Artigo publicado originalmente na edição de Setembro/Outubro de 2023 da Edifícios e Energia
Há cerca de um ano, abordei esta temática da renovação do ar nos edifícios nesta coluna. Na altura, foquei a prática que muitos edifícios adotaram para poderem reduzir o risco de contaminação pelo vírus da Covid-19 (ainda se lembram desta pandemia?), e que consistiu num aumento muito significativo do caudal do ar exterior de renovação (frequentemente, 100 % de ar novo), com os consequentes aumentos, ainda mais significativos, dos custos de funcionamento com a energia para climatização do ar novo suplementar. Previ, então, que essa reação a uma emergência sanitária, como acontecera já no passado aquando doutras crises semelhantes, acabaria por ser “esquecida” e que tudo tenderia a voltar ao “normal”, ou a um “novo normal”, como agora é costume dizer.
O certo é que, embora menos perigoso, o vírus da Covid-19 continua entre nós. Passou a endémico, e, como outros organismos semelhantes, tais como os da gripe, para falar apenas dos seus “primos” mais conhecidos a que já estamos mais habituados, está presente nos espaços interiores e continua a ter o potencial de provocar a doença, mais ou menos grave. Não nos esqueçamos de que o número de mortes anuais devidas à tradicional gripe é muito significativo e de que, todos os invernos, nuns anos mais, noutros menos, a gripe ressurge, causa problemas de congestionamento nas urgências hospitalares, e constitui assunto recorrente nos meios de comunicação.
Portanto, pensando bem, a ventilação em caudal suficiente para renovar bem o ar dos espaços interiores continua a ser um fator fundamental para assegurar ambientes interiores saudáveis, sendo que as normas e os regulamentos atuais só não impõem valores mais elevados porque há também que considerar, e bem, as consequências financeiras e ambientais que derivam do recurso a taxas de ventilação demasiado elevadas. As normas e os regulamentos são um compromisso entre a saúde e a qualidade do ar interior, por um lado, e os custos e as implicações ambientais, por outro. E, por isso, não se viu mudança nas regulamentações sobre caudais mínimos de renovação do ar em edifícios. Foi assumido que voltaríamos ao normal logo que a pandemia acabasse.
Vem tudo isto a propósito da nova norma ASHRAE 241, publicada no final de junho de 2023. Intitulada Control of Infectious Aerosols, a norma vem estabelecer orientações para as taxas de renovação do ar interior que minimizem o risco de contaminação por vírus e outros agentes infeciosos que se propagam pelo ar através de aerossóis, ou seja, partículas em suspensão no ar que circulam nos espaços interiores e, claro, nos sistemas AVAC. Baseada nos conhecimentos mais recentes sobre risco de infeção por aerossóis inspirados por uma pessoa, e como o próprio preâmbulo desta norma reconhece, trata-se de uma primeira versão ainda algo incompleta e simplista, que pode e vai ser melhorada. Foi publicada em tempo recorde (seis meses) pela ASHRAE [associação americana e referência internacional ligada ao setor de AVAC e refrigeração] para dar orientações precisamente em resposta à crise da Covid-19, embora também seja útil para outras situações infeciosas, como a gripe normal. Anuncia-se que a próxima versão irá incluir um calculador de risco e modelos mais refinados para modelizar os padrões de circulação de ar, em termos de remoção de poluentes (por exemplo, com as estratégias de mistura, deslocamento, etc.) e da sua simulação usando modelos CFD [de dinâmica de fluidos computacional].
A norma 241 deve ser aplicada em conjunto com a norma 62, que estabelece os requisitos de ar novo para garantir uma qualidade do ar interior mínima. Ou seja, quem pretender proteção contra a Covid-19 (e outros agentes que circulem por via aérea) deve usar os requisitos de ambas as normas, a 62 e a 241, e adotar soluções AVAC que satisfaçam simultaneamente os requisitos de ambas.
A norma ASHRAE 241 usa o conceito de “caudal equivalente de ar novo” que cada espaço deve ter para assegurar um risco mínimo de contaminação dos ocupantes. Este “caudal equivalente de ar novo” será igual a 100 % de ar novo na ausência de quaisquer dispositivos de limpeza do ar e de uma elevada eficiência de ventilação no interior do espaço, mas irá traduzir-se num caudal de ar exterior menor caso sejam usados dispositivos de limpeza do ar (e.g., filtros) que recirculem o ar interior, retirando carga viral (aerossóis) do interior de cada espaço. Por exemplo, um espaço em que o ar interior seja recirculado em caudal suficiente através de um filtro HEPA [filtro de detenção altamente eficaz de partículas] de elevada eficiência (99 %) pode ver as necessidades de ar exterior (ar novo) para controlo da contaminação da doença reduzidas até um valor próximo de zero.
Claro que, neste caso, prevalecerão os requisitos impostos pela norma 62, que orientam a quase totalidade dos regulamentos nacionais e internacionais sobre ventilação, incluindo o português, por forma a garantir uma qualidade do ar interior mínima aceitável. Mas, na ausência de dispositivos de limpeza de ar, os caudais mínimos de ar novo necessários para reduzir a contaminação por aerossóis são, em geral, bastante mais elevados do que os impostos pela norma 62. Por exemplo, para aplicações residenciais e em edifícios de escritórios, a norma 241 estabelece – como mínimo exigido para garantia de minimização de contaminação por aerossóis – cerca do dobro do caudal de ar novo em comparação com a já muito bem conhecida norma 62, aplicada correntemente nas instalações atuais.
Fica, assim, reforçada a ideia de que os sistemas AVAC devem ser projetados de forma a permitirem flexibilidade, podendo funcionar com caudais de ar novo da mesma ordem de grandeza daquela que se usa hoje para garantir a qualidade do ar interior, e que estão impostos pelos regulamentos atuais, desde que [os sistemas] também disponham de mecanismos que permitam uma limpeza eficaz para remoção de aerossóis, como filtragem eficiente e boa circulação do ar no interior dos edifícios, sem zonas mortas.
Estes sistemas de limpeza até podem funcionar numa base sazonal, apenas nos períodos de maior risco, ficando desativados nos restantes períodos (por exemplo, no verão). Mas devem também poder aumentar o caudal de ar exterior sempre que tal seja mais vantajoso (por exemplo, em situações de arrefecimento gratuito), satisfazendo, assim também, a norma 241 sem aumento de consumos de energia.
Claro que isto implica pensar nos sistemas e dotá-los de um controlador inteligente para reduzir consumos de energia, investindo-se um pouco mais no projeto e na instalação inicial e na manutenção, o que vai frequentemente contra a tendência de instalar a solução inicial de custo mais baixo, pagando depois os maiores custos de funcionamento. Este princípio será fundamental para grandes edifícios com Sistemas de Automação e Controlo de Edifícios (SACE) e terá particular relevância em edifícios especiais tais como os da área da saúde (e.g., edifícios hospitalares) e de alojamento de pessoas mais frágeis (e.g., lares para idosos, escolas e infantários, etc.).
Para concluir, com a norma 241 da ASHRAE, evoluímos para um novo patamar de projeto, em que passamos a dispor de critérios objetivos para conceber e fazer funcionar sistemas AVAC com circulação forçada de ar que nos protejam contra a contaminação de agentes infeciosos transmitidos por via aérea, minimizando as necessidades de ar novo. A norma 241, se bem aplicada em termos da seleção de estratégias adequadas de limpeza de aerossóis nos espaços interiores, pode mesmo permitir que os edifícios funcionem com os caudais tradicionais pré-Covid, que garantem a qualidade do ar interior a níveis satisfatórios sem agravamento dos consumos de energia resultantes das taxas de renovação do ar novo.
Esta nova norma pode ser aplicada ao projeto de sistemas novos ou à reabilitação dos muitos sistemas já existentes, que, pós-Covid, passaram a funcionar com caudais de ar muito superiores aos verdadeiramente necessários, caso se instalem mecanismos adequados de limpeza do ar interior, com instalação de filtros mais eficientes, e se façam eventuais pequenos ajustes na capacidade dos ventiladores. A norma 241 permitirá estabelecer as melhores estratégias para cada caso. Mas cada caso será um caso único, e deverá ser sempre procurada a solução de menor custo numa perspetiva de custo de ciclo de vida e também, claro, de ciclo de carbono, de modo a cumprir os nobres objetivos da descarbonização gradual do setor dos edifícios e a atingir-se a sua descarbonização total até 2050.
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.