No meio de uma pandemia e com as pessoas confinadas às suas habitações, a qualidade do ar interior (QAI) adquire uma importância central. Assegurar a renovação do ar através da abertura de janelas e do funcionamento contínuo dos sistemas AVAC pode “ajudar a controlar” a propagação da Covid-19. A QAI “está mesmo à frente das pessoas”, mas falta informá-las e integrá-la harmoniosamente na legislação dos Estados-Membros europeus.

Olhos irritados, nariz entupido e até depressão. Umas semanas fora de casa ou do escritório, e os sintomas desaparecem. A resposta, sem que se tivesse desconfiado antes, pode afinal estar no ar que se respira em casa ou no local de trabalho. Os edifícios podem estar doentes e transmitir a doença aos seus ocupantes. João Rufo é investigador no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), formado em ciências biomédicas, mas foi quando estava “mais focado na parte da imunologia clínica”, enquanto tirava o mestrado na Universidade da Beira Interior, na Covilhã, uma cidade com “muita indústria”, ou com uma indústria que, pelo menos, “existia antigamente”, que começou a perceber “que existe uma associação entre ter trabalhado em espaços em que se produzia e o desenvolvimento de algumas doenças”. Hoje, está mais virado para a parte clínica e percebe “como é que algumas doenças aparecem” e de que forma os médicos “têm de desconfiar sobre a causa”.

A exposição a vários tipos de poluentes do ar, que podem estar presentes no ar exterior mas também no interior dos edifícios, pode levar “à exacerbação” dos sintomas “para quem é alérgico”, sofre de asma ou de doença pulmonar obstrutiva crónica. No caso dos edifícios, as pessoas não têm consciência da importância da qualidade do ar interior (QAI), embora esta “esteja mesmo à sua frente”, diz João Rufo.

Para o cidadão comum, estabelecer a relação entre a QAI e o desenvolvimento de doenças ou a exacerbação dos sintomas é, por vezes, “complicado”, considera João Rufo. “Isto acontece muitas vezes. Deparamo-nos, em imensas situações, com pessoas que iam para o local de trabalho e sentiam-se cansadas, com a garganta a arranhar. Foram a consultas de alergologia porque achavam que tinham, de repente, ficado com doença alérgica. Mas isto são sintomas de Edifício Doente. Depois, vão de férias duas semanas e os sintomas melhoram. O que está a acontecer é mesmo uma exposição negativa no local de trabalho. As pessoas não sabem o que são partículas, muitas vezes não sabem o que são os compostos orgânicos voláteis. Sentem o odor, o odor enjoa, mas não sabem o que é e o que pode causar”.

Os sinais de alerta podem ser vários, tais como dores de cabeça constantes, irritação nasal constante, corrimento nasal, ou, pelo contrário, constante obstrução nasal, comichão nos olhos. “Isto é muito frequente acontecer e as pessoas associam ao cansaço, mas, muitas vezes, é da qualidade do ar”. As consequências da exposição são múltiplas: “a nível respiratório pode, se a exposição for contínua, chegar à pieira”. E “para além destes, existem os outros [parâmetros] que são difíceis de medir, mas que estão sempre lá presentes, que são os factores psicológicos e psicossomáticos”. Um ambiente com uma pobre qualidade do ar interior pode reflectir-se num “sistema nervoso em sofrimento”. Em certos casos, conta o especialista, uma pessoa pode estar cansada, em depressão, e, saindo desse edifício, desse espaço, melhora drasticamente dessa sintomatologia. “É muito importante que as pessoas tenham consciência [disto]”.

A “relação directa” entre a Covid-19 e a qualidade do ar interior

É a Organização Mundial de Saúde (OMS) a dizê-lo: os europeus passam “aproximadamente 90 % do seu tempo em espaços interiores”. Nas casas, nos locais de trabalho e nas escolas, a “qualidade do edifício” tem uma “relação directa” com muitos problemas de saúde, lê-se no relatório de 2013 do escritório regional para a Europa da OMS Combined or multiple exposure to health stressors in indoor built environments.

A declaração do estado de pandemia e a imposição de medidas de confinamento levou as pessoas a passar ainda mais tempo nas suas habitações. O dever de recolhimento domiciliário, a adopção generalizada do teletrabalho e o encerramento das escolas obrigaram milhões a permanecer em casa, aumentando a sua exposição à QAI.

Antes da confirmação, havia já a suspeita da relação entre a poluição do ar interior e o novo coronavírus (Covid-19). “A qualidade do ar tem sempre uma associação” com as doenças respiratórias, não esconde o investigador no ISPUP, que integra também o painel de epidemiologia da Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica (EAACI). “Sendo a Covid-19 uma doença muito associada a sintomas respiratórios, à partida, já suspeitávamos de que existia realmente uma associação”. Agora, há a confirmação e a associação é “directa”, sublinha João Rufo. Um estudo conduzido por cientistas do departamento de bioestatística da Escola de Saúde Pública TH Chan da Universidade de Harvard concluiu que “um pequeno aumento” na exposição a partículas inaláveis (PM) “leva a um grande aumento da taxa de mortalidade da Covid-19”. O mesmo estudo revelou que um aumento de apenas um micrograma de partículas inaláveis (PM 2.5) por metro cúbico corresponde a uma subida de 15 % na mortalidade pelo novo coronavírus.

Com a pandemia, João Rufo nota “que se está a falar um pouco mais dos cientistas”, incluindo nos órgãos de comunicação em geral. “Acho que éramos um pouco esquecidos antes de sermos precisos”, lamenta. A QAI “é um assunto que não era debatido” e “ainda não o é suficientemente”, mas a crise global de saúde pública veio despertar um maior interesse no tema.

Numa altura em que as pessoas “passam a maior parte do seu tempo em casa”, torna-se imperativo assegurar a QAI. E isso foi motivo suficiente para que João Rufo e Ana Isabel Ribeiro, sua colega de investigação no ISPUP, lançassem um trabalho científico intitulado COVID-19 e a necessidade de assegurar a qualidade do ar interior.

Os poluentes do ar interior

São vários os agentes nocivos para a QAI. As partículas inaláveis de “dimensões mais reduzidas, de 2.5 micrómetros para baixo [PM 2.5], conseguem penetrar algumas barreiras que nós temos no corpo” e são “mais nocivas para a nossa saúde”, refere João Rufo. O trabalho realizado pelos investigadores explica que estas partículas são “principalmente originadas em pontos de combustão”, tais como aquecimentos a gás, durante a confecção de alimentos ou a utilização de velas, prática que, em entrevista à Edifícios e Energia, o especialista desaconselha. “Depois, temos os compostos orgânicos voláteis” e que podem, por exemplo, ser libertados durante o manuseamento de produtos de limpeza. Neste lote, incluem-se a lixívia, tintas, perfumes, óleos, colas, gorduras ou cosméticos. O gás radão pode também ser um problema “em certas áreas do nosso país”, como são as “caves em espaços graníticos”. Acrescem, ainda, o dióxido de azoto, proveniente do fumo de tabaco, lareiras ou da proximidade a estradas movimentadas e o ozono, mais comum em locais de trabalho, na proximidade de equipamentos como “impressoras a laser”.

Há ainda “mais alguns” poluentes “não tão referenciados”, nos quais João Rufo inclui os fungos e bactérias e os vírus, como o SARS-CoV-2, responsável pela propagação da Covid-19. Estes últimos não são habitualmente incluídos nos parâmetros da poluição do ar interior, “mas, neste caso, o vírus pode ser transportado pelas tais partículas”. “Se tivermos um ambiente com muitas partículas, podemos estar mais expostos ao vírus”, alerta.

Renovar o ar “é o passo mais importante”

Segundo o trabalho científico lançado pelos dois investigadores do ISPUP, uma QAI pobre é causada por ventilação inadequada em 48,3 % dos casos, seguindo-se as fontes interiores de poluentes (17,7 %), as fontes exteriores (10 %) e, com um peso menor, a humidade no interior da habitação, os agentes microbiológicos e os materiais de construção.

Nas habitações, a mudança de comportamentos pode ter um impacto real no que respeita à QAI. João Rufo e Ana Isabel Ribeiro elencam um conjunto de “15 recomendações simples para melhorar a qualidade do ar na habitação durante o surto de Covid-19”. A renovação do ar através da ventilação é mesmo “o passo mais importante”, lê-se no documento. Mas há outras indicações, como a abertura das janelas “todos os dias” e durante o varrimento ou aspiração, o “alternar a permanência entre as divisões da habitação”, ter especial atenção à ventilação “durante e após” a prática de exercício físico em casa, evitar fumar ou acender velas, ligar a exaustão mecânica durante a confecção de alimentos ou durante o aquecimento por combustão da residência e evitar o “uso desnecessário de produtos de limpeza”.

No capítulo da renovação do ar, João Rufo considera que a ventilação mecânica “funciona” – “Quando a manutenção é bem feita, vemos que a QAI consegue ser melhor, porque se reduziram as partículas, os níveis de humidade e temperatura estão mais regulados”. O investigador lembra também a importância dos sistemas de aquecimento e arrefecimento, “que conseguem manter a qualidade do ar”. Com a temperatura e humidade “em níveis agradáveis, conseguimos reduzir o impacto dos outros parâmetros”. O especialista exemplifica: “a temperatura influencia o efeito das PM 2.5 na saúde das pessoas. A altas temperaturas, estas partículas são mais nocivas do que a baixas temperaturas. Temos de ter isso em consideração”.

No entanto, no que se refere à ventilação mecânica, é preciso ter atenção: “estamos a aplicar filtros” e “ao vivermos em ambientes de ventilação mecânica, estamos a isolar tudo o que é mau de fora, mas também estamos a isolar o que é bom. Numa escola com ventilação mecânica, as crianças estão menos expostas aos alergénios, ao clima exterior, e estes alergénios, para quem é alérgico, vão provocar reacção, mas para quem não é alérgico ajudam a controlar o sistema imunitário e a criar alguma tolerância”. Por esse motivo, o especialista admite privilegiar a ventilação natural, considerando “muito importante esta parte da exposição do espaço interior à natureza”. “Sempre que fazemos um espaço, temos de ter uma forma de o ventilar naturalmente”.

Avaliação da QAI habitacional de acesso difícil

Sobre a QAI do parque habitacional português, João Rufo aponta várias dificuldades na sua caracterização. “Vemos poluentes diferentes em todo o lado, diferentes perfis da qualidade do ar, não temos tido muito financiamento para fazer este tipo de avaliações. Fazer de uma forma geral uma avaliação da QAI em Portugal é complicado”, confessa.

“Se uma pessoa tem uma má QAI no seu local de trabalho, vai conseguir, através do médico do trabalho, ter alguma alteração. Se tiver [má qualidade do ar] na sua habitação, já não consegue tão facilmente. Porque, primeiro, vai, talvez, a um médico que não está tão informado sobre o tema, porque não é médico de trabalho, não tem tanta noção do problema da qualidade do ar, e porque não sabe que tem de fazer uma avaliação à qualidade do ar, não sabe como medir”.

Em Portugal, as avaliações à QAI “já foram obrigatórias”. O investigador do ISPUP acredita que vai ser “difícil” que voltem a ser, já que “uma análise à qualidade do ar é muito dispendiosa, requer oito horas de amostragem para alguns poluentes”. Resta a “transmissão desta informação para o público em geral, que precisa de saber”. “Tem de ser o ocupante” do edifício a indicar “que existe algum problema. Esta informação tem de ser transmitida aos ocupantes e à população em geral e isso acho que tem de partir dos media”. O investigador receia que aquilo em que teve “imenso trabalho e que o Estado financiou vá morrer em artigos científicos” e que a mensagem “não passe para o exterior”. O conhecimento que João Rufo e os seus colegas geram “é do Estado” e, por isso, considera que este “devia usá-lo para melhorar a qualidade de vida dos portugueses”.

QAI por integrar na UE e nos Estados-Membros

O portal da Comissão Europeia para a eficiência energética nos Edifícios (Build Up) aproveitou as conclusões de um relatório de 2018 do BPIE – Buildings Performance Institute Europe para voltar a sublinhar, no mês de Abril, a necessidade de melhorar a integração de medidas para a QAI. O relatório concluiu existir a necessidade de integrar várias áreas relacionadas com a QAI nas legislações dos países membros da União Europeia (UE) e na Directiva Europeia para o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD).

O documento realça o facto de se verificarem “variações significativas nos requisitos de QAI existentes a nível nacional”. O relatório sugere que a revisão de 2018 da EPBD, “apesar de incluir elementos de saúde, conforto, qualidade do ar interior e das condições climáticas interiores, peca por escassa na informação relacionada com o cumprimento de uma QAI satisfatória” e considera que “a grande oportunidade se encontra ao nível [da legislação] nacional”, sendo “necessário desenvolver abordagens” para uma maior integração da QAI nas políticas de cada Estado-Membro. Nesse sentido, identifica “quatro áreas de oportunidade” para melhorar a QAI: a utilização de estratégias nacionais de reabilitação a longo prazo, a certificação energética de edifícios, a implementação de medidas de controlo de qualidade e a integração de aspectos QAI no indicador SRI (Smart-Readiness Indicator – indicador que avalia a capacidade que os edifícios têm de usar sistemas tecnológicos de informação e comunicação para melhorar o seu desempenho).

Em Portugal, há legislação com valores de referência apenas para os grandes edifícios, edifícios de serviços e comércio. Pede-se que se “privilegie o recurso à ventilação natural, sendo a ventilação mecânica complementar para os casos em que a ventilação natural seja insuficiente para cumprimento das normas aplicáveis”. A fiscalização do cumprimento das normas aplicáveis em matéria de QAI é responsabilidade da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), mas, segundo a EFRIARC, esta não tem condições para realizar auditorias à QAI e só é chamado a intervir em caso de queixa e, mesmo assim, há dúvidas de que existam respostas.