Com a pandemia de Covid-19, e após ter sido compreendido que o vírus se propagava por via área, a solução imediata e realista (à falta de outra melhor) foi a de recomendar a ventilação intensa dos espaços interiores. Ventilação natural onde (e quando) fosse possível, ou ventilação mecânica onde houvesse sistemas de climatização. As regras foram, geralmente, recorrer a 100 % de ar novo e não recircular nada para não reintroduzir o vírus no interior. Isto é, a pandemia levou a um aumento muito significativo da taxa de renovação, feita voluntariamente com base em recomendações, sem que houvesse sequer tempo para produzir normas e regulamentos, uma vez que são precisos anos para produzir algo sólido e validado pela comunidade profissional e adotado pelo legislador.
Claro que o aumento da ventilação aumentou os custos de funcionamento para pagar a maior energia necessária para climatização. Mas este foi sempre o paradoxo histórico entre uma boa qualidade do ar interior (QAI) e o custo de funcionamento para climatização. Passada (aparentemente) a fase aguda da ainda atual pandemia, vale a pena rever a evolução das “boas” práticas de ventilação ao longo dos tempos para tentar prever (adivinhar?) o que nos reserva o futuro.
O primeiro registo de um regulamento (ou recomendação técnica) data de 1825. Em Inglaterra, foi imposto que os edifícios deviam ser concebidos para permitirem uma taxa de ventilação natural de 9 m³/hr.pessoa, para permitir manter um ar interior saudável, eliminando o CO2 da respiração e os fumos resultantes das velas usadas para iluminação – à época, não havia ainda eletricidade… Hoje, sabemos que esta taxa de renovação seria ainda insuficiente, mas os conhecimentos de então eram limitados.
Os avanços científicos durante o final do século XIX, nomeadamente na área da saúde, identificaram a causa da maior doença à data prevalente: a tuberculose. A conclusão foi a de que, quanto maior fosse a taxa de renovação do ar interior, menor era a probabilidade de transmissão do bacilo e da doença. E, em 1900, a regra dos 9 m³/hr.pessoa foi atualizada para… 108 m³/hr.pessoa! Um valor enorme, que quase equivalia a obrigar a viver no interior com 100 % de ar exterior, mas que tinha uma excelente motivação: reduzir a praga da tuberculose.
Felizmente, os progressos científicos também permitiram que fossem rapidamente descobertos tratamentos para a doença, em particular com a descoberta dos antibióticos, e a ventilação deixou de ser uma preocupação. Com isso, a norma dos impraticáveis 108 m³/hr.pessoa caiu simplesmente no esquecimento; o mundo passou, novamente, a viver sem qualquer norma que regulasse a ventilação dos edifícios.
E assim tudo se manteve até que, em 1973, ocorreu o primeiro embargo de petróleo ao Ocidente e o custo da energia disparou. A energia barata desapareceu! Com isso, apareceram os primeiros regulamentos visando a eficiência energética nos edifícios e apareceu também a primeira norma de ventilação dos tempos modernos, a ASHRAE 62, que inspirou muitas outras normas e regulamentos por todo o mundo. O valor então fixado foi o de 18 m³/hr.pessoa, baseados em estudos experimentais validados sobre QAI derivada dos bioefluentes – um valor muito razoável, embora algo inferior ao padrão que hoje é normalmente exigido para garantir uma boa QAI.
Com a segunda crise energética, em 1980, e um novo aumento do custo do petróleo e da energia em geral, a carteira pesou mais do que a QAI e as normas reduziram o caudal mínimo de renovação para apenas… 9 m³/hr.pessoa.
Fechou-se o círculo, e voltámos a 1825! O resultado de tão baixas taxas de renovação do ar foi o aparecimento dos ditos Edifícios Doentes, ou o Sick Building Syndrome (SBS), como ficou mais conhecido. A baixíssima QAI nestes edifícios provocava mal-estar nos ocupantes, doenças respiratórias, alérgicas e outras, absentismo, etc. Quando ficou provada esta realidade, as normas e os regulamentos rapidamente mudaram, passando a exigir taxas de ventilação mínimas de 25 m³/hr.pessoa, em 1986, e 30 m³/hr.pessoa, em 1989, voltando aos 24 m³/hr.pessoa, na regulamentação nacional em 2013.
“ Há que acautelar, nos projetos, o princípio da flexibilidade: por um lado, deixar sempre uma margem para responder a uma crise, mas, por outro, nunca projetar para uma situação de crise sem deixar acautelado o regresso ao ‘normal’ num futuro não muito distante.”
Esta relativa longa estabilidade de 30 anos, com apenas pequenas variações entre 24 e 30 m³/hr.pessoa, foi agora perturbada pela pandemia de Covid-19. Ao passar-se a recomendar o uso de 100 % de ar novo, os valores da taxa de ventilação nos edifícios subiram muito, talvez até na mesma ordem de grandeza, ou mais, do que os “decretados” em 1900 em Inglaterra. Foi uma reação normal: o medo da doença sobrepôs-se ao custo de funcionamento. E, tal como o problema da tuberculose foi resolvido no início do século XX com medicamentos adequados, avizinha-se a resolução da Covid-19 através das vacinas de 2021, com o retorno ao “novo normal” em 2022 e os novos tratamentos que desejavelmente irão em breve aparecer. Será de prever que também as taxas de renovação voltem gradualmente ao normal, especialmente quando, agora também em 2022, apareceu uma nova crise energética com aumentos muito significativos do custo da energia!
A lição a tirar destes factos históricos é que tendemos a reagir, e bem, a crises sanitárias – porventura, a reagir por excesso – regressando, depois, gradualmente a um novo normal ajustado, quando essas crises são resolvidas por avanços nas ciências de saúde. Portanto, há que acautelar, nos projetos, o princípio da flexibilidade: por um lado, deixar sempre uma margem para responder a uma crise, mas, por outro, nunca projetar para uma situação de crise sem deixar acautelado o regresso ao “normal” num futuro não muito distante.
A par disso, também não podemos deixar que considerações económicas possam colocar em causa a saúde dos ocupantes. A atual crise energética, com custos muito acrescidos para climatização, não pode levar, de forma alguma, ao reaparecimento de algo sequer parecido com o SBS. Há que usar as melhores tecnologias e conhecimentos para reduzir custos, considerando o ciclo de vida, mas sem nunca colocar em causa a QAI. Há que manter ou ajustar marginalmente os atuais valores de referência, que têm uma base científica sólida, podendo, no entanto, adotar-se outras soluções que garantam a QAI com menores custos globais (por exemplo, ventilação variável, filtragem, recuperação de calor, etc.), caso a caso, como as regulamentações têm já vindo a permitir (e.g., o procedimento QAI da norma ASHRAE 62).
Em modo de conclusão, as taxas de renovação de ar reagem, sobretudo, a crises sanitárias e a crises energéticas. Até 2020, as crises foram ou sanitárias ou económicas. No presente, e pela primeira vez, temos uma crise dupla, sanitária e energética, em simultâneo. Navegamos em águas nunca antes navegadas e temos de encontrar uma solução nova para uma situação nova. Teremos de saber procurar o melhor equilíbrio.
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.