Como se transforma um antigo terreno ferroviário numa das zonas urbanas mais atractivas de Milão? Porta Nuova é um projecto de regeneração urbana emblemático e que tem sido reconhecido inúmeras vezes pela sua visão de sustentabilidade ambiental. Agora, quer também afirmar-se pela saúde e bem-estar que proporciona às pessoas dentro e fora dos edifícios.
Arranha-céus de escritórios, com design moderno e elementos arquitetónicos arrojados; edifícios residenciais nos quais árvores e plantas crescem a 100 metros de altura; um parque verde urbano onde caminhos pedonais se cruzam e evidenciam o contraste entre a natureza e a turbulência do ritmo urbano; dezenas de lojas, restaurantes, cafés e equipamentos de lazer, que contribuem para a dinâmica económica e social do local. Tudo isto pode ser visto em Porta Nuova, o bairro financeiro mais importante de Milão e que tem na sustentabilidade uma das suas imagens de marcas.
O empreendimento conta já com vários edifícios com certificados de sustentabilidade e alguns premiados internacionalmente, mas, agora, a COIMA, promotora imobiliária responsável pela área, quer dar um novo passo na visão de sustentabilidade de Porta Nuova. Ao aumentar a escala e ao olhar ao nível da comunidade, o empreendimento prepara-se para obter as certificações LEED for Cities and Communities e WELL Community, tornando-se no primeiro projecto de regeneração urbana do mundo com os dois selos.
Sustentabilidade obrigatória
A cerca de três quilómetros (km) do centro histórico de Milão, a área acolhe escritórios de gigantes internacionais, lojas de moda e design, restaurantes e cafés, o que faz deste local um dos mais vibrantes e cosmopolitas da cidade, recebendo cerca de dez milhões de visitantes todos os anos. Para isso, vale também o facto de esta ser uma área bem servida por transportes públicos, incluindo a proximidade com a estação de comboios Milano Centrale. A mobilidade é, aliás, um dos eixos do projecto, pretendendo-se que Porta Nuova seja um elo de ligação na cidade, favorecendo os modos suaves, em particular o andar a pé, e promovendo a multimodalidade.
Não esquecendo de que Milão, cuja área metropolitana tem mais de três milhões de habitantes, foi uma das cidades do mundo mais afectada pela pandemia de Covid-19, é ainda difícil estimar o seu impacto na dinâmica de Porta Nuova, onde, até aqui, mais de 35 mil pessoas tinham o seu posto de trabalho e outras 20 mil residem. No entanto, espera-se que esta seja apenas uma pausa breve e que o movimento deste bairro financeiro retome rapidamente. Enquanto isso, os planos da promotora, cujo percurso em matéria de sustentabilidade foi recentemente reconhecido pelo US Green Building Council com o prémio 2020 Greenbuild Europe Leadership Award, não abrandam e está prevista uma expansão do projecto.
Com uma visão que assenta em “pessoas, comunidade, integração e resiliência”, Porta Nuova é hoje a prova de que é possível aplicar os princípios de sustentabilidade para transformar o ambiente urbano construído. Conhecido por ser um dos projectos de regeneração urbana mais emblemáticos do mundo, o actual distrito financeiro deu vida aos terrenos de uma antiga estação de comboios, demolida nos anos 1960. Durante décadas, o espaço manteve-se vazio e era, muitas vezes, usado para actividades ilegais. No entanto, foram diversas as ideias para aproveitar este recurso dormente e, ao longo dos anos, planos municipais foram atribuindo diferentes utilizações ao espaço: um centro de comércio (1953), parques urbanos e equipamentos públicos (1976) e uma zona de escritórios (1983). Só no início do novo milénio é que se começou a desenhar aquilo que viria a ser a actual Porta Nuova, com a chegada da Hines Italia (que veio, mais tarde, a ser adquirida pela COIMA) ao projecto. Manfredi Catella, na altura CEO da Hines Italia e actual CEO da COIMA, e o seu pai, Riccardo Catella, fundador da COIMA, foram os visionários deste empreendimento que pretendia também dar um novo fôlego à reputação do sector imobiliário e à cidade de Milão.
Com um total de 290 mil metros quadrados (m2), o projecto veio preencher uma lacuna na malha urbana da cidade e criar uma união entre três bairros históricos de Milão: Brera, Isola e Repubblica. Implementar esta transformação não foi fácil e, a par do cepticismo para com um novo projecto, motivado pelo fracasso das várias ideias do passado para o local, uma das grandes dificuldades prendeu-se com a grande fragmentação de propriedade daqueles terrenos, o que obrigou a negociações com 20 proprietários diferentes, públicos e privados. Para a aceitação do projecto, a promotora levou a cabo mais de 150 sessões públicas com os residentes dos bairros próximos, cujas principais preocupações se prendiam com uma eventual disrupção com a arquitectura existente, a preservação de espaço público e áreas verdes e a garantia de que não seria incluída uma via rápida automóvel no empreendimento. O plano final viria a salvaguardar estes temas, incluindo o cuidado de equilibrar a densidade dos edifícios limítrofes à envolvente e intensificando-a à medida que nos aproximamos do centro de Porta Nuova.
Entre 2006 e 2012, com um orçamento de mais de dois mil milhões de dólares, aquela que foi uma das maiores intervenções urbanas de Milão deu origem a três zonas distintas – Porta Nuova Garibaldi, Porta Nuova Varesine e Porta Nuova Isola – unidas por 170 mil m2 de espaço público, cinco km de vias cicláveis e um parque urbano com 90 mil m2 (o terceiro maior da cidade). A mistura de usos é uma realidade nas três zonas, dispondo de edifícios de serviços (escritórios), retalho, equipamentos culturais e de lazer e complexos residenciais, incluindo segmentos de luxo, mas também habitação acessível. A dimensão do projecto urbanístico foi tão grande como o número de intervenientes na transformação: mais de 20 gabinetes de oito países diferentes participaram na regeneração de Porta Nuova.
De forma a cumprir com os requisitos para a certificação LEED, a sustentabilidade e redução de emissões nos edifícios foram preocupações desde o desenho do projecto. Em Porta Nuova, 27 edifícios contam com esta certificação (24 Gold, dois Platinum e um Silver). De modo a evitar o uso de caldeiras ou de gás, a opção para a climatização dos edifícios assentou num sistema de poços de águas subterrâneas para aproveitamento de energia geotérmica. Estes poços estão instalados a 45 metros de profundidade, direccionando a água para uma sala técnica onde está uma bomba de calor que arrefece ou aquece a água conforme a necessidade. Desta forma, o lençol freático alimenta o ar condicionado e o aquecimento dos edifícios existentes. No Porta Nuova Isola, o lençol freático é usado para abastecer uma única estação central que fornece, depois, calor ou frio aos edifícios. O sistema tem em consideração as diferenças nas necessidades de aquecimento entre as unidades de escritórios e residenciais, por isso, no Inverno, no horário laboral, entre as 09 – 18 horas, a prioridade de fornecimento é dada aos escritórios, redireccionando-se para as casas nos restantes períodos.
Edifícios de elite arquitectónica…
Entre os 20 edifícios LEED Gold de Porta Nuova, estão os icónicos Bosca Verticale e Unicredit Tower. Este último, da assinatura do arquitecto argentino Cesar Pelli, foi inaugurado em 2014. Composto por três edifícios – com 31, 22 e 11 pisos –, o mais alto mede 231 metros e é o arranha-céus mais alto de Itália.
Com o selo LEED Gold, na construção das torres foram usados mais de 20 % de materiais reciclados, ao mesmo tempo que 93 % dos resíduos resultantes de construção foram encaminhados para a reciclagem. Nas torres, as medidas de eficiência energética adoptadas permitem alcançar uma poupança energética de 22,5 % e a utilização de até 100 % das águas pluviais faz com que o uso de água potável nos edifícios tenha sido reduzido em 37 %.
Para além da altura e da forma curva dos edifícios da Unicredit Tower, a fachada envidraçada é uma das características construtivas que saltam à vista. De modo a cumprir com as exigências de sustentabilidade, foi necessária uma solução de controlo da entrada da luz solar e de minimização dos seus efeitos na temperatura interior do edifício: cortinas interiores semi-transparentes, feitas de um material semelhante a tecido especial de elevada reflexão e 100 % reciclável (Verosol EnviroScreen). Na base, acompanhando as fachadas curvas dos edifícios, a piazza Gae Aulenti une as entradas das três torres, formando um amplo espaço público, que acolhe, em dois níveis, diversas lojas e restaurantes. Nos edifícios de escritórios da Unicredit Tower, trabalham cerca de quatro mil pessoas.
Localizado na Porta Nuova Isola, as duas torres residenciais, de 80 e 112 metros de altura respectivamente, que compõem o Bosco Verticale são, talvez, os mais conhecidos da área e um dos símbolos da arquitectura “verde” da actualidade. Com um total de 113 habitações, os edifícios com a assinatura de Stefano Boeri apresentam-se como um protótipo de “um novo formato de biodiversidade arquitectónica que se foca não apenas nos seres humanos, mas também na relação entre humanos e as outras espécies”. Para isso, albergam um total de 800 árvores, 15 mil plantas perenes e/ou rasteiras e cinco mil arbustos. Ao todo, é o equivalente a 30 mil metros quadrados de áreas verdes concentrados em apenas 3000 m2 de superfície construída. Graças a esta “cortina” verde que preenche as varandas em toda a altura dos edifícios, é possível regular a humidade, produzir oxigénio e absorver dióxido de carbono e partículas poluentes, mas também servir de refúgio para a biodiversidade. E o facto de não produzir reflexos, como acontece com fachadas envidraçadas ou em pedra, faz com que o impacto negativo dos edifícios no ecossistema envolvente seja menor, ajudando também a mitigar o efeito de ilha de calor.
A fachada verde apresenta também benefícios no desempenho térmico do interior dos edifícios, conseguindo arrefecer o interior em cerca de três graus no Verão e preservando o calor no Inverno, o que reduz a necessidade de sistemas activos e, segundo estudos realizados, pode levar a uma poupança anual de energia de 7,5 %. Isto leva a que, para alcançar o conforto interno no Verão, os residentes dependam apenas de ventilação natural e, em casos extremos, do sistema de arrefecimento de piso radiante, alimentado através de águas subterrâneas.
Na busca de uma sustentabilidade à vista, alguns factores podem levantar preocupações como sendo menos “amigos do ambiente”, nomeadamente no que se refere às emissões incorporadas. Um deles é o facto de a colocação das árvores e plantas em altura exigir uma maior quantidade de materiais para suportar peso das varandas. De forma a contornar a questão, os responsáveis aplicaram uma mistura especial para servir de solo para as plantas, o que ajudou a reduzir este peso. O sistema de irrigação teve também de ser bem planeado, de modo a optimizar o uso da água e da energia necessária para bombear a água até aos andares superiores. A solução foi encontrada através de uma bomba hidráulica a energia solar e o excedente de água necessário tem origem nas águas subterrâneas, evitando assim qualquer efeito negativo numa fonte de água potável. Em 2014, o Bosco Verticale venceu o International Highrise Award, atribuído pela Deutschen Architekturmuseums, e, no ano seguinte, foi nomeado como o melhor edifício alto do mundo pelo Council for Tall Buildings and Urban Habitat (CTBUH).
… e uma Biblioteca das Árvores no espaço público
Em Porta Nuova, não é só o que se ergue em altura que dá nas vistas. Uma das peças fundamentais do Porta Nuova é a Biblioteca degli Alberi (BAM) – ou, na tradução, a Biblioteca das Árvores. Com 9,5 hectares, este imenso parque urbano serve como ponto de ligação entre a malha urbana, trazendo a natureza do jardim botânico e a cultura ao ar livre à azáfama do dia-a-dia de Milão.
Desenhado pelo atelier de arquitectura paisagista Inside Outside e vencedor de prémios de design, o parque é atravessado por vários percursos, que se cruzam e conectam os diversos locais existentes na envolvente. Na vista superior, a intersecção destas vias pedonais e cicláveis cria uma imensa rede de caminhos, pontuada por “florestas” circulares, que acrescentam diferentes texturas e cores ao espaço, e zonas de estada e lazer. Por todo o parque, todas as espécies foram cuidadosamente selecionadas para criar esse efeito, ao mesmo tempo que estão alinhadas com os ciclos da natureza.
Este enorme espaço verde concede inúmeros benefícios ambientais para a cidade, tais como a mitigação do efeito de ilha de calor, melhoria na qualidade do ar e redução do ruído, aumento da área permeável, mas não só. Graças a um programa cultural dinâmico, o parque é um motor da dinâmica económica dos serviços existentes na sua envolvente. A forma como é feita a sua gestão segue também uma abordagem inovadora, sendo o primeiro parque urbano de Itália a ter uma gestão privada, em resultado de um acordo entre a câmara municipal, a COIMA SGR e a Fundação Riccardo Catella. Todavia, o objectivo não é que esta seja uma administração fechada, mas, sim, colaborativa, estando, por isso, aberta a associações e empresas que pretendam reforçar a sensibilização cívica e cultural da comunidade para temas como a acção climática, a diversidade ou a inclusão.
Planos para o futuro
“Cada vez mais, as cidades vão tornar-se as infra-estruturas físicas mais importantes do planeta e isso exige uma abordagem responsável à regeneração urbana, a integração de inovação e a resolução de temas chave tais como o ambiente, a inclusão social e a saúde. Precisamos de desenvolver e adoptar códigos de conduta que exijam um compromisso de longo prazo com o desenvolvimento urbano sustentável, começando aqui, nas principais cidades italianas – e Milão é um exemplo desse compromisso, servindo de modelo para cidades de todo o mundo”, afirmou o actual CEO da COIMA, Manfredi Catella. Seguindo esta visão e ainda que a pandemia de Covid-19 tenha abrandado os projectos urbanísticos (e não só) um pouco por todo o mundo, a COIMA já traçou os próximos passos para Porta Nuova. O primeiro é a obtenção das certificações LEED for Cities and Communities e WELL Community. Para isso, a promotora italiana já anunciou que vai trabalhar com a Arup, esperando-se que os dois selos sejam atribuídos a Porta Nuova em 2021, sendo o primeiro empreendimento a fazê-lo à escala global.
O que significam estes certificados? No caso do LEED, trata-se de uma garantia do compromisso do projecto com a sustentabilidade ambiental, económica e social, não apenas à escala dos edifícios, mas no que se refere à comunidade. Segundo explica o presidente e CEO do US Green Building Council, Mahesh Ramanujam, “o sistema de classificação LEED for Cities and Communities ajuda os líderes locais, os planeadores e promotores a criar comunidades com planos específicos, responsáveis, sustentáveis para os sistemas naturais, energia, água, resíduos, transportes e muitos outros factores que contribuem para a qualidade de vida”.
Por sua vez, o WELL Community vai assegurar que foram tidos em conta princípios que juntam o bem-estar e a saúde das pessoas no planeamento e construção deste bairro. “Sendo o primeiro projecto em Itália a pretender a certificação WELL Community, Porta Nuova é um empreendimento vibrante em Milão que está a mudar as regras da arquitectura e a priorizar a saúde das pessoas”, explica Rick Fedrizzi, chairman e CEO do International WELL Building Institute. “Este grande projecto de desenvolvimento urbano e arquitectónico vai respirar nova vida a esta linda zona histórica e ajudar as pessoas a experienciar a vida ao ar livre em ambiente urbano através dos espaços públicos e das piazzas que aportam uma sensação de bem-estar”.
Mas há mais planos na manga para Porta Nuova: a COIMA está a trabalhar com a cidade de Milão para ligar, num corredor pedonal elevado com cerca de 9,5 km, vários empreendimentos, fazendo a conexão entre a estação central em Porta Nuova e o Milano Innovation District (a noroeste). O projecto dá pelo nome de Milano Green Line e vai buscar inspiração no famoso High Line de Nova Iorque. Está também prevista a expansão de uma nova zona, Porta Nuova Gioia, já aprovada pela câmara municipal. O plano inclui 120 mil m2 de espaços públicos, 3600 m de vias pedonais e cicláveis, que ligarão a estação central da cidade, a Scalo Farini e à zona de exposições.
À semelhança das restantes três zonas de Porta Nuova, também em Gioia, a sustentabilidade do edificado vai ser prioritária. Quase finalizado está o Gioia 22, um edifício com necessidades quase nulas de energia, cujo uso de energia foi reduzido em 75 % face aos edifícios de escritórios recentes de Milão. O projecto recorreu a materiais com o certificado Cradle-to-Cradle (que visa os princípios da circularidade) e ambiciona obter os selos LEED Platinum e WELL.