Artigo publicado originalmente na edição de Janeiro/Fevereiro de 2024 da Edifícios e Energia
PREÂMBULO
Continua a discussão sobre a necessidade de combater as alterações climáticas através da descarbonização. Na COP 28, no Dubai, a frase pretendida pela ONU e pelos mais ativistas “fim da utilização dos combustíveis fósseis” acabou por ser aceite, embora com a inclusão da obviamente necessária palavra “gradual” e até ao pretendido ano de 2050, mas sem calendários fixos ou metas intermédias. Cada país decidirá como e quando o fazer. Claro que haverá grande pressão dos países produtores dos combustíveis fósseis para continuarem a vender o seu produto, mas, provavelmente, os países utilizadores também não estarão muito desconfortáveis com esta formulação, a vermos o pouco ou muito, conforme as perspetivas, que têm feito de concreto nas últimas décadas (as cimeiras do clima – COP – estão quase a completar uma história de três décadas!). Acho que todos reconhecem as tremendas dificuldades na transição energética, quer do ponto de vista técnico, quer do ponto de vista económico, e mais pelos atos do que pelas palavras. Promessas (palavras) tem havido muitas. É extremamente fácil a um qualquer político prometer hoje algo para daqui a 25 anos, pois a probabilidade de ainda estar no poder então, nos países democráticos que mais contam para atingir esta meta, será muito reduzida; mas é muito mais difícil comprometer-se com metas concretas a prazos curtos de quatro a cinco anos, pois, então, ainda pode ser certamente julgado pelos eleitores. Os atos concretos, se bem que já bastante importantes e significativos, sobretudo em algumas geografias, nomeadamente na União Europeia e nos Estados Unidos, têm ficado sempre abaixo dos compromissos prometidos.
E, entretanto, já há mais duas certezas para 2023: vai ser o ano mais quente de sempre no planeta Terra tal como o conhecemos agora (desde que há registos, claro), e vai ser o ano em que, mais uma vez, as emissões globais de gases com efeito de estufa vão atingir um novo máximo. O plano para limitar o aquecimento global a menos de 2 oC, e de preferência a apenas 1,5 oC, publicado pela Agência Internacional de Energia (AIE) em setembro de 2023, aponta como condição obrigatória o começo da redução das emissões com que muitos se tinham comprometido, mas, ano após ano, temos tido sempre um aumento contínuo (como já disse atrás, prometer é muito fácil, cumprir é muito mais difícil). Já há muito que se devia estar a reduzir as emissões globais, mas, pelo contrário, todos os anos emitimos cada vez mais. Como reza o título de uma canção italiana da segunda metade do século XX, de que certamente os mais velhos se recordarão, “Parole…, parole, parole…!”.
Será que em 2024 iremos ver, pela primeira vez, uma redução das emissões globais mundiais de CO2, ou será que a AIE vai ter de traçar, em 2024 ou 2025, um novo plano de ação em que o ano de emissões máximas, ilustrado na Figura 1, avança de novo mais para a direita, pois nos relatórios de anos anteriores o pico aparecia já antes de 2023? Para o meu habitual ceticismo, ou melhor, para a minha grande deceção e frustração sobre esta temática, não se manifestar mais uma vez, deixo apenas, por agora, a questão pendente e sem resposta. Reparem que uma das premissas para a implementação do plano ilustrado na figura da AIE é que não sejam desenvolvidos novos locais de captação de petróleo e de gás natural e, se olharmos para o mundo, se olharmos para a Venezuela, para a Guiana, para o Brasil, para os Estados Unidos, para a OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo], para Moçambique e Angola, entre outros países, e, de uma forma geral, para as grandes empresas petrolíferas, vemos as pesquisas por novas reservas de petróleo e gás natural a continuarem. Será que vão todos ser generosos e deixar cair os projetos planeados ou já em curso, assumindo os prejuízos (todas as avultadas verbas já investidas) ou a falta de receitas futuras? Bom, também já vimos as vacas a voarem em Portugal…
E uma nota final sobre o plano da AIE representado na Figura 1: inclui atingir, entre 2040 e 2050, uma controversa duplicação do nuclear até 2050. Acho que ainda vamos ouvir falar muito desta temática.
OS EDIFÍCIOS
Centremo-nos agora na descarbonização dos edifícios, um dos setores que tem de dar o seu contributo para o cenário de emissões zero em 2050, uma vez que é responsável por cerca de 35 a 40 % das emissões globais (os números variam com a fonte e o ano). Têm sido muitas as iniciativas neste sentido, nomeadamente na Europa, que se considera ter a liderança neste objetivo. Enquanto a Europa (União Europeia) se propõe a ter o setor dos edifícios totalmente descarbonizado até 2050, outras geografias (e.g., China, Estados Unidos, Austrália, Reino Unido, etc.) só se comprometeram publicamente, para já, com prazos mais longos (2060, ou mesmo mais tarde). Pode ser que a decisão desta recente COP 28 as faça mudar de ideias? Veremos.
Façamos primeiro o ponto da situação na União Europeia (UE). Como se sabe, há um conjunto de planos, regulamentos, normas e diretivas que coloca o objetivo da descarbonização do setor dos edifícios, e o aumento da utilização de energias renováveis, no contexto legal e legislativo europeu e dos seus Estados-Membros (EM). O programa proposto pela atual Comissão Europeia em 2020, o Fit for 55, que visa reduzir as emissões globais da UE em 55 % até 2030, previa a revisão de todas as diretivas, nomeadamente a mais importante para os edifícios, a bem conhecida EPBD (Energy Performance of Buildings Directive), cuja primeira versão foi adotada em 2002. Nesta sua quarta revisão, a Comissão propunha regras muito mais severas e de caráter obrigatório, quer para edifícios novos, quer para as renovações dos edifícios existentes, e dizia que esta nova EPBD devia ser revista e publicada em 2022 e transposta pelos EM até ao final de 2023. Juntamente com esta proposta de nova diretiva, foi também lançada a Renovation Wave, com metas e apoios para uma efetiva e impactante renovação dos edifícios existentes.
Como todos sabem, e já o discuti em versões anteriores desta coluna, a nova EPBD, no final de 2023, está muito atrasada. Informações recentes indicam, contudo, que, finalmente, foi consensualizado um texto final entre as três partes (Conselho da UE, Parlamento Europeu e Comissão Europeia) no início de dezembro de 2023, aguardando-se apenas agora as aprovações finais formais pelos três órgãos para que a nova EPBD possa ser publicada no Jornal Oficial e entrar finalmente em vigor, mais de um ano depois do inicialmente previsto.
Mas vale a pena dissecar um pouco a razão deste atraso. A razão é muito clara: os EM só chegaram a acordo em relação a um novo texto para a EPBD em meados de outubro de 2023, um acordo em que deixaram cair quase todas as novas propostas originais da Comissão Europeia, pois consideraram que a renovação do edificado existente tal como proposto pela Comissão Europeia era economicamente inviável. Mantiveram a meta de um setor dos edifícios totalmente descarbonizado até 2050, mas retiraram metas intermédias (de curto prazo) e deixaram a cada EM traçar o seu próprio plano daqui até 2050 – lá está, caíram as metas de curto prazo e ficaram apenas as metas para daqui a 25 anos… Algo semelhante ao que se fez na COP 28, não é? As razões são evidentes e são as mesmas já discutidas. Os líderes dos EM sabem que os custos necessários para a renovação dos edifícios existentes são muito elevados e que imporem pesadas obrigações (custos económicos) às populações, no difícil contexto económico atual, era politicamente inaceitável.
Num paralelo com a desilusão da falta de progresso nas sucessivas COP, os mais ativistas pela descarbonização dos edifícios europeus reagiram muito mal à posição do Conselho da UE, e não resisto a mostrar o destaque bombástico de um artigo publicado no dia seguinte ao acordo dos EM. Quem quiser ler mais detalhes, pode consultar a fonte [1].
No diálogo com o Parlamento Europeu, no entanto, acabaram por ser reintroduzidas algumas das medidas que o Conselho Europeu tinha cortado e foram colocadas algumas metas intermédias. As medidas para os edifícios residenciais privados caíram quase todas, focando-se em apoios financeiros voluntários e deixando os detalhes dos planos nacionais ao critério de cada EM.
O panorama para os edifícios na Europa é, portanto, em tudo semelhante ao que se passa com as COP: empurrou-se mais um problema difícil para a frente com a barriga, para que se resolva mais tarde, até 2050, sem metas intermédias demasiado ambiciosas de curto prazo, mantendo tanto quanto aceitável o statu quo, evoluindo lentamente, oferecendo apenas pequenas medidas paliativas, de que são bons exemplos os programas de apoio que Portugal tem oferecido no âmbito do Fundo Ambiental, que já foram alvo de comentário nesta re- vista em edições anteriores. Estes apoios destinam-se a voluntários já motivados e interessados em investir no conforto e na eficiência energética dos seus edifícios e que têm disponibilidade económica para o fazer, sobretudo apelativos com uma ajuda extra do Estado. As ajudas são sempre bem-vindas; não se obriga ninguém a gastar dinheiro contra a sua vontade. Evita-se o pesadelo de que fala o colega Serafin Graña na sua coluna nesta mesma edição desta revista, associado à perceção do “povo” de que esta transição energética é um pesadelo e não algo para o bem comum: “Enquanto a Europa é atingida pela crise climática, os governos devem tranquilizar os eleitores de que os custos verdes serão compartilhados de forma justa; a fadiga climática não é um sinal de que os europeus estão em negação – é um sinal de seu medo”. Evita-se assim, pelo menos para já, a adoção de medidas impopulares que fazem perder votos.
E nos Estados Unidos [da América]? Qual o ponto da situação? Tive a oportunidade de estar presente na conferência sobre descarbonização dos edifícios que a ASHRAE organizou em Washington, DC, em outubro de 2023. Das apresentações na conferência ficou claro que as políticas para descarbonizar os edifícios são muito distintas das adotadas na Europa e muito menos gerenalizadas. Resumindo, o governo federal determinou, no tempo da administração de Obama, que todos os seus edifícios serão gradualmente reabilitados para um padrão carbono neutro até 2050, processo que já começou e tem sido promovido com maior ou menor entusiasmo em função dos presidentes que se seguiram (o atual presidente Biden voltou a colocá-lo em prática prioritária, financiando o programa de forma ambiciosa). Os novos edifícios a construir deverão também, obviamente, já ser carbono neutro. E o governo federal convidou todos os Estados, os condados (equivalentes a concelhos em Portugal) e as cidades a adotarem o mesmo programa, oferecendo apoios financeiros a quem aderir, voluntariamente – [pois] o governo federal não tem autoridade para impor este tipo de metas aos Estados, que têm autonomia total na área da energia. Por exemplo, os Estados Unidos nem têm sequer uma rede elétrica única, interligada entre si; o Estado do Texas tem a sua própria rede autónoma, o que tem provocado apagões nos períodos críticos por não poder recorrer ao apoio dos Estados vizinhos sempre que possa precisar.
Em outubro de 2023, mais meia dúzia de anos depois do seu lançamento, o ponto da situação sobre programas de descarbonização dos edifícios existentes é visível no mapa que foi apresentado na conferência pelo responsável pelo programa federal. Só seis Estados adotaram programas inspirados no programa federal. No total, há 49 entidades, a maioria cidades individuais, que aderiram ao programa. Sem dúvida de que é pouco e de que, a menos que algo mude radicalmente num futuro próximo (nada indica que tal possa acontecer), o setor dos edifícios não vai ficar descarbonizado nas próximas décadas. Tal como acontece com o programa federal, não há qualquer imposição em nenhum Estado, cidade ou condado ao setor residencial privado, exceto para os edifícios multifamiliares, e, mesmo neste, apenas num número muito limitado de localizações. Tal como na Europa, claro, há também múltiplos programas de apoio, federais, estaduais e locais, para o residencial privado que queira aderir e melhorar o seu desempenho energético de forma voluntária.
Nos programas mais típicos, foi feita uma caraterização dos indicadores de consumo do parque edificado abrangido pelas regras e foi definido um padrão mínimo de eficiência que todos os edifícios terão que cumprir num prazo razoável, devendo proceder a medidas de melhoria caso estejam abaixo desse patamar. Os pro- gramas avançam por fases, e, sucessivamente, o limiar dos indicadores vai sendo reduzido, de modo a abranger um número cada vez maior de edifícios.
Tomando como exemplo o caso de Washington DC, o programa abrange, numa primeira fase, edifícios com mais de 5 000 m2 e foi lançado em 2021. Foram feitos os levantamentos do parque não residencial e do residencial multifamiliar até 2023, ano em que foram fixados os limiares mínimos exigidos (correspondentes aos 50 % piores consumos do parque existente para cada tipologia). E foi fixada a data-limite de 31 de dezembro de 2026 para todos os edifícios que não cumpram esse limiar tomarem medidas para o cumprir. Cada edifício terá de reportar os seus consumos de energia reais relativos ao ano de 2026 (1 de janeiro a 31 de dezembro).
Quem não cumprir o limite permitido pagará uma multa que poderá ir até cerca de 100 €/m2 e ficará na mesma obrigado a investir para atingir esse limiar. Em 2027 será fixado um novo limiar mais exigente, pois, teoricamente, os 50 % piores edifícios do parque atual já melhoraram o seu desempenho. Será também reduzido o limiar de área útil dos edifícios abrangidos.
Se isto se concretizar (como em tudo o que são políticas públicas tudo pode mudar…), temos de concluir que este programa é mais exigente que o atualmente em vigor na União Europeia. Portanto, sim, os Estados Unidos estão, em muitos aspetos, muito atrás da Europa na temática da descarbonização, mas, noutros aspetos, e em localizações muito limitadas, têm programas mais exigentes do que a Europa.
A GRANDE PREOCUPAÇÃO
Qual foi a palavra mais citada durante a conferência da ASHRAE de 2023 para além da óbvia decarbonizing? Foi affordability! De uma forma pragmática, todos se preocupam com o custo da descarbonização. Podemos ter as melhores intenções e os melhores programas, as melhores soluções técnicas, mas se quem tiver de aplicar não puder pagar nada vai ser implementado. Obvia- mente! Temos de ter soluções muito mais económicas do que as atualmente disponíveis. As bombas de calor para aquecer água são muito mais caras do que as soluções hoje mais comuns para esse efeito, só para citar um exemplo óbvio. Há até medidas que podem ser mais baratas numa perspetiva de custo total de ciclo de vida, mas cujo custo inicial pode inviabilizá-las.
E é aqui que vem a semelhança de todas as situações abordadas neste artigo. Porque é que na COP 28 não se avançou com metas mais ambiciosas? Porque é que a Europa abrandou nas metas de reabilitação do parque existente na revisão da EPBD em 2021-23? Porque é que, nos Estados Unidos (e em todo o mundo…), o grau de adesão a programas de melhoria de eficiência energética é pequeno? Porque o que é pedido para descarbonizar o setor dos edifícios tem custos demasiado elevados. Não há fundos disponíveis para pagar tudo. E, portanto, acho fundamental manter sempre bem presente esta palavra, que nem sequer traduzo (seria fácil): Affordability! Por favor, tenham isto sempre na mente ao conceberem ou proporem políticas públicas, ou ao proporem novas soluções técnicas. Sem isso, as políticas estarão conde- nadas ao falhanço, ou os fabricantes condenados a não venderem. Acho que o passado recente tem demonstrado bem que este tem sido o principal obstáculo à descarbonização do setor dos edifícios. Portugal tem sido um bom exemplo desta situação.
Como em muitos outros casos, no fim, é sempre a economia que se impõe, mesmo que o planeta sofra. Como na discussão atual sobre o novo aeroporto de Lisboa: QUEM PAGA?
[1] https://www.euractiv.com/section/energy-environment/news/legislators-water- -down-eu-buildings-directive-after-marathon-talks/
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