS EXISTENTES, INDIVIDUALMENTE, MESMO QUE ALVO DE GRANDE REABILITAÇÃO, TENHA NECESSIDADES ENERGÉTICAS NULAS)

Se a implementação de um nZEB é mais fácil numa habitação individual ou em contexto rural, onde, em princípio, há mais terreno para instalar os sistemas renováveis (mais frequentemente, painéis fotovoltaicos) ou fazer um furo para captar energia geotérmica, a densidade de ocupação de solos nas cidades, com uma maioria de edifícios a desenvolverem-se em altura e com pequenas áreas de implantação no terreno em comparação com a área total de pavimento construído, torna quase impossível que a grande maioria dos edifícios possa captar energia renovável suficiente para cobrir as tais pequenas necessidades associadas a um nZEB para todo um edifício ou mesmo para a maioria das suas frações. Havia, portanto, que arranjar solução para esta impossibilidade – ainda para mais, porque é nas cidades que vive a maioria da população e onde há, como tal, mais edifícios (entendidos aqui como englobando frações autónomas) a descarbonizar!

Para dar a volta a esta dificuldade, havia que alterar (ou ajustar) os conceitos. Por exemplo, deixar de tratar os edifícios individualmente (sem perder de vista que cada um terá que ter o melhor comportamento energético possível) e permitir que alguns não fossem ZEB mas que outros produzissem mais energia do que aquela de que necessitavam para compensar os restantes e, desta forma, permitir a esse conjunto de edifícios ter necessidades nulas.

O importante é que, no global, o setor dos edifícios seja “carbono neutro”, mesmo que haja uma parte com emissões positivas e outra com emissões negativas. Obviamente, quem produz mais energia renovável e compensa os que são mais poluentes deve ser recompensado, e receber, portanto, uma compensação por aqueles que não são ZEB e precisam de recorrer a maior quantidade de energia. Na prática, é o que já se faz quando se emite CO2: há mecanismos estabelecidos para compensar as emissões. Isto pode ser feito de forma voluntária (por exemplo, quando se viaja de avião) ou obrigatória (as empresas já são muitas vezes obrigadas a comprar licenças de emissão de carbono para poderem funcionar).

3. A NOÇÃO DE VIZINHANÇA (O NEARBY DA DEFINIÇÃO DE NZEB)

Imaginemos um edifício de condomínio de vários pisos e um apartamento num piso intermédio que se pretende transformar num nZEB. O Zé Condómino, proprietário de uma fração, quer fazer uma grande reabilitação, mas está limitado no que diz respeito a soluções de isolamento. Ou isola pelo interior ou pelo exterior, mas fazê-lo pelo exterior só é possível sempre e apenas com o acordo de todo o condomínio ou, em alternativa, se todo o edifício for alvo de uma operação conjunta (que isole a envolvente de todo o edifício de uma forma coerente).

Mesmo com isolamento e mudança para envidraçados muito eficientes, essa fracção terá sempre necessidades de energia para aquecimento (e provavelmente de arrefecimento) ambiente. A opção por uma bomba de calor para suprir as necessidades térmicas e de água quente sanitária pode não ser suficiente e poderá ser precisa mais alguma energia renovável. E onde se vai buscá-la?

De acordo com a legislação, tem de se recorrer a energia renovável captada no próprio edifício ou na sua vizinhança. O edifício está no centro de uma cidade e o Zé Condómino olha à volta: não há local onde tal seja possível. A menos que a tal vizinhança seja um pouco alargada. Via uma cobertura ótima na loja da bomba de gasolina da esquina! O que pode fazer o Zé Condómino? Nada, só pode resignar-se a não ter um apartamento nZEB.

O importante é que, no global, o setor dos edifícios seja “carbono neutro”, mesmo que haja uma parte com emissões positivas e outra com emissões negativas. Obviamente, quem produz mais energia renovável e compensa os que são mais poluentes deve ser recompensado, e receber, portanto, uma compensação por aqueles que não são ZEB e precisam de recorrer a maior quantidade de energia.

Note-se, portanto, que uma definição um pouco mais alargada de vizinhança pareceria absolutamente necessária e desejável. O apartamento poderia “comprar” energia renovável produzida algures [num local] mais distante e compensar, assim, as suas próprias necessidades. Seria assim tão escandaloso? Isto faz-se a nível de países! Por exemplo, o Luxemburgo, obrigado pela União Europeia a ter uma certa percentagem de energia renovável a nível nacional, e sem terreno disponível suficiente nem condições atmosféricas atrativas (baixa radiação solar), comprou licenças de captação de centrais fotovoltaicas localizadas noutros países e associou essa produção ao seu mix energético, mesmo que a fonte estivesse realmente a milhares de quilómetros do Luxemburgo. Porque não, então, permitir a um condómino de Lisboa comprar a sua energia fotovoltaica algures no Ribatejo, por exemplo? É uma decisão puramente política, claro.

4. A ENERGIA ELÉTRICA RENOVÁVEL PARA AUTOCONSUMO

Para complicar um pouco este cenário já de si complexo, admita-se, porém, que o Zé Condómino até arranjava local onde instalar uns painéis fotovoltaicos que lhe permitissem atingir o desejado nível nZEB. Se ele (e a sua família) estiver ainda em idade de trabalho ou de ir à escola, a casa estará provavelmente vazia durante o dia, e, como a lei atual só permite o autoconsumo e não permite que ele venda a eletricidade renovável produzida à rede, [o Zé Condómino] ou tem um sistema de armazenamento (baterias) ou vai dar a produção de eletricidade fotovoltaica à rede, a custo zero, nas horas de maior produção. Isto é, ou investe num sistema mais caro, com armazenamento, ou vai ter um pequeno retorno (alimentará, durante o dia, o frigorífico e pouco mais), e o investimento nos painéis solares provavelmente não compensará numa perspetiva de custo de ciclo de vida, pelo que nem recuperará o investimento. O Zé Condómino vai ficar desanimado outra vez.

Portanto, é preciso encontrar um cliente para essa energia, ligar os painéis a quem compre essa energia no momento da produção. Tipicamente, terá de encontrar uma entidade de serviços, cujo consumo garantido é, normalmente, coincidente com as horas de produção fotovoltaica. Porque não simplificar a vida do Zé Condómino e deixar que ele venda a sua produção à rede e seja remunerado por isso? Já foi assim no passado; depois deixou de ser. Se o problema era a eletricidade fotovoltaica ser paga a preço muito elevado, defina-se um sistema de remuneração justo que não aumente défices tarifários e não comporte encargos extra para a população. Podia mesmo ser remunerado ao mesmo preço dos outros produtores que injetam eletricidade na rede, sem garantia de preço fixo, como nas tarifas dinâmicas que muitos consumidores já escolheram para o seu consumo. Mais outra decisão puramente política que foi tomada e que tem as suas consequências.

Noutros países, temos comunidades de energia com um âmbito muito mais amplo, cidades inteiras ou bairros inteiros de muito maior dimensão. Mas, não, aqui queremos mais restrições. Quanto mais se dificultar a vida dos cidadãos melhor. Será que quem manda quer mesmo promover as comunidades de energia?

5. AS COMUNIDADES DE ENERGIA

Perante todas estas dificuldades descritas, era necessário encontrar uma solução que permitisse resolver o problema do Zé Condómino (ou do Zé que ocupa uma habitação unifamiliar), condenado a nunca ter um nZEB ou a ter de oferecer gratuitamente energia elétrica à rede, a menos que tenha meios para adquirir um sistema fotovoltaico com armazenamento, cujo preço elevado ainda desencoraja muitos a fazerem este tipo de investimento.

E, portanto, surge a ideia de agregar vários edifícios “vizinhos” para que, globalmente, possam ser ZEB, vendendo uns a energia a outros, que a compram mais barata do que aos distribuidores comerciais. São as comunidades de energia. Ou seja, este brilhante conceito só tem razão de ser para resolver problemas criados artificialmente pelos decisores de políticas públicas. Com outras decisões políticas, as comunidades de energia não seriam necessárias. Mas com o contexto atual restritivo em termos legislativos as comunidades de energia são efetivamente algo que pode ajudar a resolver os problemas a uns quantos, poucos, que se consigam inserir numa comunidade de energia, onde uma possa existir.

Mas voltemos ao nosso Zé Condómino que quer instalar painéis fotovoltaicos ou comprar energia renovável para ser ZEB e que resolve tentar aderir a uma comunidade de energia. Primeiro, tem de encontrar uma na sua vizinhança que o aceite. Se não houver nenhuma, tem de ser pró-ativo na formação de uma comunidade ou ter a sorte de encontrar algum promotor que domine as burocracias da criação de uma comunidade de energia e que o ajude. Se decidir ser ele, Zé Condómino, a organizar uma comunidade, vai ter de procurar outros “sócios”, e ir bater à porta da confeitaria ou do restaurante da rua, que terá ou não tempo e vontade para o ouvir, e outros Zés Condóminos como ele que adiram a essa comunidade. Formar uma comunidade não é fácil. Resta-lhe a consolação de, pela lei portuguesa que rege estas comunidades, só ter de procurar num raio de cerca de dois quilómetros… Se for mais longe, já não pode (bom, se centrar a comunidade a dois quilómetros da casa, pode ter de percorrer quatro quilómetros até ao outro extremo! Mas são sempre os mesmos mais ou menos quatro quilómetros de distância máxima, de qualquer forma).

Lá estamos, de novo, perante uma decisão arbitrária de limitar uma comunidade de energia a uma área muito restrita, resultante da aplicação minimalista do conceito de vizinhança (coerente com a decisão sobre os nZEB, temos de reconhecer). Noutros países, temos comunidades de energia com um âmbito muito mais amplo, cidades inteiras ou bairros inteiros de muito maior dimensão. Mas, não, aqui queremos mais restrições. Quanto mais se dificultar a vida dos cidadãos melhor. Será que quem manda quer mesmo promover as comunidades de energia?

6. E, ENTÃO, AS COMUNIDADES DE ENERGIA SÃO “A” SOLUÇÃO PARA O FUTURO?

Claro que não. Agora, são a solução apenas para um nicho, para uma pequena minoria de edifícios. São difíceis de formar, criadas com uma visão muito rígida, limitadora, e só se tornarão realidade se houver um ativista ou uma empresa que resolva ser intermediário(a) para a sua formação, para obter algum lucro, legítimo, claro. NUNCA serão a solução para TODA a população, e todos têm de participar se queremos mesmo ter um setor dos edifícios totalmente descarbonizado num futuro mais ou menos próximo (2050?).

As comunidades de energia podem, hoje, ser um meio útil de publicidade ou de demonstração de que é possível descarbonizar numa escala mais larga do que a de um único edifício, mas só poderão ser “A” solução quando as barreiras arbitrárias que foram colocadas à sua formação desaparecerem. Há que facilitar a participação de todos, não tornar a adesão a uma comunidade de energia um bicho de sete cabeças ou um negócio para alguns poucos.

Para descarbonizar os edifícios, para aumentar a instalação de coletores fotovoltaicos pelos proprietários de edifícios privados, há que simplificar e fazer desaparecer obstáculos administrativos. E há que fazer cair as barreiras da distância, que são demasiado limitadoras. Tem de ser criado um mecanismo de âmbito nacional em que eventuais custos que possam existir para a rede sejam incorporados nas respetivas tarifas de compra e venda da energia que circula entre os participantes da comunidade. Teremos de caminhar para UMA comunidade de energia [que esteja] disponível para todos os que desejarem aderir, cobrindo todo o país, onde cada um possa participar facilmente, sem sofrer as agruras do Zé Condómino, sem ter de se preocupar em encontrar um fornecedor ou um comprador para a energia renovável, conforme o caso. Há que criar um mecanismo simples que permita a qualquer interessado aderir, por sua mera opção, e que, no máximo, dê um trabalho equivalente ao de fazer um contrato com um novo fornecedor de energia, com um simples contacto por via telefónica ou on-line num website na internet.

Descarbonizar o setor dos edifícios não é tarefa fácil, nem será barato. Mas há que fazer evoluir o conceito de comunidades de energia para um outro mecanismo mais ágil que promova uma participação generalizada da população de forma transparente e atrativa. Espero que esta fase atual das comunidades de energia seja um mero passo (muito) transitório no caminho para uma solução mais eficaz. Precisa-se de massificação e de simplificação. Descomplique-se e removam-se barreiras arbitrárias, ou a meta de um setor dos edifícios totalmente descarbonizado em 2050 não passará de uma mera ilusão.

As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.