Autores: Anita Tan De Domenico e Manuela Almeida, Universidade do Minho

Artigo publicado originalmente na edição de Janeiro/Fevereiro de 2024 da Edifícios e Energia.

Estamos atrasados na reabilitação energética dos edifícios residenciais, um desígnio urgente quando pensamos na descarbonização e também na resolução de várias questões sociais. Perante desafios legais, financeiros, organizacionais e de sensibilização, o poder local pode ter um papel fundamental neste processo.

É urgente acelerar a renovação do parque habitacional como contributo para a melhoria das condições de conforto, para a diminuição das patologias, para a mitigação das situações de pobreza energética e, em última análise, para a redução da dependência energética e para a mitigação das alterações climáticas. Mas faltam condições legais, financeiras e organizacionais, tal como medidas de sensibilização e de comunicação eficazes para aumentar em número e qualidade as necessárias renovações energéticas. O poder local tem um papel essencial na efetivação da transformação do parque habitacional, dada a sua maior proximidade com os agentes envolvidos nos projetos de reabilitação energética, e, em particular, com o utilizador final, os próprios moradores.

Face à necessidade de cumprir as metas de descarbonização estabelecidas pela União Europeia até 2050 e ao contributo do setor dos edifícios para as atingir, é urgente promover a descarbonização do edificado, diligenciando a sua reabilitação energética e encontrando formas de a acelerar.

No entanto, ainda que diante de um cenário de urgência, a reabilitação energética dos edifícios tem ocorrido de forma incipiente e muito aquém da escala necessária. Em Portugal, apenas 18,1 % dos certificados energéticos emitidos para o parque habitacional atingiram as classes A+ e A, sendo que 16,5 % correspondem às classes B e B-, enquanto a esmagadora maioria (65,4 %) situa-se entre as classes C e F. Ao desagregar esses certificados de acordo com as tipologias de projeto e fases de execução, apenas 18,2 % representam projetos de renovação de edifícios e 22,6 % correspondem aos edifícios cuja renovação foi concluída [1]. Estes números retratam o atraso da reabilitação energética dos edifícios residenciais (que correspondem a 99 % do parque construído nacional [2]) face às metas estabelecidas.

Estudos realizados no âmbito da Estratégia de Longo Prazo Para a Reabilitação dos Edifícios (ELPRE) revelaram ainda que as habitações apresentam algum nível de desconforto térmico em mais de 95 % das horas do ano [3], evidenciando a má qualidade da envolvente e a premente necessidade de intervenção.

Neste contexto, as medidas de descarbonização a aplicar ao parque edificado, para além de incluírem a transição da matriz energética para fontes de origem renovável, com o incentivo à eletrificação e ao uso de sistemas de aquecimento e arrefecimento eficientes, devem contemplar em primeiro lugar uma intervenção na envolvente dos edifícios de forma a melhorar o seu desempenho energético. Esta intervenção é essencial para garantir condições mínimas de conforto térmico, evitar a ocorrência de patologias, principalmente as associadas à humidade e ao sobreaquecimento, e reduzir a potência de eventuais equipamentos de climatização a instalar. De salientar que a intervenção a nível da envolvente tem também um potencial impacto positivo na mitigação de situações de pobreza energética, que se estima poder atingir entre 1,9 e 3,0 milhões de pessoas em Portugal [4].

No que diz respeito à alteração da matriz energética, ao mesmo tempo que Portugal vem investindo no uso de fontes de energia renovável (que, no último mês de novembro, foram responsáveis por 87,9 % da produção de eletricidade nacional [5]), a descentralização energética, apoiada pelo Decreto-Lei n.º 162/2019, que regula o autoconsumo de energia renovável, caminha a passos lentos. Apesar de serem incentivadas e estarem a despertar um interesse crescente, atualmente, há apenas quatro comunidades de energia renovável em pleno funcionamento, sendo necessária uma maior celeridade na aprovação dos seus processos.

Ainda que algumas ações pontuais estejam a ocorrer, ainda se carece de uma estruturação multifacetada (legal, financeira, técnica, organizacional e de sensibilização) que priorize e crie condições para promover a reabilitação em larga escala do parque edificado.

Alguns recursos financeiros estão também a ser disponibilizados pelo Estado para melhorar as habitações, ainda que restritos a medidas pontuais. Mas reabilitações mais abrangentes seriam muito mais eficazes e trariam, de facto, mudanças significativas na eficiência energética e nas condições de conforto dos utilizadores.

Recomendações sobre como mais eficazmente renovar o edificado, quer a nível individual, quer a nível de bairro (ou de conjunto de edifícios), podem ser encontradas em diversas publicações que emergiram dos projetos de investigação IEA EBC Annex 56 (https:// www.iea-ebc.org/projects/project?AnnexID=56) e IEA EBC Annex 75 (https://annex75.iea-ebc.org/), promovidos pela Agência Internacional de Energia (IEA) e coordenados pela Universidade do Minho.

LIÇÕES APRENDIDAS COM OS PROJETOS DE INVESTIGAÇÃO IEA EBC ANNEX 56 E ANNEX 75

Os projetos IEA EBC Annex 75 e Annex 56 visaram clarificar a relação custo-benefício da implementação de medidas de renovação energética combinando medidas de eficiência energética com o uso de fontes de energia renovável num processo de descarbonização do edificado. Em particular, o projeto IEA EBC Annex 75 procurou identificar medidas conjuntas a nível de bairro numa tentativa de acelerar o processo de renovação.

Ambos os projetos evidenciaram que não há soluções de renovação únicas e que cada intervenção, individual ou coletiva, deve ser avaliada de acordo com as condicionantes e oportunidades locais e com a situação inicial dos imóveis e do bairro. A escolha da solução depende de uma análise holística que avalie não só a relação custo-benefício das diversas opções, mas também os benefícios adicionais (cobenefícios) que a intervenção de renovação pode proporcionar, o que, em certos casos, é o argumento mais forte a favor da escolha de uma determinada solução.

 

 

 

 

Figura 1 – Bairro social de Vila d’Este, em Vila Nova de Gaia. É um exemplo de reabilitação energética a nível de bairro. À esquerda, vista área (Google Maps); à direita, um dos seus edifícios residenciais antes e depois da intervenção (Gaiurb, http://www.cm-gaia.pt/fotos/editor2/a-nova-vila-deste.pdf)

A renovação energética a nível coletivo ou de bairro traz algumas vantagens, embora aliadas a uma maior complexidade, pois permite abordar questões transversais e de interesse público como questões urbanísticas (ligadas à mobilidade, à acessibilidade, aos equipamentos sociais e de lazer, aos espaços verdes, etc.), o acesso à habitação, a integração de redes de energia, entre outros, promovendo a melhoria das condições de conforto e da qualidade espacial interior e exterior. A procura de soluções com impacto positivo na qualidade de vida dos cidadãos resulta em cobenefícios que podem contribuir para um maior envolvimento e uma maior aceitação do processo de renovação pelos moradores.

As renovações à escala do bairro têm também o potencial de gerar procuras agregadas que podem resultar em economias de escala e numa maior sinergia entre medidas de eficiência energética e o uso de energias renováveis, também observadas nos processos de planeamento, contratação e execução.

Por outro lado, intervenções à escala do bairro são mais complexas, envolvendo edifícios em condições e momentos diferentes no seu ciclo de vida e envolvendo diferentes atores com interesses e objetivos diferentes e, por vezes, contraditórios.

Outra constatação relevante é a de que, independentemente da escala de intervenção adotada, o tema da descarbonização e da reabilitação energética dos edifícios carece de informação, esclarecimento, debate e formação para os diversos atores que devem estar envolvidos nesse processo, nomeadamente toda a cadeia de profissionais da construção civil, o poder local, os proprietários de imóveis e os moradores.

Ainda que as soluções técnico-económicas estejam maioritariamente disponíveis e que outros aspetos importantes sejam equacionados, como o enquadramento legal, a criação de modelos de negócio e os recursos de financiamento destinados à renovação energética, especialmente na escala coletiva, há que considerar que o fator fundamental de sucesso dos projetos de renovação energética de edifícios é a existência de uma comunicação e coordenação eficazes, sem as quais os demais fatores não poderão ser aplicados em todo o seu potencial.

O PAPEL ESSENCIAL DO PODER LOCAL

As conclusões retiradas dos projetos Annex 56 e Annex 75 evidenciam claramente o papel crucial que o poder local pode e deve ter na transformação do parque habitacional. Enquanto as autoridades a nível internacional e nacional têm um papel integrador, definindo diretrizes e metas e estabelecendo o enquadramento e a legislação necessários, o poder local conhece as realidades locais. E sendo a autoridade governamental mais próxima dos cidadãos consegue interagir com todos os atores envolvidos e, principalmente, com os proprietários dos imóveis e com os moradores, estabelecendo relações de confiança, essenciais para a aceitação dos projetos de renovação energética, especialmente a nível coletivo.

As autoridades locais podem atuar como facilitadores, mediadores, coordenadores e motivadores. Através do planeamento energético local, da criação de normas e incentivos financeiros locais, especialmente incentivando a adoção de medidas de eficiência energética e o uso de energias renováveis, podem ajudar a promover modelos de negócio apropriados.

É também relevante o seu papel no esclarecimento sobre a importância da renovação energética, na organização de campanhas de sensibilização, na divulgação de projetos-piloto, e na definição de metas locais juntamente com a organização de atividades de cocriação com os moradores, motivando a sua participação. O envolvimento e a participação dos moradores na definição das propostas de renovação energética, e durante todas as fases de projeto e execução, contribuem para um melhor entendimento das soluções e um ajuste de padrões comportamentais, o que pode resultar na adoção de medidas mais ambiciosas e mais eficazes.

Para tanto, tais iniciativas devem estar aliadas a sistemas de informação fiáveis alimentados com dados do desempenho energético dos edifícios oriundos de inspeções prediais, auditorias e certificações energéticas. As fontes de informação devem ser necessariamente transparentes, de fácil uso, e voltadas tanto para profissionais como para a população em geral. O uso de recursos digitais deve ser explorado para promover o fácil acesso à informação.

As autoridades locais podem também coordenar e organizar projetos de renovação energética em todas as suas fases, chegando até às fases operacional e de monitorização dos projetos à escala distrital. A criação de centros locais de apoio à renovação de edifícios que agreguem profissionais de todas as áreas do conhecimento necessárias a um projeto de renovação é uma forma eficaz de aconselhamento e coordenação, sob a forma de one-stop-shops, um hub que concentra assessoria de natureza técnica, financeira e legal, e, assim, oferece consultoria especializada e completa.

Em Portugal, iniciativas nesse sentido começam a surgir. One-stop-shops estão a ser implantadas nas regiões metropolitanas do Porto (Porto Energy Hub) e de Lisboa (Ponto de Transição), por exemplo, enquanto, a nível nacional, um portal digital criado pela ADENE, o portal casA+, agrega informações relacionadas com a eficiência energética, a eficiência hídrica e a mobilidade urbana. São ações necessárias e que precisam de ser expandidas e conjugadas com campanhas de sensibilização da população. Uma população que, em sua maioria, ainda não exige e não compreende a importância e a mais-valia nem mesmo do certificado energético, hoje obrigatório em todas as transações imobiliárias.

 

Referências

[1] https://www.sce.pt/estatisticas/

[2] https://www.pordata.pt/portugal/edificios+segundo+os+censos+total+e+po r+tipo-94

[3] https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/resolucao-conselho-ministros/8- -a-2021-156295372

[4] https://www.consultalex.gov.pt/Portal_Consultas_Publicas_UI/DetalheCon- sultaPublica.aspx?Consulta_Id=280

[5] https://www.observatoriodaenergia.pt/pt/comunicar-energia/post/11212/ boletim-producao-de-eletricidade

As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.

Fotografia de destaque: © Shutterstock