Artigo publicado originalmente na edição de Setembro/Outubro de 2020 da Edifícios e Energia
O desnorte no alinhamento de uma estratégia para o ar interior nos edifícios e as suas consequências são conhecidas. Olhar para a saúde é também olhar para os edifícios e disso já ninguém duvida. Conheça o processo, o que está em causa, as perguntas que devem ser feitas e como a qualidade do ar interior (QAI) pode voltar e, desta vez, à frente da eficiência e do desempenho energético.
P assados estes meses a tentar encontrar as melhores respostas e soluções, há um caminho que se vai enraizando. Há muita coisa que já mudou na forma como olhamos e temos de actuar nos nossos edifícios. Inevitavelmente, existe um conjunto de preocupações que veio para ficar. Preocupações que já vêm de trás, que, desde muito cedo, foram identificadas como importantes e que, na última década, foram largadas. Neste momento, é unânime que devem ser recuperadas e ajustadas. É que hoje são prioritárias. Quando falamos de saúde, todos os alarmes disparam. A energia nos edifícios está a abrir espaço para se pensar na qualidade do ambiente interior numa lógica que vai para além da eficiência e desempenhos energéticos. Ainda assim, a QAI ressurge como o tema que nos remete invariavelmente para uma certa frustração pela forma como a abandonámos nos últimos anos.
Neste momento, as organizações mundiais estão mais conscientes deste tema. A saúde é, hoje, a bússola para qualquer estratégia social e económica e esperamos que essa venha a ser a grande viragem também quando falamos de energia. Sucede que as orientações continuam incompletas e a QAI nos edifícios não tem qualquer enquadramento obrigatório. Nem cá, nem fora de Portugal. Os requisitos e as orientações são insuficientes quando não existe verificação, nem profissionais dedicados a esta área. O conhecimento já existe, os técnicos e a tecnologia também. Estes próximos tempos vão ser desafiantes. Mas como vamos atacar um problema que já conhecemos muito bem e como vai reagir o legislador? E, antes do legislador, como vão os nossos governantes, na área da energia, contribuir para a integração destas peças naquilo que existe? Vamos recuperar os peritos qualificados (PQ) e as auditorias na área da QAI (que, em 2013, ficaram de fora do Sistema de Certificação Energética – SCE)? Vamos criar comissões multidisciplinares e olhar para a saúde nos edifícios? Será essa uma prioridade da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e da nova e recente equipa da ADENE – Agência para a Energia? Aproximam-se tempos muito importantes e é por isso que as vozes convergem: “já não há volta a dar, a QAI tem de voltar!”.
E são imensos os sinais nesse sentido. A ASHRAE, a reconhecida sociedade internacional de AVAC-R (Aquecimento, Ar Condicionado, Ventilação e Refrigeração), tem inúmeros estudos e orientações feitas sobre o tema. Começou por criar um grupo de trabalho, vários guias e recomendações no que respeita à operação e manutenção dos sistemas durante a pandemia, sempre assente na comunicação entre os especialistas, governantes e público em geral. Em Abril, lançou novas recomendações sobre a relação entre o funcionamento de sistemas de AVAC e a propagação aérea do novo coronavírus, não tendo dúvidas de que a continuidade da operação destes sistemas pode “ajudar a controlar” a propagação do vírus, nomeadamente, a redução da sua concentração aérea. Desde Maio que a ASHRAE tem as linhas de orientação para a reabertura de qualquer tipologia de edifícios. No mesmo sentido, a REHVA (Federação Europeia das Associações de Aquecimento, Ventilação e Ar Condicionado) e a Eurovent (Associação Europeia para a Indústria AVAC) têm apresentado e apelado à importância deste sector na mitigação da pandemia. Especialistas de todo o mundo são claros desde o início: o ar condicionado e a ventilação podem mitigar a contaminação do vírus nos espaços.
Como recuperar a QAI?
A nossa realidade, actualmente, é muito diferente da que existia em 2006, quando saiu a legislação que contemplava plenamente a QAI. Os nossos edifícios não são os mesmos e provavelmente necessitam de outro tipo de abordagem por não estarem preparados para as respostas que seriam desejáveis se falarmos apenas num tema: introdução de ar novo. Nem todos o podem fazer e essa questão é crucial. Mas importa fazer outras perguntas. Será que os nossos edifícios estão actualmente dimensionados para dar resposta ao que é necessário? Temos mecanismos de verificação que possam ser colocados em prática rapidamente? As auditorias devem ser recuperadas com o mesmo modelo? Os requisitos serão ajustados ou, porventura, poderão ser criados padrões mais simplificados do ponto de vista técnico ou económico? Os PQ que, em tempos, fizeram parte do sistema devem voltar? O que vamos medir quando falamos em QAI? E olhar para o ar exterior não deveria ser uma obrigação? “É que o mesmo edifício em zonas do país ou cidades diferentes tem necessidades de intervenção totalmente diferentes”, recorda o projectista António Raposo Soares.
“Apenas os sistemas de AVAC com renovação de ar poderão ajudar a reduzir os riscos de contágio. Haverá alguns edifícios onde será possível aumentar os caudais de ar novo, mas serão poucos. Há instalações que só têm climatização, sem ventilação, e, nesses casos, a simples instalação de grelhas de admissão de ar e de pequenos ventiladores de extracção poderá ajudar”, lembra Carlos Aires, também projectista. Peixeiro Ramos, consultor de AVAC&R, é peremptório: “Devemos promover as auditorias à QAI nos edifícios existentes e a verificação dos requisitos QAI nos edifícios novos”.
“A difusão pode ser feita por mistura ou por deslocamento. A eficiência de renovação do ar é uma medida de como, efectivamente, o sistema de ventilação substitui o ar do compartimento por ar novo. Na difusão por mistura, a eficiência tem um valor máximo de 50 %, enquanto na difusão por deslocamento pode chegar aos 100 %. No caso de contaminantes (vírus), o que é interessante é determinar a eficácia com que um determinado sistema de ventilação remove esses contaminantes (vírus) do ar do compartimento. Esta eficácia depende não só dos espaços e dos sistemas de difusão, mas também da emissão espacial dos contaminantes (vírus). Em resumo, a eficiência foca-se em fazer as coisas bem, enquanto a eficácia é fazer as coisas certas. Assim, somando, há que fazer bem as coisas certas – difusão por deslocamento”.
Ernesto Peixeiro Ramos
Por cá, a EFRIARC (Associação Portuguesa dos Engenheiros do Frio e Ar Condicionado) alinha na mesma estratégia. “Os sistemas de ventilação e ar condicionado têm um papel importante na redução da contaminação por via aérea no interior dos edifícios, reduzindo a concentração de aerossóis aquosos (droplet nuclei) no ar interior, quer por retenção nos filtros, quer por diluição através da renovação de ar. Por outro lado, quando servem múltiplas zonas e operam com uma parte do ar recirculado, os sistemas de ar condicionado podem também ser um veículo para a disseminação do agente patogénico. É também conhecido o risco de contaminação proveniente das condutas da rede de esgotos, caso estas não tenham os sifões garantidamente ferrados. No que respeita às operações de manutenção dos sistemas de ventilação e ar condicionado, existe um potencial risco de contaminação dos próprios técnicos de manutenção, devido ao possível contacto com agentes patogénicos depositados nas superfícies interiores dos equipamentos, das condutas e/ou retidos nos filtros de ar”.
A OMS tem vários estudos sobre este tema, que, há décadas, tem sido discutido na vertente da saúde, do bem-estar e da produtividade dos ocupantes dos edifícios. Não há novidade quanto àquilo que se sabe. A novidade está na dimensão daquilo que ninguém esperava. O que seria expectável, todavia, seria recuperar esse conhecimento logo no início e envolver a engenharia no processo, o que não aconteceu. Restringir o conhecimento às ciências da saúde foi provavelmente um erro. Esta tem sido uma crítica generalizada e difundida por cientistas de todo o mundo. O último exemplo desse está na recente carta aberta assinada por 239 cientistas e publicada no Clinical Infectious Diseases – publicação científica da Universidade de Oxford. Dirigida à OMS, esta missiva aponta para a importância do reconhecimento da “transmissão aérea do vírus” e potencial suspensão no ar através dos aerossóis.
“Assegurar o funcionamento dos sistemas de AVAC, promover as renovações do ar e outras medidas de ventilação continuam a ser as mais importantes medidas de controlo de infecção”, referiu Jarek Kurnitski, do comité de tecnologia e investigação da REHVA. Manuel Gameiro da Silva, professor catedrático da Universidade de Coimbra, foi um dos especialistas que assinou a carta. Para este especialista em QAI, não se percebe como é que a OMS “se esqueceu” do conhecimento que já produziu. “Para mim, é um mistério”, lamenta. Na altura do SARS-CoV-1, “houve um grupo de trabalho que estudou a questão dos aerossóis e que produziu informação sobre como proteger as instalações hospitalares e outras. Há, desde 2017, várias publicações da OMS sobre este tema. Os dois são vírus estruturalmente semelhantes. São ambos coronavírus. Não havia razão para dizer que o SARS-CoV-1 podia ser transmitido por aerossóis e que agora este novo vírus, o SARS-CoV-2, não pode”.
Ficou claro que esta pandemia é um problema também da engenharia, da física, mas também de outras áreas, como a inclusão e protecção sociais, a habitação ou a economia. E é por isso que repensar modelos e comportamentos tem sido um exercício tão abundante.
Entre os especialistas e no sector dos edifícios no nosso país, ninguém percebeu a razão de tamanha confusão e ausência de uma resposta simples por parte da DGS. Houve três orientações diferentes. Num primeiro momento, a recomendação no sentido de desligar os sistemas de AVAC apontava para uma clara possibilidade de, por essa via, haver uma propagação e ampliação do vírus. O resultado? Uma falsa percepção por parte das pessoas de que o ar condicionado era um inimigo. Os danos comerciais estão a ser enormes. Mesmo com duas orientações posteriores que contradizem a primeira, vai demorar bastante tempo a recuperar a confiança.
São muitas as perguntas, mas entender o exagero do passado é um bom princípio. “Queríamos medir tudo e mais alguma coisa”, lembra Ernesto Peixeiro Ramos. “Começámos por medir os COV’s (compostos orgânicos voláteis), as bactérias, os fungos… depois, chegámos à conclusão de que as bactérias estavam nas pessoas e restringiram-se as análises a apenas algumas”. Havia formação e técnicos com treino específico que, durante anos, tinham a função de medir. Para além dos TRF’s (Técnicos Responsáveis pelos Edifícios), que garantiam que todos os requisitos fossem cumpridos numa altura em que as auditorias eram obrigatórias. Desde 2013 que é o vazio. O Estado desperdiçou recursos e fez-se a simplificação dos caudais de ar novo, que passaram a ser mais baixos. A questão económica prevaleceu sobre a saúde e sobre a energia.
Houve muitos exageros desnecessários que teriam sido suficientes para uma revisão substancial da legislação, mas terá sido prudente passar do 80 para o oito? “Podia existir sempre ar novo”, garantem-nos os técnicos, mas o mercado não respondeu. “As tomadas de ar novo e saídas de ar exterior tinham de estar distanciadas, o que não facilitava a vida aos engenheiros e arquitectos. Havia uma exigência de qualidade e de custos energéticos que não foi acolhida”, explica Peixeiro Ramos. “A revisão de 2013 preocupou-se apenas com a energia, descurando a QAI. No entanto, cada dia que passa, devido à necessidade de utilização de energia a que se encontra ligada, a QAI deve ser reincorporada na regulamentação térmica”. A altura era de crise económica, o que não ajudou. “Mantiveram-se os requisitos de caudais de ar e microbiológicos embora tenham sido muito atenuados. As razões não foram apenas económicas. Dentro do sector, na área da hotelaria, houve uma grande relutância em manter as coisas como estavam. A legislação de 2013 podia ter sido diferente e mais equilibrada”, conclui.
Para Carlos Aires, “a melhoria dos caudais de ar novo ajuda certamente. A ventilação natural funciona bem quando há diferenciais térmicos que a garantam e, numa boa parte do ano, podermos ter janelas abertas, mas sabemos que nem sempre funcionam. Distribuição do ar, filtragem e manutenção têm implicações no conforto e eficiência energética das instalações, mas não me parece que possam ajudar a mitigar a pandemia”. Por sua vez, “as inspecções periódicas nunca passaram do papel e serão difíceis de implementar”. Já no que se refere à certificação QAI, “seria bom reintroduzi-la, embora não se saiba como vai reagir o mercado, porque houve pessoas a investir em equipamento QAI que, de repente, viram os seus investimentos ir por água abaixo”.
Para o investigador José Luís Alexandre, a distribuição do ar é um factor decisivo para mitigar o contágio. “Esta situação (pandemia) acabou por expor a falta de qualidade dos nossos edifícios ao nível do ar condicionado”. Para este docente do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, “o problema maior não está na ‘pureza’ do ar, mas no seu trajecto”.
“Actualmente, existem duas linhas de pensamento no que diz respeito à transmissão do vírus que causa a Covid-19: a primeira é que o vírus é transmitido pessoa-a-pessoa através de gotículas a distâncias relativamente curtas; a segunda é que o vírus pode ser transportado pelo ar em partículas inferiores a 5μ e constituir risco de infecção a distâncias superiores a 2m, embora, neste caso, não exista consenso quanto à dose necessária. Em qualquer das situações, os sistemas de AVAC são muito importantes ao promoverem a QAI, através da filtragem, da renovação do ar viciado e da manutenção do conforto, e, por consequência, o não enfraquecimento do sistema imunitário dos ocupantes”, explica Peixeiro Ramos. Temos a tendência para pensar na ventilação “para baixar as concentrações de contaminantes no ambiente interior, mas isso, por si só, não chega. Temos de ver a ventilação como a solução para a manutenção da saúde dos ocupantes sem estar subjugada à energia, ao conforto ou à estética”, adianta.
Seja qual for a estratégia a adoptar, há muitos erros que já não podemos cometer. Um deles passa por não deixar de ouvir as pessoas com experiência e conhecimento nesta área. Depois, tem de haver vontade para se tomarem decisões, criar orientações simples e um sistema de fiscalização eficiente. Ficamos à espera.