Em tempos de crise e mitigação energéticas, vale a pena revisitarmos a publicação dos vários instrumentos legais que, em Portugal, impuseram requisitos ao projeto de novos edifícios e de grandes remodelações, por forma a salvaguardar a satisfação das condições de conforto térmico nesses edifícios sem necessidades excessivas de energia, quer no inverno, quer no verão.

Para a abordagem que nos interessa, foquemo-nos no Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro, e no subsequente Decreto-Lei n.º 102/2021, de 19 de novembro, que o altera, nos quais se evidenciam os objetivos de atingir níveis de conforto ambiente e de comportamento térmico.

Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro

O presente diploma “estabelece os requisitos aplicáveis a edifícios para a melhoria do seu desempenho energético e regula o Sistema de Certificação Energética de Edifícios, transpondo a Diretiva (UE) 2018/844 e parcialmente a Diretiva (UE) 2019/944” e demais legislação complementar subsequente.

O quadro regulamentar acima referido veio introduzir novos conceitos e, consequentemente, novas exigências no quadro anteriormente vigente, revogando o Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto, na sua redação atual, e correspondentes portarias e despachos subsequentes.

Ao revisitar o Decreto-Lei em apreço, destacamos o que importa:

[…]
SUBSECÇÃO I

Requisitos para os edifícios novos

[…]

Artigo 6.º

Edifícios novos

[…]

3 – Os requisitos previstos no presente artigo são estabelecidos num quadro de consideração integrada da envolvente e dos sistemas técnicos e visam promover o conforto ambiente, o comportamento térmico adequado, a eficiência e durabilidade dos sistemas técnicos, a boa gestão da energia e a utilização de fontes de energia renovável.

[…]

9 – São estabelecidos os seguintes requisitos, cujo cumprimento é assegurado por PQ, nos termos previstos no capítulo III:

a) Conforto térmico;

b) Desempenho energético, que incluem:

i) Indicadores do uso de energia primária;

ii) Indicadores do uso de energia primária renovável;

iii) Classificação como edifício de necessidades quase nulas de energia;

iv) Classes de desempenho energético.

10 – Os edifícios de habitação estão sujeitos ao cumprimento dos requisitos previstos no número anterior e ainda dos requisitos aplicáveis aos seguintes componentes:

a) Envolvente opaca;

b) Envolvente envidraçada;

c) Sistemas de ventilação;

d) Sistemas de climatização;

e) Sistemas de preparação de água quente;

f) Sistemas de produção de energia elétrica;

g) Instalações de elevação;

h) Infraestruturas de carregamento de veículos elétricos.

11 – Os edifícios de comércio e serviços estão sujeitos ao cumprimento dos requisitos previstos na alínea b) do n.º 9 e ainda dos requisitos aplicáveis aos seguintes componentes:

a) Envolvente opaca;

b) Envolvente envidraçada;

c) Sistemas de ventilação;

d) Sistemas de climatização;

e) Sistemas de preparação de água quente;

f) Sistemas fixos de iluminação;

g) Sistemas de produção de energia elétrica;

h) SACE;

i) Instalações de elevação;

j) Infraestruturas de carregamento de veículos elétricos.
[…]

SUBSECÇÃO II

Edifícios sujeitos a renovação

Artigo 7.º

Renovações

1 – Os componentes renovados dos edifícios estão sujeitos ao cumprimento dos requisitos previstos nos n.os 4, 10 e 11 do artigo anterior.

2 – A avaliação do cumprimento dos requisitos é efetuada pelos técnicos autores dos projetos respetivos, sendo aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.os 6 a 8 do artigo anterior.

3 – Nas renovações não sujeitas a controlo prévio aplica -se o disposto no n.º 3 do artigo 5.º

Artigo 8.º

Grandes renovações

Os edifícios objeto de grandes renovações encontram-se sujeitos ao cumprimento do disposto no artigo anterior e dos seguintes requisitos:
a) Para os edifícios de habitação, aplicam -se os requisitos previstos no n.º 9 do artigo 6.º;
b) Para os edifícios de comércio e serviços, aplicam -se os requisitos previstos na alínea b) do n.º 9 do artigo 6.º
[…]

Uma das alterações mais controversas deste recente diploma que define o novo enquadramento legal foi a aparente exclusão do projeto de comportamento térmico, que, desde 1 de julho, tinha deixado de ser obrigatório enquanto projeto de especialidade no âmbito dos requisitos mínimos de desempenho energético de edifícios novos.

O Governo, após ter tomado conhecimento da manifesta discordância apresentada por arquitetos, engenheiros, engenheiros técnicos e técnicos, fez publicar o Decreto-Lei n.º 102/2021, de 19 de novembro, que, para a leitura e interpretação adequadas, adiante se reproduz, e que altera o Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro, “repondo a obrigatoriedade de apresentação do projeto de comportamento térmico, ou de conforto térmico, enquanto projeto de especialidade”.

Decreto-Lei n.º 102/2021 de 19 de novembro

Artigo 15.º

Alteração ao Decreto-Lei n.º 101 -D/2020, de 7 de dezembro

Os artigos 5.º, 6.º, 24.º, 26.º e 42.º do Decreto -Lei n.º 101 -D/2020, de 7 de dezembro, passam a ter a seguinte redação:

Artigo 5.º

[…]

3 – Nas situações relativas a obras em edifícios sujeitos a renovação, isentas de controlo prévio, o cumprimento dos requisitos aplicáveis deve ser assegurado pelo empreiteiro, com base em documentação técnica que caracterize as soluções aplicadas.

Artigo 6.º

[…]

13 – […].

14 – O disposto na alínea a) do n.º 5 não invalida, nem condiciona, a obrigatoriedade de apresentação do projeto de conforto térmico enquanto projeto de especialidade.

Os sucessivos “conflitos” conceptuais contidos na legislação publicada

Verificamos que, nos vários diplomas publicados, desde a implementação do Sistema de Certificação Energética (SCE), foram utilizadas designações diferentes, aparentemente com o mesmo propósito, dando origem a interpretações confusas, o que, para os menos atentos, pareceria que o legislador atribuía presumivelmente o mesmo significado a conceitos diferentes, nomeadamente ao utilizar diversos termos – umas vezes “Estudo”, outras “Projecto” e “Comportamento Térmico”, outras “Conforto Térmico”. Por força das circunstâncias, estes acabaram, em fase de licenciamento, na maioria dos casos e, talvez, por facilitismo, por ser considerados equivalentes entre si.

Ao introduzir uma disrupção com a legislação anterior, nomeadamente no que se refere aos procedimentos de licenciamento, as novas designações têm originado, na verdade, alguns “conflitos interpretativos” no seio das comunidades de engenharia e das entidades licenciadoras, acabando por criar alguma, ou mesmo bastante, confusão.

Vale a pena procedermos a uma análise mais cuidada e observar que, em bom rigor, não estamos a falar da mesma coisa, se não vejamos a etimologia das palavras em apreço. Nestes casos, é sempre conveniente que se consultem dicionários de língua portuguesa bem reconhecidos, nomeadamente:

• Dicionário da Academia das Ciências

Comportamento – reação peculiar de uma coisa ou um material em determinadas circunstâncias.

Conforto – bem-estar material, comodidade física satisfeita.

• Dicionário Houaiss da Lingua Portuguesa

Comportamento – reação peculiar de uma coisa ou um material em determinadas circunstâncias.Conforto – bem-estar material, comodidade física satisfeita.

Vamos ver, então, se nos entendemos…

Analisemos o significado de cada uma das palavras e as definições dos conceitos subjacentes:

Comportamento térmico é caracterizado pela resposta física que uma edificação apresenta quando submetida às solicitações do clima externo (variáveis climáticas) e às condições de uso dos ambientes, destacando-se a geração de calor interno advindo da presença de pessoas e equipamentos no interior dos ambientes;

Conforto térmico é a sensação que expressa a satisfação dos utilizadores dos edifícios com o ambiente térmico. Portanto, é subjetivo e depende de vários fatores. O corpo humano “queima” alimentos e gera calor residual, semelhante a qualquer máquina. Para manter o seu interior a uma temperatura de 37 °C, tem de dissipar o calor e fá-lo através de condução, convecção, radiação e evaporação. À medida que a temperatura ambiente se aproxima da temperatura corporal, o corpo já não pode transmitir calor por falta de gradiente térmico, e a evaporação continua a ser a única forma de arrefecimento. Uma das principais funções dos edifícios é proporcionar ambientes interiores que sejam termicamente confortáveis.

Compreender as necessidades do ser humano e as condições básicas que definem o conforto é indispensável para a conceção de edifícios que satisfaçam os utilizadores com um mínimo de equipamentos mecânicos.

Pretende-se melhor comunicação… e menos complicação! Será que é possível republicar, ou publicar, uma nova portaria sobre “Elementos para licenciamento”, de modo a que todas as entidades e agentes adotem a mesma terminologia e metodologia? A premente necessidade assim obriga. Aqui fica aqui o apelo!

 

Artigo publicado originalmente na edição de Novembro/Dezembro de 2022 da Edifícios e Energia

As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.