Pamplona quer transformar a antiga zona industrial de Rochapea num bairro de energia positiva. Para o fazer, a cidade espanhola vai participar no projecto europeu oPEN Lab e tornar-se num laboratório vivo para a experimentação e validação de conjuntos de soluções tecnológicas, processos e inovações sociais que possam acelerar a caminhada dos bairros europeus rumo à descarbonização.

 

No bairro de Rochapea, em Pamplona, as heranças de um passado industrial recente não passam despercebidas e tornam-se mais evidentes ao observar o emblemático edifício IWER. Localizada no coração de Rochapea, esta antiga fábrica têxtil, com 46 mil metros quadrados de área construída, viveu o seu auge nos anos 1950-60. Na sequência de um escândalo financeiro na década seguinte, as máquinas pararam definitivamente e, depois de muitas burocracias, o complexo passou a estar dedicado a outros usos, em particular, escritórios e actividades comerciais.

Se, em tempos, o edifício representou um marco importante para o desenvolvimento económico local, muito em breve, o IWER voltará a ganhar protagonismo, desta vez, pelo seu contributo para as ambições climáticas da cidade, que quer reduzir 70 % das suas emissões de dióxido de carbono até 2030. Nos próximos anos, o IWER vai ser alvo de uma renovação energética profunda que faz parte de um plano muito mais abrangente para o bairro de Rochapea: criar ali um laboratório vivo para experimentar soluções inovadoras que permitam alcançar um balanço energético positivo à escala comunitária.

Fachada do edifício Iwer, em Pamplona, e que será uma parte central no projecto oPEN Lab.

Os bairros de energia positiva fazem parte do cardápio de soluções identificadas pela Comissão Europeia como promissoras para levar a cabo a transição climática nas áreas urbanas. Gerar mais energia – de origem renovável e, se possível, localmente – do que aquela que se utiliza é o princípio base desta ideia, que está a servir de inspiração a vários projectos nos quais a inovação tecnológica se junta à transformação do ambiente construído na expectativa de alcançar a neutralidade carbónica e impactos sociais positivos. Pamplona abraçou o desafio no âmbito do projecto europeu oPEN Lab – Leading the transition to positive energy neighbourhoods, que arrancou em Outubro de 2021 e se prolonga até Março de 2026.

Além da cidade espanhola, Genk, na Bélgica, e Tartu, na Estónia, participam também nesta iniciativa, cujo objectivo derradeiro é desenvolver uma “visão holística e de energia positiva para os bairros de toda a Europa”, lê-se na ficha oficial do projecto. Num consórcio liderado pelo instituto de investigação belga VITO /Energyville e contando com 33 parceiros dos três países envolvidos, o oPEN Lab tem o apoio financeiro de perto de 20 milhões de euros do programa Horizonte 2020. Aos parceiros espanhóis, cabem cerca de cinco milhões – 1,2 milhões ao município (ayuntamiento) de Pamplona – que ajudarão a experimentar e validar soluções energéticas em Rochapea, abrindo, depois, portas para a sua replicação no resto da cidade.

O laboratório vivo de Pamplona

O potencial de transformação do IWER foi uma das razões que levaram o município de Pamplona a escolher Rochapea como área de intervenção para o projecto. “É um edifício de propriedade privada e alguns espaços foram [já] reabilitados para serem usados como escritórios; não obstante, há ainda muito potencial para a reabilitação, tanto no edifício como na envolvente, e para converter [o espaço] numa referência na actividade do bairro”, explica Jose Costero, director do Gabinete de Estratégia do ayuntamiento de Pamplona. Mas um bairro não se faz com apenas um edifício e, por isso, o projecto vai também abranger 12 unidades de habitação social do grupo San Pedro que se situam nas imediações da antiga fábrica.

“Acreditamos que a reabilitação energética deste conjunto habitacional pode representar um impulso muito importante para a transição energética de Rochapea num bairro de energia positiva, onde se produz mais energia do que se consome”, justifica Costero.

Para que a transformação aconteça, cinco parceiros – três públicos (a câmara municipal, a Universidade do País Basco e o Centro Nacional de Energias Renováveis) e dois privados (o gabinete de arquitectura AH Asociados e a construtora Obenasa) – vão trabalhar no laboratório vivo de Pamplona. Na intervenção prevista para as unidades habitacionais, inclui-se a instalação de painéis solares fotovoltaicos e de dispositivos para armazenamento de energia, assim como de novas sistemas de ar condicionado mais eficientes.

Ao mesmo tempo, será feita uma melhoria do isolamento térmico pelo interior e serão implementadas “técnicas de acompanhamento e monitorização inovadoras”, quer para a gestão do balanço energético das habitações, quer para mitigar transtornos causados a ocupantes e vizinhos (por exemplo, ao nível do ruído). Nas proximidades destes edifícios, estão previstos pontos de carregamento para veículos eléctricos.

Com vista a criar uma micro-rede energética, o projecto quer ligar, física ou virtualmente, as unidades habitacionais e o complexo industrial, onde, além de feita a reabilitação energética, será instalada uma central solar de 900 kWp. A ideia é fazer a troca de energia eléctrica entre os dois elementos e preservar o equilíbrio da rede, utilizando, para o efeito, ferramentas de gestão inteligente.

A par destas interacções, vai ser constituído um “gabinete energético de bairro” que dinamizará a criação de uma comunidade de energia. “É uma das actividades principais que vamos desenvolver no laboratório vivo de Pamplona”, refere o responsável local, garantindo que esta será uma iniciativa “aberta à participação de qualquer pessoa ou entidade” e na qual a co-criação e a colaboração serão as palavras de ordem. O objectivo, frisa, é “ir somando o maior número de instalações de produção de energia possível, assim como de consumidores”.

Testar inovação e criar soluções viáveis

Sendo este um projecto com o selo Horizonte 2020, as componentes de investigação e desenvolvimento de soluções inovadoras são requisitos. Uma das ambições do oPEN Lab passa por desenvolver “pacotes de soluções” comercialmente viáveis para bairros de energia positiva que incluem “tecnologias promissoras, processos e inovações sociais”. Maarten De Groote, coordenador do projecto e investigador sénior do VITO/Energyville, exemplifica: “Esses pacotes combinam, por exemplo, soluções BAPV (building applied photovoltaics) e BIPV (building integrated photovoltaics), bombas de calor de nova geração, sistemas pré-fabricados de AVAC adaptados aos bairros existentes e com ênfase em tecnologias partilhadas, aplicações para redes de corrente contínua domésticas, sistemas de controlo inteligente bidireccional, soluções de reabilitação modulares, etc.”

Este tipo de soluções será desenvolvido e testado em cada um dos laboratórios vivos do projecto, esperando-se, para tal, a participação não só dos parceiros, mas também de actores externos, nomeadamente inovadores e pequenas e médias empresas que possam ser atraídos pela iniciativa, aumentando, assim, a sua “capacidade de inovação”. Segundo o coordenador, “um plano exploratório e uma estratégia de conceptualização vão permitir a expansão do legado do projecto a longo prazo”, o que vai facilitar “a adaptação e validação de modelos de negócio à complexidade dos conceitos de energia integrada à escala do bairro”.

Em Pamplona, avança Jose Costero, as inovações tecnológicas planeadas “mais importantes estão relacionadas com técnicas de isolamento térmico pelo interior através de câmaras de vácuo, a integração de tecnologia fotovoltaica [BIPV] e micro-redes energéticas com gestão inteligente”. Tendo em mente as ambições para a redução de emissões definidas pela cidade na sua Estrategia de Transición Energética y Cambio Climático 2030 e a meta da neutralidade carbónica no longo prazo, o projecto é visto como uma “grande oportunidade” para ir experimentando soluções que permitam ao município perseguir essas intenções. “A ideia é testar e validar soluções para, depois, escalá-las a outros bairros da cidade”, revela Costero.

Porém, para o responsável, “uma parte fundamental da inovação do projecto” está, não na tecnologia, mas na dimensão social, em particular na promoção de espaços de co-criação para cidadãos e outros agentes, onde a transição energética do bairro possa ganhar alicerces comunitários. Costero admite que “grande parte do esforço para envolver a comunidade vai estar centrado na criação da comunidade de energia local”, justificando a decisão com o facto de considerar que esta pode ser “uma ferramenta muito útil para concretizar os objectivos energéticos”. Por ser, talvez, tão inovador, é também na componente social, mais precisamente em “conseguir mobilizar o conjunto [de todos os agentes] da sociedade”, que o dirigente local vê o “grande desafio” da transformação de Rochapea.

iwer pamplona

Interior do edifício Iwer, que vai sofrer obras de renovação.

A importância de uma abordagem integrada

No âmbito do oPEN Lab, os três laboratórios vivos vão seguir uma abordagem integrada na qual estão previstas medidas energéticas aos níveis do edifício, do bairro, das funcionalidades urbanas (como a infraestruturas para mobilidade eléctrica) e das suas interacções mútuas. Se assim não fosse, explica Maarten De Groote, “perder-se-iam muitas oportunidades para a optimização técnica e financeira, para escalar vantagens e usar sistemas de energia urbanos e serviços de flexibilidade energética, e para produzir e armazenar energia colectivamente”.

“A abordagem à escala do bairro permite uma análise de cluster, resultando no projecto e na implementação de uma renovação mais optimizada e com tecnologias que abrem caminho para a descarbonização do parque edificado – e isto numa perspectiva de sistema integrada”, explica o coordenador do oPEN Lab, sublinhando, no entanto, a importância de adaptar as soluções a cada contexto.

Momento oportuno para os bairros de energia positiva?

Com a guerra na Ucrânia e o agravar da crise energética, a União Europeia (UE) vive actualmente um momento crítico, tendo já traçado uma estratégia para reduzir a sua dependência dos combustíveis fósseis russos – REPowerEU. “O apelo para um sistema energético verdadeiramente independente nunca foi tão urgente como agora”, afirma Maarten De Groote, destacando o papel da eficiência energética, das renováveis e da flexibilidade energética como “forças motrizes para a aceleração da transição para a energia limpa”.

Neste contexto, o oPEN Lab ganha mais relevância, diz o coordenador do projecto, através da criação de laboratórios vivos que vão “emergir como hotspots de inovação” para a transição energética urbana à escala local e abrir caminho para a replicação alargada das soluções ali validadas. “Os laboratórios vivos de Pamplona, Genk e Tartu vão testar e validar processos de inovação, tecnologias e serviços em condições reais, activando a comunidade local e os cidadãos para participarem na transição energética. Nessa perspectiva, a estratégia REPowerEU vai destacar ainda mais os feitos e desafios do projecto. Afinal de contas, a revitalização das áreas urbanas com vista a tornarem-se bairros preparados para o futuro e resilientes do ponto de vista energético – nomeadamente para aqueles numa situação socioeconómica vulnerável – são estratégias-chave como mecanismos de defesa contra a escalada dos preços energéticos causada pela disputa de poder geopolítico e uma agressão militar injustificada”, argumenta o especialista.

O contexto internacional está também a ter impacto na forma como Espanha olha o tema da energia, mas, conforme relata Jose Costero, além da crise energética acentuada pela guerra, também os efeitos das alterações climáticas estão a fazer-se sentir cada vez mais na vida dos espanhóis, em particular e à semelhança do que acontece em Portugal, com as recentes ondas de calor e a seca que o país atravessa.

“Por estas razões, a agenda política em Espanha está a avançar muito rapidamente na adopção favorável de diversas soluções energéticas, e os bairros de energia positiva e as comunidades de energia são duas possibilidades que podem andar de mãos dadas”, defende. Para o dirigente municipal, estas últimas são encaradas como “mais próximas e exequíveis” e, por isso, “estão a ser mais promovidas, com vários programas de apoios públicos”; por sua vez, os bairros de energia positiva são vistos como “algo difícil de alcançar, devido ao elevado consumo [energético] dos edifícios e [do sector] da mobilidade e à baixa produção de energia que existe hoje nas cidades”, observa.

Não obstante a urgência do momento, para De Groote, é ponto assente que a independência energética só se consegue com a descarbonização total do parque edificado europeu, sendo, por isso, fundamental priorizar o “redesenho e a reabilitação de edifícios e bairros existentes, tornando-os à prova de futuro”.

Enquanto áreas urbanas “altamente eficientes e flexíveis do ponto de vista energético, nas quais os edifícios, os sistemas de energia e a infraestrutura de mobilidade funcionam em harmonia para alcançar um excedente de produção de energia renovável”, os bairros de energia positiva são uma das possibilidades para alcançar a tão necessária descarbonização, explica. É isso que o oPEN Lab pretende testar: segundo relata o coordenador, “à medida que vão sendo dado os primeiros passos, surgem, também, os primeiros desafios”, que começam logo pelo envolvimento da comunidade local, corroborando a experiência de Pamplona.

“Mesmo [com um projecto] adaptado ao contexto social e cultural local e às infraestruturas colaborativas existentes, ganhar a confiança [da comunidade] é um desafio; para a implementação não só do oPEN Lab, mas também das tecnologias”, confessa. Na transição para um bairro de energia positiva, há, segundo o especialista, várias divergências, nomeadamente entre as tecnologias de reabilitação e as práticas energéticas dos residentes e entre os residentes e aqueles que planeiam e implementam as soluções. A solução para isto, sugere De Groote, pode estar nos “desejos partilhados” por todos os cidadãos: “ser propriamente envolvido, ver as suas preocupações tidas em conta e [alcançar] um futuro (de energia) positiva.”

 

Artigo publicado originalmente na edição de Setembro/Outubro de 2022 da Edifícios e Energia