Durante um ano, uma pequena comunidade suíça testou um modelo de mercado local de energia, no qual os participantes compravam e vendiam entre si a electricidade gerada nos seus próprios telhados. À medida que a produção distribuída se torna mais frequente, a grande inovação do Quartierstrom está no modo como as transacções foram feitas: via blockchain.
Desde Janeiro de 2019 que uma pequena comunidade em Walenstadt, na Suíça, tem estado a testar um modelo inovador de mercado de energia eléctrica local. No projecto Quartierstrom, os participantes não só usam a electricidade que geram nos painéis fotovoltaicos instalados nos telhados das suas casas, como podem vender o excedente de produção aos vizinhos. Os preços praticados neste mercado local são acordados entre os participantes – ou, por outras palavras, entre o produtor-consumidor (prosumer) e o consumidor – através de um portal on-line, e a transação feita via blockchain privada.
O Quartierstrom é uma das primeiras experiências a nível mundial que testa a viabilidade de mercados energéticos descentralizados à escala local P2P (peer-to-peer) e é um projecto charneira do Swiss Federal Office of Energy (SFOE), que conta com vários parceiros da indústria e academia, entre os quais a Bosch e o Instituto de Tecnologia de Zurique. A iniciativa, cuja fase piloto termina agora, ilustra o que poderá ser um dos modelos futuros para o mercado energético, juntando as grandes tendências que se verificam nesta matéria – produção descentralizada, fontes de energia renováveis, autoconsumo e partilha de energia e a introdução de novas tecnologias digitais.
Neste modelo, as transações entre participantes dispensam um intermediário, mas não excluem a empresa de utilities. À Water and Electricity Works Walenstadt (WEW) cabe dar o acesso à rede eléctrica local e fornecer, sempre que necessário, electricidade nos moldes tradicionais, mas também a possibilidade de adquirir algum do excedente gerado na comunidade.
Como funciona este mercado eléctrico local?
No Quartierstrom, a comunidade é composta por 37 casas, das quais 28 têm sistemas solares fotovoltaicos instalados. Neste esquema, estas assumem o papel de prosumers, enquanto as restantes habitações se ficam como meras consumidoras. Para além das duas figuras, o modelo inclui ainda a utility, à qual todos os intervenientes pagam uma taxa de utilização da rede, que é reduzida sempre que a electricidade produzida localmente é vendida a outro membro da comunidade. O objectivo é que, quando possível, a electricidade local seja usada na comunidade, evitando assim os custos de utilização de outros níveis mais elevados da rede.
Estimando-se um consumo anual de electricidade de cerca de 250 mil kWh/ano, a capacidade de energia solar fotovoltaica instalada no bairro é de 280 kWp. Para fins de armazenamento, o projecto inclui um conjunto de baterias de iões de lítio, cuja capacidade total de armazenamento é de 80 kWh. Na comunidade, existe ainda uma estação de carregamento para veículos eléctricos abastecida sempre que há um excedente local. Uma das ambições do projecto é que, no futuro, as baterias dos automóveis possam também servir como parte activa da flexibilidade do sistema, armazenando o excedente e injectando na rede consoante as necessidades.
Para gerir a actividade dos participantes neste mercado, cada habitação dispõe de até três contadores inteligentes. Estes smart meters medem a corrente, a voltagem e a frequência de cada uma das fases do processo e contam ainda com um computador de placa única (SBC) integrado, que fará a ligação à blockchain privada e à webapp (portal on-line).
Ao participar no mercado de energia local, os participantes podem comprar ou vender o excedente eléctrico produzido na comunidade ou optar por comprar a electricidade à empresa fornecedora. O projecto testa um sistema de energia transacional no qual a compra, a venda e a remuneração da electricidade entre consumidores, prosumers e o fornecedor habitual da rede eléctrica são geridas sem intermediários. Sempre que os participantes optam por comprar electricidade gerada dentro da comunidade, o valor a que a transação entre as partes é feita é “acordado” numa plataforma. Nesta webapp, encontra-se um equilíbrio entre o preço a que os produtores estão dispostos a vender a sua electricidade e, por sua vez, aquele que os consumidores estão dispostos a pagar, numa lógica de autodeterminação.
Recorrendo a blockchain, a plataforma é composta por nodes (pontos de comunicação) de validação, representados pelos prosumers e pela utility. Por sua vez, o consumidor é representado por outro tipo de nodes (cliente). Utilizando o protocolo Tendermint, o consenso e networking do sistema são obtidos entre os nodes de validação. Em cima deste sistema, é colocada a aplicação de leilão de mercado P2P, capaz de receber dados de licitações, de executar funções num dado intervalo de tempo, e que interage com a tecnologia blockchain, permitindo efectuar transações de forma segura.
O sistema integra quatro funcionalidades: aquisição, gestão, processamento e fornecimento de dados. Para além de servir de ponto de ligação entre prosumers e consumidores com vista à definição do preço do mercado local, este portal permite consultar também outras informações relativas à comunidade de energia, como, por exemplo, o desempenho do sistema nas últimas 24 horas – a quantidade de electricidade gerada, o consumo, a percentagem de autoconsumo e o rácio de autossuficiência.
O que é Blockchain?
A tecnologia blockchain funciona como um banco de dados distribuído, que regista, de forma detalhada, transações. Cada nova transação é guardada em bloco e adicionada a uma cadeia de registos existentes, duplicando os dados numa rede aberta, sendo visível para todos as actualizações feitas e validadas num processo de verificação pública. Por ser extremamente difícil de violar, esta tecnologia foi usada originalmente para as criptomoedas, nomeadamente bitcoins, mas há muitas mais potencialidades.
Segundo a Gartner, em 2023, a tecnologia blockchain vai estar na base da movimentação e rastreamento globais de cerca de dois triliões de bens e serviços anualmente. O sector energético é uma das várias áreas em que o uso de blockchain tem levantado mais interesse e, à semelhança do projecto Quartierstrom, também em Brooklyn, Nova Iorque, esta está a ser usada para um mercado de electricidade local.
Resultados do piloto
Neste projecto, que conta com o apoio do SFOE, pretendeu-se testar a viabilidade técnica do modelo proposto, assim como estudar o comportamento do utilizador nestas circunstâncias. Findo um ano do piloto, o projecto apresenta já conclusões, sendo a mais evidente o facto de, ultrapassado o cepticismo inicial, o modelo ter cativado o interesse e a participação activa dos membros da comunidade. Tal levou a que houvesse um aumento na produção eléctrica local, estimando-se que tenha quase duplicado neste ano.
Os dados do projecto mostram que o mercado local respondeu a 33 % das necessidades de energia eléctrica das 37 casas, o que mostra um impulso grande no autoconsumo e a boa receptividade que o projecto teve na comunidade.
Todavia, ficou também claro que os participantes não estão dispostos a pagar mais pela energia só pelo facto de esta ser gerada localmente, ainda que, inicialmente, mostrem abertura para isso. Ao longo do projecto, os participantes raramente definiram um valor máximo para a compra mais elevado do que aquele praticado pela utility. Em média, os consumidores mostraram-se dispostos a pagar até 19 cêntimos por kWh (o preço praticado pela rede era de 20,75 cêntimos/kWh) e apenas 10 % das licitações foram acima deste patamar.
A discrepância entre as intenções e as acções é algo que não surpreendeu os investigadores do projecto, mas que também pode ser justificada pelo facto de os participantes terem conhecimento de que a electricidade local beneficiava de uma tarifa reduzida para o uso da rede. Do lado dos prosumers, na troca com os vizinhos, o valor mínimo pedido era de cerca de 7 cêntimos/kWh, já para a venda à rede, esse preço descia para os 4 cêntimos.
De forma a testar diferentes modelos de mercado, durante um mês, o projecto activou um sistema automático para cálculo do preço, cujo valor variava conforme a disponibilidade de energia solar fotovoltaica. Os participantes mostraram-se mais agradados com este sistema automático, o que levou os responsáveis do projecto a concluir que o preço individual não é um factor decisivo para o bom funcionamento de um mercado deste tipo.
Não obstante, a possibilidade de monitorizar, em tempo real, a produção e o consumo de energia eléctrica, assim como a compra e a venda, foi um dos elementos que se revelou mais importante no Quartierstrom. Graças a isto, segundo os investigadores, os participantes mostraram um entendimento mais aprofundado do mercado de energia, ajudando a equilibrar a oferta e a procura, o que resultou numa redução da pressão sobre a rede e numa utilização mais sensata do excedente de energia eléctrica.
Naquele que era o elemento mais inovador do Quartierstrom – o uso de blockchain –, o balanço é também favorável. De facto, a iniciativa permitiu perceber como esta tecnologia pode funcionar em modelos descentralizados de energia e usando quantidades baixas de energia, o que se deve ao facto de não serem necessários níveis elevados de processamento computacional. Ao longo da duração do projecto, os micro-computadores usados nos contadores inteligentes e nos nodes consumiram cerca de 3,300 kWh, o que representa 4 % do volume de energia eléctrica transacionada no mercado local.
Em termos de funcionamento, o sistema blockchain mostrou-se bastante robusto e facilmente escalável, mas, em contrapartida, os investigadores dão conta da necessidade de melhorar e optimizar o hardware utilizado, já que as falhas nesta matéria foram recorrentes. Numa escala maior, um projecto semelhante exigiria contadores inteligentes certificados e estáveis com processadores capazes de correr ferramentas de software diferentes.
Face a estas conclusões, o piloto do Quartierstrom vai agora dar lugar a um novo projecto, que inclui um portal renovado, a definição automática dos preços da electricidade local e a substituição progressiva dos equipamentos por outros produzidos em série.