A reabilitação urbana faz parte da resposta à pobreza energética e à descarbonização do edificado. As cidades são centrais nesta estratégia, que teima em não avançar à velocidade desejável. Conheça as várias dimensões do problema e os desafios que colocam os edifícios no centro da intervenção e da transição energética.

Em Portugal, por cada edifício construído depois de 2011, há pelo menos sete que foram edificados até 1960. Um parque habitacional envelhecido é o retrato dos últimos censos disponíveis (2021). A prioridade da reabilitação energética é reconhecida e sem ela não conseguimos descarbonizar os edifícios a 100 % até 2050, nem conseguimos atacar o problema da pobreza energética. O problema é abrangente e o impasse está instalado: as ajudas do Estado são insuficientes e a onda de renovações está a avançar de uma forma muito lenta. Perante este quadro, quais as opções que temos?

O envelhecimento das nossas casas é a realidade mais visível, sobretudo nas zonas alentejanas e um pouco por todo o país, ainda que as necessidades de reparação se pareçam concentrar mais na Região Autónoma da Madeira (43 %), no Centro (37,4 %) e no Norte (37,2 %). Se olharmos para os alojamentos, existem mais de 5,9 milhões de apartamentos e mora- dias – dos quais 70 % são residências habituais. Existem ainda grandes disparidades a nível regional, com as zonas litorais e as áreas metropolitanas de Lisboa, Porto e arredores a concentrarem a maior parte deste tipo de habitações: 25,1 % na área metropolitana de Lisboa e 14 % na do Porto.

Parque habitacional, população e cidades são três dos elementos que se cruzam na esfera da reabilitação urbana, “uma componente indispensável da política das cidades e da política de habitação”, lê-se no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU). “Nela convergem os objectivos de requalificação e revitalização das cidades, em particular das suas áreas mais degradadas, e de qualificação do parque habitacional, procurando-se um funcionamento globalmente mais harmonioso e sustentável das cidades e a garantia, para todos, de uma habitação condigna”.

O tema da reabilitação urbana tem na sua componente local um peso muito grande e é aqui que o poder autárquico e a gestão dos territórios entram como uma peça-chave. O planeamento urbano adquire uma importância acrescida e a Europa já percebeu isso. Segundo Ursula von der Leyen, o Novo Bauhaus Europeu pretende ser um “projecto ambiental, económico e cultural que visa combinar a concepção, a sustentabilidade, a disponibilidade, a acessibilidade de preços e o investimento, a fim de ajudar a concretizar o Pacto Ecológico Europeu das pessoas”. Ou seja, o desafio da reabilitação deve ser atacado nas suas vá- rias dimensões ambientais, sociais e económicas.

Os países da União Europeia (UE) comprometeram-se a alcançar a neutralidade climática até 2050 – alguns deles ainda antes, até 2045, como é o caso de Portugal. Sucede que “quase 75 % dos edifícios existentes na União Europeia são ineficientes em termos de energia e irão requerer uma renovação energética a grande escala”, refere o Conselho Europeu. Actualmente, cerca de 35 % dos edifícios da UE têm mais de 50 anos. Ao mesmo tempo, a taxa média anual de renovação energética é de apenas cerca de 1 %. Sabemos também que um terço (36 %) das emissões de gases com efeito de estufa na UE está associado ao parque edificado, logo, qualquer estratégia de combate a este problema passa pelo aumento da eficiência e do desempenho energético nos edifícios. A questão está em saber como.

Caminhos e estratégias

Neste cenário e face à urgência climática, a UE aponta o caminho. Na via da descarbonização, é preciso apostar na chamada Renovation Wave [Vaga de Renovação] se quisermos avançar para a transição energética. As orientações são claras: “a reabilitação dos edifícios e das cidades são prioritárias e não podem deixar ninguém para trás”. Resolver o problema da pobreza energética e do direito à habitação exige medidas concretas e um desígnio europeu.

Como sabemos, uma das estratégias para combater as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) é aumentar a eficiência energética, um trabalho alargado que inclui a nova Directiva de Desempenho Energético para os Edifícios (EPBD), já acordada politicamente e que aguarda publicação.

Portugal tem seguido as orientações europeias. São disso exemplo os vários documentos nacionais que as enquadram: o Plano Nacional para a Energia e Clima (PNEC 2030), cujo processo de revisão está em andamento, ou o Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC 2050) são bons exemplos. O problema é transversal a outros países da União Europeia: é preciso dinheiro, é preciso um plano de acção e uma estratégia de financiamento.

A Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE), que surge mais recentemente, vem definir objectivos ambiciosos. Lê-se neste documento que “em linha com os objectivos climáticos da UE, Portugal assumiu o compromisso de atingir a neutralidade carbónica até 2050 mediante a aprovação, em 2019, do RNC 2050. Para o cumprimento dos objectivos da descarbonização e da transição energética, procedeu-se à elaboração e aprovação, em 2020, em articulação com o RNC 2050, do PNEC 2030, que estabelece as metas e os objectivos, e concretiza as políticas e medidas para 2030”.

Uma encruzilhada de boas intenções

É neste quadro de boas intenções, muitas estratégias e pouca acção que estamos e ninguém está contente. Parece uma encruzilhada difícil de sair. Eduardo Maldonado, Professor Catedrático da FEUP – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, numa das suas colunas habituais de opinião nesta revista, foi peremptório. A resposta à pergunta sobre se estamos dispostos a pagar pela descarbonização “é um rotundo NÃO! Pelo menos para uma maioria, pois é claro que há sempre uma minoria (uma elite?) sensibilizada para esta temática e com recursos económicos sufi- cientes para marcar a diferença, de forma voluntária”. O valor estimado de 140 mil milhões de euros para a renovação do parque edificado nacional pode parecer uma loucura, mas a nossa realidade socioeconómica não é favorável. Em Portugal, 20,1 % das pessoas estão em risco de pobreza ou exclusão social, de acordo com os dados apurados pelo Eurostat para o ano de 2022.

Lidar com as necessidades de reabilitação implica um olhar social com políticas apropriadas de combate à pobreza a vários níveis. Falar em reabilitação urbana e energética obriga-nos a pensar na saúde, no conforto térmico, na eficiência energética e nas estratégias urbanísticas. E pensar em estratégias para mitigar esta pobreza implica conhecer a fundo a realidade existente, e este parece ser o grande pecado da Estratégia de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética, recentemente aprovada. Trata-se de um bom diagnóstico, mas insuficiente para os especialistas. É preciso ir ao pormenor, como explica Manuela Almeida, professora e investigadora da Universidade do Minho numa recente entrevista à nossa revista.

“É um documento que faz um bom levantamento da situação nacional e identifica as estratégias que devem ser implementadas, a diversos níveis e em diversas áreas, de uma forma faseada até 2050, para aliviar ou eliminar as situações de pobreza energética que afectam de forma significativa cerca de 19 % da população portuguesa. No entanto, apesar de as ações estarem identificadas, não é claro como vão ser concretizadas de forma eficaz. Os exemplos que temos visto estão longe de serem eficazes e muito longe do necessário para cumprir o que está no plano e nos prazos previstos no plano”.

As ajudas do Estado são insuficientes para que a reabilitação aconteça da forma necessária. São exemplo disso mesmo os vários programas que têm saído e que implicam investimento inicial das famílias. Por outro lado, “muitos dos incentivos não chegam às famílias necessitadas, quer pela complexidade do sistema criado, quer pela falta de informação e conhecimento, quer ainda pela manifesta impossibilidade de arcar com alguns custos inerentes ao processo”, explica a professora da Universidade do Minho.

Para Manuela Almeida existe um conjunto de questões que o Estado deve ter em conta neste processo: “criar incentivos para renovações energéticas abrangentes mesmo que não-rentáveis; disponibilizar garantias financeiras e incentivos não apenas para medidas pontuais, mas para o processo de renovação completo, garantindo o melhor desempenho final do edifício; promover uma abordagem holística, ligando a renovação dos edifícios ao planeamento urbano e às metas de redução das emissões de carbono, visando a melhoria da qualidade de vida dos residentes; promover modelos de negócio inovadores e intersectoriais para projectos de renovação ambiciosos eliminando possíveis barreiras legais; implementar programas financeiros para diferentes grupos-alvo, especialmente os de baixo rendimento, que devem ser apoiados e desobrigados dos custos de renovação do edifício; criar incentivos financeiros para tornar o uso de energias renováveis e os sistemas de armazenamento de energia mais acessíveis; oferecer soluções e serviços integrados através de pontos de contacto únicos (balcão único); desenvolver plataformas colaborativas para diferentes grupos-alvo, assim como ferramentas confiáveis e de fácil uso para garantir a qualidade nos processos de contratação, projecto e execução; promover campanhas de sensibilização e comunicação efectiva entre os actores envolvidos no processo de renovação, especialmente os moradores”.

Financiar a descarbonização

De acordo com a sexta edição do Inquérito do Banco Europeu de Investimento (BEI) sobre o Clima, divulgada no final de Novembro de 2023, o aumento do custo de vida e as disparidades de rendimento são os dois desafios mais sérios que preocupam os portugueses inquiridos, dos quais 82 % (14 pontos percentuais acima da média da UE) acreditam que a transição para uma economia hipocarbónica só pode acontecer se forem adoptadas medidas simultâneas de combate às desigualdades sociais e económicas, já que a transição ecológica poderá afectar os orçamentos dos cidadãos, sobretudo os das famílias com rendimentos mais baixos. “Apenas 31 % dos inquiridos dizem estar confiantes na capacidade do país para realizar essa transição climática justa”, refere o BEI, o braço financeiro da União Europeia, em comunicado.

A renovação dos edifícios faz parte da estratégia das cidades para a reabilitação urbana, um tema que temos seguido na revista Edifícios e Energia. O parque edificado é maioritariamente antigo e a precisar de intervenção, o que deixa patente não só a necessidade de reabilitar aquilo que está hoje degradado, mas também aquilo que, para a frente, não será suficientemente ambicioso do ponto de vista ambiental, nomeadamente as casas que se estão a construir neste momento. É que, hoje, ainda é possível construir no nosso país edifícios que estão muito longe das metas da descarbonização, porque não temos qualquer programa que vá nesse sentido. Aparentemente os nossos governantes estão à espera da transposição da nova EPBD e o tempo vai passando. Resultado: os problemas vão-se avolumando. Depois surge outro desafio: temos de fazer a transição, mas de uma forma acessível, sobretudo quando introduzimos as questões da pobreza energética e do direito à habitação digna. A dimensão social do problema carece de urgência nas respostas e os edifícios, hoje, são protagonistas na transformação sustentável. É por tudo isto que as respostas dos municípios assumem hoje um papel redobrado.

Atacar o problema é difícil, mas a responsabilidade é transversal e deve ser distribuída. Os apoios comunitários e o investimento privado são muito importantes. Do lado dos privados, o “ritmo de recuperação dos indicadores da reabilitação urbana acelera”, sublinha a AICCOPN – Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas no Barómetro da Reabilitação Urbana de Novembro de 2023. Segundo a associação, houve um aumento de 6,6 % de actividade no passado mês de Outubro, em relação ao anterior. Há um ano, o nível de actividade apresentava-se com uma variação negativa, numa quebra de 10,4 %. Ao longo do ano de 2023, este indicador foi flutuando, demonstrando uma recuperação nos primeiros dois meses, seguida de uma quebra até cerca de Julho, voltando a recuperar a partir de Agosto. Uma, no entanto, insuficiente para as necessidades que temos.

Hélder Gonçalves, director do Laboratório de Energia do LNEG – Laboratório Nacional de Energia e Geologia, num dos últimos números desta revista, sublinha que “não vai haver nenhum orçamento de Estado que consiga resolver os desafios da reabilitação. Os fundos [dispensados] são absolutamente impossíveis [para as necessidades]”. “É necessário reforçar o investimento na reabilitação energética do parque de edifícios existentes”, reforça Ana Brandão de Vasconcelos, membro do LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil e da equipa responsável pela monitorização do progresso da ELPRE. Na questão da renovação ainda se está “bastante aquém” da meta de 49 % para 2030. “Esta- mos só próximos de 1 %”, diz, ainda que tenha salva- guardado que o valor possa estar subestimado tendo em conta que se baseia nos programas de apoio.

A descarbonização, como escrevia Eduardo Maldonado, dependerá também de se “fazer um intensivo e dispendioso esforço para a renovação energética da quase totalidade do parque construído, mesmo dos edifícios que estão a ser construídos no presente”. Segundo este especialista, o Estado ofereceu pequenos apoios tendo em conta a “previsão das necessidades estimadas para este esforço (mais de 140 mil milhões de euros)”. Para Eduardo Maldonado, os “utilizadores têm de sentir o impacto das medidas em que vão investir na sua qualidade de vida e nas suas finanças pessoais” e “disponibilizar as soluções mais sustentáveis a menores custos”. E, adianta, “a solução para a crise da habitação não vai conseguir ficar desligada das políticas para a descarbonização, e vai ser necessário encontrar um equilíbrio entre ambas as políticas, que, na sua essência, puxam em direcções distintas.

Edifícios descarbonizados vão ser mais caros e [fazer essa descarbonização] vai reduzir mercados. E as políticas da habitação apontam para mais edifícios a menor custo. É provável que continue a tendência para moderar os requisitos mínimos a impor na regulamentação térmica/energética, tornando mais lento o progresso para a descarbonização total em 2050, de modo a minorar os impactos nos custos da habitação, remetendo para mais tarde, quando as condições económicas forem mais variáveis, um acelerar do caminho para a descarbonização total do sector dos edifícios. Para já, políticas públicas realistas apontarão provavelmente para que seja mais importante a quantidade (número de unidades de habitação) e um custo mais baixo por unidade do que atingir (ou exigir) uma qualidade energética da habitação mais próxima do carbono zero.”

As cidades no centro das estratégias

A nível europeu, o projecto Eyes Hearts Hands Urban Revolution (EHHUR), com um horizonte de quatro anos, pretende ajudar as cidades a adoptarem soluções sustentáveis, nomeadamente através da transformação do ambiente construído, aplicando também princípios das Missões da UE e do Novo Bauhaus Europeu, com vista a mitigar os problemas da exclusão social, da pobreza energética, da degradação patrimonial e de outros obstáculos à transição energética. Para o efeito, são apresentadas soluções de co-financiamento e co-criação. O Bairro do Sobreiro, no município da Maia, servirá como demonstração de actividades no domínio da reabilitação energética e da preservação do espaço comum.

É na Maia, também que vemos a câmara municipal e a AdE Porto – Agência de Energia do Porto a focarem a sua acção tendo por base um Plano de Acção para a Energia Sustentável da Maia 2030, desenvolvido com o intuito de promover a eficiência energética nos edifícios e a mobilidade eléctrica. Em concreto, o plano contempla uma série de medidas para uma reabilitação urbana conducente a edifícios mais eficientes e sustentáveis. Uma delas passa por reabilitar 30 % dos edifícios residenciais, de modo a reduzir as necessidades de aquecimento em 15 %; enquanto outras estão relacionadas com a penetração de 35 % de sistemas de águas quentes sanitárias por bomba de calor e 10 % de sistemas solares térmicos em edifícios residenciais. Pretende-se ainda a substituição de 25 % dos sistemas de aquecimento por recuperadores de calor, a melhoria da eficiência dos sistemas de iluminação, a electrificação de fogões e o aumento em 5 % na produção local de electricidade através de recursos renováveis.

Já em Lisboa, por exemplo, a Gebalis – Gestão dos Bairros Municipais de Lisboa, que gere mais de 20 mil fogos distribuídos por 69 bairros municipais, correspondendo a uma abrangência de cerca de 60 mil habitantes, também investe no programa Morar Melhor – Programa de Reabilitação de Bairros Municipais de Lisboa. Com um investimento de 142 milhões de euros para o período de 2022-26, o programa visa reabilitar 478 edifícios com 8 614 fracções e reabilitar directamente 1 545 fracções. Trata-se do “maior investimento na reabilitação de habitação municipal desde o PER – Programa Especial de Realojamento”, segundo a Gebalis.

Uma das obras de requalificação enquadradas no programa Morar Melhor está a acontecer no Bairro Telheiras Sul, em Alvalade. Iniciadas em Julho de 2023, as obras incluem, de modo a melhorar a eficiência energética, a substituição das antigas coberturas em fibrocimento e a reabilitação das empenas, bem como uma revisão geral de infraestruturas técnicas, como elevadores. A intervenção incide sobre cinco lotes de nove andares cada, os quais acolhem mais de 430 moradores. A Gebalis promove ainda, em conjunto com a Lisboa E-Nova – Agência de Energia e Ambiente de Lisboa, o projecto Rock the House. A iniciativa ambiciona promover competências de gestão doméstica, nomeadamente sobre literacia financeira e energética. Já foram realizadas várias acções, algumas nos 66 bairros municipais previstos, incluindo sessões direccionadas ao público infantil.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 151 da Edifícios e Energia (Janeiro/Fevereiro 2024).