Autores: Ricardo Barbosa e Inês Reis, Agência de Energia do Porto (AdEPorto)
Embora as estatísticas nacionais sejam importantes para entender a dimensão do problema da pobreza energética no país e atuar transversalmente através de políticas abrangentes e robustas, existe também uma necessidade premente de caracterizar a situação de forma detalhada para que se possam desenvolver instrumentos locais adequados e enquadrados nas várias realidades. As agências regionais de energia e ambiente, devido à sua relação de proximidade com os territórios, podem desempenhar um papel central.
Num período pós-pandémico e no atual contexto geopolítico com a crescente subida de preços dos bens de consumo em geral, nos quais se incluem a energia e a habitação, situações de pobreza energética extremaram-se, sendo atualmente um dos principais focos de preocupação a nível europeu. De acordo com um relatório de 2021 da Agência Europeia do Ambiente, cerca de 7 % da população europeia vive em risco de pobreza energética. Em Portugal, e segundo números adiantados pela Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2022-2050 (ENLPCPE 2022-2050), que esteve em consulta pública até 3 de março, entre 660 e 680 mil pessoas vivem numa situação de pobreza energética severa, o que significa que pertencem a aglomerados que ou gastam uma percentagem significativa dos seus rendimentos mensais na fatura energética ou não conseguem de todo manter condições mínimas de conforto nas suas habitações. Este problema impacta de forma mais significativa pessoas em situação de pobreza económica e vulnerabilidade social, como idosos, pessoas com deficiência, famílias monoparentais e residentes de áreas rurais, pelo que uma larga franja da população portuguesa fica sujeita às consequências económicas, sociais, ambientais e de saúde agudizadas pelo fenómeno.
Não obstante a importância do documento – e a urgência da ação – é fundamental, conforme a própria ENLPCPE 2022-2050 admite, caracterizar de forma objetiva a população afetada. Esta não é, no entanto, uma tarefa fácil. Para além da falta de consenso numa definição comum e, por consequência, numa metodologia comummente aceite para o diagnóstico do problema, os contextos nacionais e locais em torno do problema variam consideravelmente. É também nesse sentido que a medida de ação 3.4 da Estratégia identifica a necessidade do envolvimento de municípios e agências de energia na formulação de estratégias locais de mitigação. Assim, embora as estatísticas nacionais sejam importantes para entender a dimensão do problema no país e atuar transversalmente através de políticas abrangentes e robustas, existe também, na nossa opinião, uma necessidade premente de caracterizar a situação de forma detalhada para que se possam desenvolver instrumentos locais adequados e enquadrados nas várias realidades. Neste contexto, entidades de proximidade, como municípios e agências regionais de energia, devem complementarmente desempenhar um papel fulcral ao nível do diagnóstico e da caracterização da pobreza energética nos diferentes territórios.
“Municípios e agências regionais de energia devem complementarmente desempenhar um papel fulcral ao nível do diagnóstico e da caracterização da pobreza energética.”
As agências de energia do Porto (AdEPorto) e Lisboa (Lisboa E-Nova) têm reunido esforços numa ação pioneira de diagnóstico e caracterização do problema nas duas cidades, tendo realizado um inquérito alargado em ambos os territórios onde se avalia a temática da pobreza energética de acordo com diferentes indicadores, nomeadamente o grau de conforto térmico nas habitações, relacionando-o com a perceção de estado geral de saúde, a qualidade da construção dos edifícios e a fatura energética dos agregados domésticos. Foram também recolhidos dados sobre a literacia energética dos residentes. De forma transversal, os resultados – disponíveis de forma interativa em https://pobrezaenergetica.pt/ – revelam que, nos dois contextos, cerca de 40 % dos participantes admitem desconforto em relação à temperatura em casa durante o inverno. Mas não é apenas durante o inverno que os inquiridos sentem desconforto térmico na habitação: 32 % dos respondentes em Lisboa e 23 % no Porto dizem-se igualmente desagradados com as temperaturas em casa durante o verão. Os resultados salientam também o papel central que os edifícios – e principalmente a falta de eficiência energética dos mesmos – desempenham na pobreza energética em Portugal e na forma como fatores essenciais como a qualidade de sono, o estudo, e o desempenho no trabalho podem ser afetados pela fraca qualidade das habitações. Cerca de 59 % dos inquiridos em Lisboa e 47 % no Porto identificam situações de ineficiência construtiva nas suas habitações, onde se incluem infiltrações excessivas de ar através de portas e janelas, a presença de humidade e o fraco isolamento térmico das paredes. Estes resultados refletem a fraca qualidade construtiva da maioria dos edifícios residenciais e a pouca literacia da população em relação a este tema.
Como forma de enfrentar o problema de forma transversal, muitos países têm vindo a implementar políticas concertadas de melhoria da eficiência energética do parque edificado e de garantia do acesso a energia a cidadãos identificados como vulneráveis. Em Portugal, por exemplo, as tarifas sociais de eletricidade e gás, surgiram exatamente como forma de assegurar que todos os cidadãos usufruem destes serviços. No entanto, e tal como assumido na ENLPCPE 2022-2050, esta medida por si só não se configura como uma solução para o problema e tem de ser complementada com outras. Para que a ENLPCPE 2022-2050 se possa, de facto, estabelecer como uma orientação central na formulação de políticas direcionadas para a caracterização e mitigação do problema com a finalidade de garantir um maior desempenho térmico (conforto) nas habitações e melhor qualidade de vida (e saúde) para os portugueses, a interligação com outros documentos fundamentais, como a Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios, tem de ser aberta e constantemente atualizada. O desafio conjunto de transformar o edificado existente para dar resposta à descarbonização e às fracas condições de habitabilidade que estão na origem da pobreza energética é enorme, mas novas orientações relativas às propostas para a revisão da Diretiva para o Desempenho Energético dos Edifícios podem trazer avanços ao introduzirem padrões mínimos de desempenho energético, com o objetivo de desencadear a necessária transformação profunda no setor.
Mais do que um mero olhar sobre a caracterização da pobreza energética num determinado território, as iniciativas locais como a mencionada acima, assim como projetos com ações concretas nesta temática, onde se incluem a medida “Energia e Conforto para Todos”, financiada pela ERSE no âmbito do Plano de Promoção da Eficiência no Consumo de Energia, e o projeto europeu Porto Energy ElevatoR, financiado pelo programa H2020, ambos coordenados pela AdEPorto, reforçam a importância do papel de proximidade das agências regionais de energia e ambiente no desenvolvimento de novos instrumentos de política local, como a implementação de balcões únicos de aconselhamento energético e a necessária capacitação social, técnica e económica das entidades locais nesta temática.
Este artigo foi originalmente publicado na edição n.º 146 da Edifícios e Energia (Março/Abril 2023)
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.