Em 2019, 19 % da população portuguesa não tinha meios para aquecer adequadamente as casas. Na União Europeia (UE), este número aumentou para 42 milhões em 2022. Combater a raiz do problema da pobreza energética requer o apoio dos governos locais.
Para os cidadãos, os municípios são a forma mais próxima de governo e, como tal, estão em melhor posição para chegarem aos que lutam para pagar as faturas de energia. Não é, portanto, uma surpresa, especialmente com a recente subida extrema de preços, que os governos locais estejam determinados a identificar e compreender as muitas e complexas razões pelas quais as famílias passam por períodos de pobreza energética.
Para resolver o problema da pobreza energética na Europa, cujo número de afetados aumentou para 42 milhões em 2022, temos de adotar uma abordagem política que permita a redução dos preços da energia e o aumento dos níveis de eficiência energética, especialmente para aqueles que mais precisam. Quando se trata de um problema complexo como a pobreza energética, as soluções têm de assentar não só na energia, mas também na política social.
GABINETES DE COMBATE À POBREZA ENERGÉTICA OFERECEM ALÍVIO IMEDIATO ÀS FAMÍLIAS VULNERÁVEIS
Como exemplo de soluções sociais locais, é possível apontar para os chamados “gabinetes de combate à pobreza energética” (EPAO). Em toda a Europa, muitos destes gabinetes foram criados como balcões únicos dentro dos municípios. Podendo ser constituídos por pessoal municipal ou por terceiros, os EPAO prestam assistência aos cidadãos através de vários serviços práticos e, com pessoal devidamente formado, podem criar perfis energéticos para definir grupos-alvo e propor medidas adequadas.
Embora possam fornecer informações sobre benefícios e regimes de apoio para a realização de obras de renovação de edifícios ou para a modernização de sistemas de aquecimento, os EPAO também dão conselhos mais imediatos sobre a forma como os cidadãos podem reduzir as suas faturas de energia a curto prazo. Estes podem incluir a explicação de como compreender uma fatura energética, a realização de auditorias energéticas e o aconselhamento sobre como reduzir o consumo de energia, bem como informações sobre os serviços de apoio financeiro disponíveis para as famílias com carências energéticas.
No entanto, o funcionamento a longo prazo dos EPAO está frequentemente em risco devido a restrições de recursos financeiros e humanos. É, por isso, imperativo que os Estados-Membros da UE tirem partido dos fundos disponíveis ao abrigo dos programas de financiamento da UE – como o LIFE e o Fundo de Recuperação e Resiliência, bem como o futuro Fundo Social para o Clima (SCF) – para aumentarem as taxas de renovação local e apoiarem a criação e o funcionamento contínuo dos EPAO locais. Os Estados-Membros devem incluir vias de financiamento claras para os EPAO e para a renovação de edifícios nos seus futuros planos (Social Climate Plans). É importante que estes esquemas de apoio financeiro tenham uma perspetiva de longo prazo para evitar que os EPAO parem ou interrompam as operações, comprometendo os esforços de criação de confiança e credibilidade, que podem levar anos a estabelecer. Para além de fundos nacionais para a renovação, os recursos financeiros devem ser canalizados através dos orçamentos dos governos subnacionais.
É crucial criar fluxos de financiamento que apoiem os municípios na sua implementação. Em paralelo ao apoio financeiro disponível para a renovação de edifícios, o financiamento ao abrigo do SCF deve ser aplicado diretamente no funcionamento dos EPAO, com funcionários municipais, e deve ser utilizado para integrar famílias vulneráveis em comunidades de energia.
MAS PODEM AS COMUNIDADES DE ENERGIA SER REALMENTE UMA SOLUÇÃO?
As comunidades de energia, para além de serem uma forma de garantir a participação dos governos locais na afetação das despesas do SCF, apresentam também uma abordagem local única para reduzir os custos da energia.
As comunidades energéticas de iniciativa municipal são ainda uma solução relativamente pouco comum. [Mas] Os municípios estão a aperceber-se cada vez mais deste facto e estão numa boa posição para identificar os cidadãos que podem beneficiar de tais regimes. Em Portugal, a baixa eficiência energética de muitos edifícios é uma das razões pelas quais muitas famílias não conseguem manter as suas casas adequadamente quentes no inverno – lembre-se que, em 2019, 19 % da população portuguesa não tinha meios para fazer isto.
Em Almada, a ineficiência energética generalizada do parque imobiliário agrava ainda mais este problema. No âmbito do projeto Sun4All, o município está a instalar 112 kW de painéis fotovoltaicos em habitações sociais municipais, o que irá permitir a quase 130 famílias beneficiar de uma redução dos custos de eletricidade através do autoconsumo coletivo. São especialmente contemplados os residentes com rendimentos mensais inferiores ao Indexante de Apoios Sociais, bem como os habitantes mais idosos. O regime não implica qualquer custo para os beneficiários, uma vez que o município suporta os custos de investimento necessários para a instalação dos painéis fotovoltaicos. Todos os meses, as famílias selecionadas receberão um desconto na sua fatura de energia com um coeficiente fixo que será devolvido como bónus. Se possível, a fatura incluirá também dicas sobre como poupar energia, informações sobre a energia produzida pelas instalações fotovoltaicas do Sun4All e sobre atividades comunitárias. Estas atividades comunitárias são realizadas de forma regular para informar os participantes sobre formas de poupar energia, o que também inclui a simples explicação de como ler uma fatura de energia.
As comunidades de energia oferecem uma oportunidade única, uma vez que são frequentemente constituídas por voluntários muito motivados no sentido de quererem fazer a diferença na sua área local. Para além da produção imediata de eletricidade, as comunidades também aportam valor na medida em que estes voluntários prestam, muitas vezes, aconselhamento gratuito a agregados familiares com carências energéticas. Nos municípios espanhóis de Hernani e Bergara, os voluntários das comunidades energéticas Enherkom Berener estão mesmo envolvidos na criação de EPAO dedicados e na respetiva alocação de pessoal. O projeto POWERPOOR, financiado pela UE, proporcionou a estas comunidades formação e um conjunto de ferramentas, cuja utilização resultou na identificação e no apoio de agregados familiares em situação de pobreza energética.
Entretanto, os membros da comunidade energética ChalkiON, bem como os funcionários municipais da cidade grega de Chalki, receberam formação que levou a que as famílias em situação de pobreza energética se tornassem membros da comunidade energética local. Assim, estas famílias passaram a beneficiar imediatamente de preços de energia mais baixos graças ao sistema grego de medição virtual da rede, o qual permite que os membros da comunidade energética recebam descontos nas suas faturas de energia. Embora a gestão de um EPAO por membros voluntários das comunidades energéticas possa aumentar a confiança local, é necessário assegurar no terreno estruturas mais fiáveis.
LUZES ACESAS NO LUMIAR
Outro grande exemplo deste espírito de colaboração pode ser observado na freguesia do Lumiar (em Lisboa, Portugal). Graças ao empenho da autarquia local e à cooperação com a Parceira Local de Telheiras, a Universidade NOVA de Lisboa e a cooperativa portuguesa de energia Coopérnico, está a desenvolver-se uma comunidade de energia no Lumiar, que inclui 16 famílias locais. Sabe-se que muitas das famílias participantes têm dificuldades em pagar as suas faturas de energia e outras despesas recorrentes. No centro da comunidade energética está o edifício utilizado pelas associações comunitárias locais, onde vão ser instalados painéis solares. Todas as famílias participantes fazem parte da associação e têm direitos de voto iguais.
No Lumiar, uma série de eventos comunitários revelou- se eficaz para informar as famílias sobre os benefícios de se juntarem e coinvestirem em 18 painéis solares com uma capacidade combinada de 7,4 kWp. Os agregados familiares participantes foram convidados a efetuar um investimento de 600 euros, utilizado para adquirir, instalar e gerir os painéis fotovoltaicos. A regulamentação portuguesa permite a partilha de energia entre agregados familiares na rede de baixa tensão num raio de 2 km (e num raio de 4 km na rede de média tensão). Espera-se que a partilha e o consumo local da energia resultem em poupanças de custos para os agregados familiares participantes, levando a um retorno dos 600 euros investidos em cerca de seis anos.
Naturalmente, as famílias em situação de pobreza energética que participam na comunidade não fizeram este investimento. Em vez disso, a Parceria Local de Telheiras fez o investimento por duas das famílias, enquanto o montante para a terceira família está a ser pago pelos outros membros. Este é um bom exemplo de uma comunidade energética solidária que permite que aqueles que têm algumas poupanças invistam de forma sustentável na transição energética local (e recebam descontos nas suas faturas de energia), ao mesmo tempo que dá aos mais necessitados a oportunidade de participar.
ATRAVÉS DE ROTEIROS NACIONAIS
Juntamente com os EPAO e as comunidades energéticas de iniciativa municipal, é essencial uma orientação nacional clara para combater a pobreza energética. Oito roteiros nacionais para~aliviar a pobreza energética foram codesenvolvidos no âmbito do POWERPOOR, envolvendo Portugal, Espanha, Hungria, Croácia, Grécia, Bulgária, Letónia e Estónia, e servem agora de orientação para os governos nacionais, regionais e locais implementarem estratégias juridicamente vinculativas.
Estes roteiros contêm informações sobre as políticas recomendadas e sublinham que medidas nacionais abrangentes adicionais, como o apoio direto ao rendimento temporário e os subsídios à renovação em grande escala, podem ser formas eficazes de combater a pobreza energética.
Os roteiros nacionais reconhecem igualmente a importância da apropriação local das infraestruturas energéticas e das comunidades de energia para proteger os consumidores vulneráveis dos preços elevados. De facto, a experiência dos projetos POWERPOOR e MATRYCS mostra que a gestão eficaz das comunidades energéticas e dos sistemas de partilha de energia ou de autoconsumo coletivo pode contribuir para reduzir os custos.
Atualmente, o futuro SCF da UE prevê que os Estados-Membros possam atribuir diretamente parte do financiamento disponível na forma de apoio ao rendimento de determinados agregados familiares com baixos rendimentos. Para garantir que o apoio direto ao rendimento incentiva a poupança de energia a longo prazo e a mudança de comportamentos, uma sugestão poderia ser a utilização de parte deste financiamento para cobrir o custo do investimento necessário associado à integração de famílias vulneráveis numa comunidade de energia. Em vez de visarem o retorno económico através de tarifas de aquisição, estas comunidades energéticas deveriam centrar-se no desencadeamento de descontos nos custos de eletricidade dos agregados familiares participantes através de modelos como o autoconsumo coletivo, a partilha de energia e a contagem líquida (virtual).
Para além das medidas nacionais pertinentes, é consensual entre os países analisados que as soluções a nível local são cruciais para combater eficazmente a pobreza energética. É necessário mais apoio estrutural e financeiro para ajudar os governos locais a identificarem e apoiarem os cidadãos em situação de pobreza energética. Como já foi referido, há muitos exemplos de apoio direto oferecido a nível municipal aos agregados familiares em situação de pobreza energética em toda a Europa. Na Grécia, vários municípios estão a basear-se em programas existentes, como o de assistência a idosos, para identificar e visitar agregados familiares que se debatem com o pagamento das suas contas de energia. A confiança é tudo quando se trata deste tipo de trabalho, e os funcionários municipais estão numa posição ideal para a criar.
Uma ferramenta acessível em termos de utilização que pode ajudar os funcionários municipais a atingirem este objetivo é a POWER TARGET, que identifica os cidadãos em situação de pobreza energética através de uma abordagem baseada em dados. É preenchido um inquérito com informações sobre o rendimento, o consumo de eletricidade em kWhs, o custo e o consumo de combustível para aquecimento, juntamente com uma autoavaliação sobre o conforto térmico experienciado pelo utilizador. A ferramenta utiliza, então, os dados para calcular em que medida o agregado familiar pode ser considerado energeticamente pobre.
Os dados dos roteiros nacionais resultantes do POWERPOOR e os exemplos de ações que vão à raiz do problema, como as ilustradas em Portugal, Espanha e Grécia, mostram que muitos governos locais têm um grande interesse em adotar abordagens inovadoras para combater a pobreza energética. A melhor forma de o fazer é no âmbito de um quadro nacional que compreenda que, para combater eficazmente a pobreza energética, os governos locais devem ser apoiados na prestação de serviços adaptados às realidades dos cidadãos.
Artigo publicado originalmente na edição de Novembro/Dezembro de 2023 da Edifícios e Energia
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.